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Artigos-->RASCUNHOS -- 26/08/2007 - 23:14 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nasci no ano da graça e da guerra de 1941.

Nos idos anos 50, a única maneira de redigir meus primeiros lampejos de poesia era a mão, com canetas de penas, lápis ou lapiseiras. Máquinas de escrever só existiam nos escritórios, e muitos deles não dispunham das elétricas. Computadores domésticos? Nem em filmes de ficção científica.

Como não havia o delírio dos e-mails, todos se correspondiam por missivas, também manuscritas. Para tanto, comprava-se nas papelarias blocos de cartas e rascunhos.

O primeiro que comprei era pautado, de capa mole e ostentava o nome de Olavo Bilac, com sua foto azul na capa. No verso estava impresso o soneto número XIII, da Via Láctea. O famoso “Ora (direis) ouvir estrelas!”...

Havia blocos de cartas e rascunhos para todos os gostos. Coloridos, pautados, sem pautas, papel fino, médio e grosso. Os blocos de rascunho eram bem menores e cabiam nos bolsos dos paletós. O uso do paletó e gravata era quase uma obrigação.

Por incrível que pareça, não se entrava em cinema sem paletó. Teatro era só para os grã-finos. No hall do Cine Marrocos, um dos mais luxuosos da capital paulista, que imitava os teatros, boates e alguns restaurantes da época, havia um balcão onde as damas e os cavalheiros podiam deixar seus casacos, capas, chapéus e guarda-chuvas. Os esquecidos ou desprevenidos podiam alugar gravatas, pois era proibido entrar na sala de espetáculos sem a indumentária. Eu não gostava, e até hoje não gosto, desse acessório, por isso fui obrigado, diversas vezes, a recorrer a tal serviço, a fim de ter o prazer de assistir a filmes como Ladrão de Casaca, Janela Indiscreta, Quando Setembro Vier, e tantos outros que deixaram saudades.

Logo no início, comecei a carregar nos bolsos os pequenos blocos e deixar em casa, ou no escritório, os maiores. Fui promovido a auxiliar de escritório em março de 1957. Mas em hipótese alguma não podia usar as máquinas de escrever para fins particulares.

Aos jovens de hoje deixo um relato do ambiente de trabalho daquele velho escritório pertencente a uma metalúrgica, situado no décimo andar de um prédio na Rua São Bento, centro da cidade, onde tudo acontecia.

Os horários de entradas e saídas eram marcados pelas badaladas dos sinos do Mosteiro de São Bento, a cada quinze minutos. As janelas do escritório davam para as torres do Mosteiro.

O escritório ocupava meio andar, o restante pertencia à diretoria. O salão era todo aberto e nos fundos, sobre um tablado de madeira, ficava a mesa do contador e gerente geral, o senhor Perucinni.

Senhor Perucinni, meu primeiro chefe, desde o tempo de office-boy, foi sem dúvida um dos homens mais severos e pragmáticos que conheci em toda a minha vida. Se uma mosca atrapalhava o silêncio por ele imposto, em brados exigia o inseto morto na sua mesa. Trabalhava com uma viseira corta-luz sob os olhos e com ligas de elásticos pretos nos braços, para segurar as mangas das camisas, sempre impecavelmente passadas com punhos e gola engomados. Usava diariamente gravata borboleta preta e abotoaduras de ouro. No verão tirava o paletó e ficava de colete, com uma vistosa corrente, também de ouro, presa ao relógio de bolso. Foi ele o primeiro freqüentador de salões de barbeiro com manicure do qual tive conhecimento. Para mim, apesar da época, era uma figura caricaturada do século XIX. Depois dos meus pais, foi o senhor Perucinni quem me ensinou os principais fundamentos da disciplina e organização.

As primeiras canetas esferográficas chegadas no Brasil não eram bem vistas. Vazavam com facilidade, sujando as mãos e as roupas. Era proibido o uso de tais produtos no escritório. Em cada mesa havia um tinteiro duplo com tintas azul e vermelha, canetas de penas e mata-borrão.

Tanto no primário quanto, depois, no ginásio, os instrumentos para escrever eram esses, além dos lápis e lapiseiras. A minha vida continuou sem alterações até que fui autorizado a usar minha caneta-tinteiro, comprada a duras penas!

Certo dia, no horário de almoço, eu estava absorto, tentando escrever algumas linhas poéticas no bloco, quando o senhor Perucinni aproximou-se e ficou me fitando com aquele olhar enigmático de quem ia autorizar o final do mundo ou criá-lo novamente.

– O que rabiscas neste pequeno caderno, Stavale? A fera me chamava pelo sobrenome.

Encabulado, respondi que estava escrevendo uma poesia.

– Alguma decorada no passado? Perguntou com os lábios tremendo, o que era um mau sinal.

– Não, senhor Perucinni. Gosto de escrever os meus próprios poemas.

Felizmente estávamos no horário de almoço. Do contrário ele certamente teria me demitido da empresa.

Gesticulando o indicador, como se me acusasse de um crime hediondo, falou em voz alta para que todos ouvissem:

– Siga a carreira de escriturário que você abraçou. Poetas esnobes morrem de fome!

Continuei naquela firma por mais alguns meses. Nunca mais tocamos no assunto.

Meu saudoso pai tinha muitos amigos. Um dos mais íntimos era o advogado Antenor Nascimento, nada mais, nada menos do que o poeta que usava o pseudônimo de Guilherme de Campos – hoje pouco lembrado, depois de mais de quarenta anos do seu falecimento.

Quando Guilherme de Campos soube do meu bloco de rascunhos e das minhas pinturas a óleo, foi à nossa casa para conhecer de perto as minhas travessuras.

Passado quase um mês, chamou-me em seu escritório de advocacia. Depois de um longo abraço, deu-me os parabéns pelas pinturas e, principalmente, pelos poemas ensaiados no bloco de rascunhos.

Depois de um cafezinho, servido por sua secretária, tirou da gaveta um exemplar do seu último livro de poesias "A Procura do Autêntico", prefaciado por Agrippino Grieco, com a seguinte dedicatória: “Para o Roberto, com os melhores votos pelo seu promissor futuro artístico. São Paulo, dezembro de 1961”.

Guilherme de Campos era um inovador, pois escrevia poesias livres, quase concretas, no período em que os acadêmicos dominavam a arte poética – 1930 a 1960. Estes versos traduzem todo o seu absolutismo: “Dei um talho no meu corpo... te meti dentro de mim. Não é de cicatrizar... a breve ferida exangue – há de rebentar o broto... e crescer do enxerto lúdico”.

Mas vamos voltar aos blocos de rascunhos.

Das repreensões aos elogios, os meus blocos de rascunhos continuaram a fazer parte de mim.

Estiveram comigo nas mais diversas mesas e balcões de bares. Principalmente do antigo e demolido Gouveia, da Praça da Sé, onde quase todas as noites nosso grupo de pintura se reunia para jogar conversa fora! Entre elas não faltavam os comentários sobre poesias.

Além do dia-a-dia, nas viagens de férias e de finais de semanas, o bloco de rascunho sempre foi um companheiro inseparável.

Entre as minhas grandes paixões tive, durante anos, a musa inspiradora ideal. Além de poetisa, a linda e graciosa garota era pintora também. E, para o cúmulo das coincidências, levava sempre na bolsa um bloco de rascunho, “Olavo Bilac”. No início dos anos 70 ajudei a lançar o seu primeiro livro de poesias.

“Já pensou se não fossem os rascunhos?”, perguntava, toda vitoriosa, no dia do lançamento.

De esboços em esboços, escrevi sobre as mais diversas mulheres, puras e impuras, abandonos, esperanças, falecimentos de amigos e entes queridos, enfim, saudades trazendo sempre as quimeras floridas de nostalgias profundas

Assim, todas as minhas poesias rabiscadas em blocos de rascunhos, mesmo as guardadas em folhas de cadernos escolares, pouco a pouco foram sendo transferidas para as folhas de papel de cartas e arquivadas cronologicamente.

No final de 1977 comprei a minha primeira máquina de escrever. No final dos anos 80, troquei-a por uma elétrica.

Todos os rascunhos e os poemas já revisados, que estavam guardados em várias pastas, foram gradativamente sendo datilografados com zelo e carinho. Resultado: todos os meus rascunhos manuscritos foram parar no cesto de lixo. Sinceramente, gostaria de tê-los comigo até hoje! Mas ainda não inventaram a máquina do tempo para voltar ao passado.

Hoje o meu bloco de notas e rascunhos é um computador de última geração e um gravador de bolso. Ambos me deixam intrigado e, às vezes, aborrecido.

Para que tanta tecnologia se os meus pensamentos saudosistas estão sempre voltados em escrevinhar poesias e outras anotações em blocos de rascunho?





Roberto Stavale

São Paulo, julho de 2007

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