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Artigos-->A invenção da crise/Marilena Chauí -- 12/08/2007 - 13:21 (Janete Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A invenção da crise

Marilena Chauí



Era o fim da tarde. Estava num hotel-fazenda com meus netos e

resolvemos ver jogos do PAN-2007. Liguei a televisão e “caí” num canal que

exibia um incêndio de imensas proporções enquanto a voz de um locutor

dizia: “o governo matou 200 pessoas!”. Fiquei estarrecida e minha primeira

reação foi típica de sul-americana dos anos 1960: “Meu Deus! É como o La

Moneda e Allende! Lula deve estar cercado no Palácio do Planalto, há um

golpe de Estado e já houve 200 mortes! Que vamos fazer?”. Mas enquanto meu

pensamento tomava essa direção, a imagem na tela mudou. Apareceu um locutor

que bradava: “Mais um crime do apagão aéreo! O avião da TAM não tinha

condições para pousar em Congonhas porque a pista não está pronta e porque

não há espaço para manobra! Mais um crime do governo!”. Só então compreendi

que se tratava de um acidente aéreo e que o locutor responsabilizava o

governo pelo acontecimento.

Fiquei ainda mais perplexa: como o locutor sabia qual a causa do

acidente, se esta só é conhecida depois da abertura da caixa preta do avião?

Enquanto me fazia esta pergunta e angustiada desejava saber o que havia

ocorrido, pensando no desespero dos passageiros e de suas famílias, o

locutor, por algum motivo, mudou a locução: surgiram expressões como “parece

que”, “pode ser que”, “quando se souber o que aconteceu”. E eu me disse: mas

se é assim, como ele pôde dizer, há alguns segundos, que o governo cometeu o

crime de assassinar 200 pessoas?

Mudei de canal. E a situação se repetia em todos os canais: primeiro,

a afirmação peremptória de que se tratava de mais um episódio da crise do

apagão aéreo; a seguir, que se tratava de mais uma calamidade produzida pelo

governo Lula; em seguida, que não se sabia se a causa do acidente havia sido

a pista molhada ou uma falha do avião. Pessoas eram entrevistadas para dizer

(of course) o que sentiam. Autoridades de todo tipo eram trazidas à tela

para explicar porque Lula era responsável pelo acidente. ETC.

Mas de todo o aparato espetacular de exploração da tragédia e de

absoluto silêncio sobre a empresa aérea, que conta em seu passivo com mais

de 10 acidentes entre 1996 e 2007 (incluindo o que matou o próprio dono da

empresa!), o que me deixou paralisada foi o instante inicial

do “noticiário”, quando vi a primeira imagem e ouvi a primeira fala, isto é,

a presença da guerra civil e do golpe de Estado. A desaparição da imagem do

incêndio e a mudança das falas nos dias seguintes não alteraram minha

primeira impressão: a grande mídia foi montando, primeiro, um cenário de

guerra e, depois, de golpe de Estado. E, em certos casos, a atitude chega ao

ridículo, estabelecendo relações entre o acidente da TAM, o governo Lula,

Marx, Lênin e Stálin, mais o Muro de Berlim!!!



1) Que papel desempenhou a mídia brasileira – especialmente a televisão –

na “crise aérea” ?

Meu relato já lhe dá uma idéia do que penso. O que mais impressiona é a

velocidade com que a mídia determinou as causas do acidente, apontou

responsáveis e definiu soluções urgentes e drásticas!

Mas acho que vale a pena lembrar o essencial: desde o governo FHC, há o

projeto de privatizar a INFRAERO e o acidente da GOL, mais a atitude

compreensível de auto-proteção assumida pelos controladores aéreos foi o

estopim para iniciar uma campanha focalizando a incompetência governamental,

de maneira a transformar numa verdade de fato e de direito a necessidade da

privatização. É disso que se trata no plano dos interesses econômicos.

No plano político, a invenção da crise aérea simplesmente é mais um

episódio do fato da mídia e certos setores oposicionistas não admitirem a

legitimidade da reeleição de Lula, vista como ofensa pessoal à competência

técnica e política da auto-denominada elite brasileira. É bom a gente não

esquecer de uma afirmação paradigmática da mídia e desses setores

oposicionistas no dia seguinte às eleições: “o povo votou contra a opinião

pública”. Eu acho essa afirmação o mais perfeito auto-retrato da mídia

brasileira!

Do ponto de vista da operação midiática propriamente dita, é

interessante observar que a mídia:

a) não dá às greves dos funcionários do INSS a mesma relevância que recebem

as ações dos controladores aéreos, embora os efeitos sobre as vidas humanas

sejam muito mais graves no primeiro caso do que no segundo. Mas pobre

trabalhador nasceu para sofrer e morrer, não é? Já a classe média e a

elite... bem, é diferente, não? A dedicação quase religiosa da mídia com os

atrasos de aviões chega a ser comovente...

b) noticiou o acidente da TAM dando explicações como se fossem favas

contadas sobre as causas do acontecimento antes que qualquer informação

segura pudesse ser transmitida à população. Primeiro, atribuiu o acidente à

pista de Congonhas e à Infraero; depois aos excessos da malha aérea,

responsabilizando a ANAC; em seguida, depois de haver deixado bem marcada a

responsabilidade do governo, levantou suspeitas sobre o piloto (novato,

desconhecia o AIRBUS, errou na velocidade de pouso, etc.); passou como gato

sobre brasas acerca da responsabilidade da TAM; fez afirmações sobre a

extensão da pista principal de Congonhas como insuficiente, deixando de

lado, por exemplo, que a de Santos Dumont e Pampulha são menos extensas;

c) estabeleceu ligações entre o acidente da GOL e o da TAM e de ambos com a

posição dos controladores aéreos, da ANAC e da INFRAERO, levando a população

a identificar fatos diferentes e sem ligação entre si, criando o sentimento

de pânico, insegurança, cólera e indignação contra o governo Lula. Esses

sentimentos foram aumentados com a foto de Marco Aurélio Garcia e a

repetição descontextualizada de frases de Guido Mântega, Marta Suplicy e

Lula;

d) definiu uma cronologia para a crise aérea dando-lhe um começo no acidente

da GOL, quando se sabe que há mais de 15 anos o setor aéreo vem tendo

problemas variados; em suma, produziu uma cronologia que faz coincidir os

problemas do setor e o governo Lula;

e) vem deixando em silêncio a péssima atuação da TAM, que conta em seu

passivo com mais de 10 acidentes, desde 1996, três deles ocorridos em

Congonhas e um deles em Paris – e não dá para dizer que as condições áreas

da França são inadequadas! A supervisão dos aparelhos é feita em menos de 15

minutos; defeitos são considerados sem gravidade e a decolagem autorizada,

resultando em retornos quase imediatos ao ponto de partida; os pilotos voam

mais tempo do que o recomendado; a rotatividade da mão de obra é intensa; a

carga excede o peso permitido (consta que o AIRBUS acidentado estava com

excesso de combustível por haver enchido os tanques acima do recomendado

porque o combustível é mais barato em Porto Alegre!); etc.

f) não dá (e sobretudo não deu nos primeiros dias) nenhuma atenção ao fato

de que Congonhas, entre 1986 e 1994, só fazia ponte-aérea e, sem mais essa

nem aquela, desde 1995 passou a fazer até operações internacionais. Por que

será? Que aconteceu a partir de 1995?

g) não dá (e sobretudo não deu nos primeiros dias) nenhuma atenção ao fato

de que, desde os anos 1980, a exploração imobiliária (ou o eterno poder das

construtoras) verticalizou gigantesca e criminosamente Moema, Indianópolis,

Campo Belo e Jabaquara. Quando Erundina foi prefeita, lembro-me da grande

quantidade de edifícios projetados para esses bairros e cuja construção foi

proibida ou embargada, mas que subiram aos céus sem problema a partir de

1993. Por que? Qual a responsabilidade da Prefeitura e da Câmara Municipal?



2) Como a sra. avalia a reação do Governo Lula à atuação da mídia nesse

episódio ?

Fraca e decepcionante, como no caso do mensalão. Demorou para se

manifestar. Quando o fez, se colocou na defensiva.

O que teria sido politicamente eficaz e adequado?

Já na primeira hora, entrar em rede nacional de rádio e televisão e

expor à população o ocorrido, as providências tomadas e a necessidade de

aguardar informações seguras.

Todos os dias, no chamado “horário nobre”, entrar em rede nacional de

rádio e televisão, expondo as ações do dia não só no tocante ao acidente,

mas também com relação às questões aéreas nacionais, além de apresentar

novos fatos e novas informações, desmentindo informações incorretas e

alertando a população sobre isso.

Mobilizar os parlamentares e o PT para uma ação nacional de informação,

esclarecimento e refutação imediata de notícias incorretas.



3) Em “Leituras da Crise”, a sra. discute a tentativa do impeachment do

Presidente na chamada “crise do mensalão”. A sra. vê sinais de uma nova

tentativa de impeachment ?

Sim. Como eu disse acima, a mídia e setores da oposição política ainda

estão inconformados com a reeleição de Lula e farão durante o segundo

mandato o que fizeram durante o primeiro, isto é, a tentativa contínua de um

golpe de Estado. Tentaram desestabilizar o governo usando como arma as ações

da Polícia Federal e do Ministério Público e, depois, com o caso Renan

(aliás, o governador Requião foi o único que teve a presença de espírito e

a coragem política para indagar porque não houve uma CPI contra o presidente

FHC, cuja história privada, durante a presidência, se assemelhou muito à de

Renan Calheiros). Como nenhuma das duas tentativas funcionou, esperou-se que

a “crise aérea” fizesse o serviço. Como isso não vai acontecer, vamos ver

qual vai ser a próxima tentativa, pois isso vai ser assim durante quatro

anos.

4) No fim de “Simulacro e Poder” a sra. diz: “... essa ideologia opera com a

figura do especialista. Os meios de comunicação não só se alimentam dessa

figura, mas não cessam de instituí-la como sujeito da

comunicação ...Ideologicamente ... o poder da comunicação de massa não é

igual ou semelhante ao da antiga ideologia burguesa, que realizava uma

inculcação de valores e idéias. Dizendo-nos o que devemos pensar, sentir,

falar e fazer, (a comunicação de massa) afirma que nada sabemos e seu poder

se realiza como intimidação social e cultural... O que torna possível essa

intimidação e a eficácia da operação dos especialistas ... é ... a presença

cotidiana ... em todas as esferas da nossa existência ... essa capacidade é

a competência suprema, a forma máxima de poder: o de criar realidade. Esse

poder é ainda maior (igualando-se ao divino) quando, graças a instrumentos

técnico-cientificos, essa realidade é virtual ou a virtualidade é real...”

Qual a relação entre esse trecho de “Simulacro e Poder” e o que se passa

hoje ?

Antes de me referir à questão do virtual, gostaria de enfatizar a

figura do especialista competente, isto é, daquele é supostamente portador

de um saber que os demais não possuem e que lhe dá o direito e o poder de

mandar, comandar, impor suas idéias e valores e dirigir as consciências e

ações dos demais. Como vivemos na chamada “sociedade do conhecimento”, isto

é, uma sociedade na qual a ciência e a técnica se tornaram forças produtivas

do capital e na qual a posse de conhecimentos ou de informações determina a

quantidade e extensão de poder, o especialista tem um poder de intimidação

social porque aparece como aquele que possui o conhecimento verdadeiro,

enquanto os demais são ignorantes e incompetentes. Do ponto de vista da

democracia, essa situação exige o trabalho incessante dos movimentos sociais

e populares para afirmar sua competência social e política, reivindicar e

defender direitos que assegurem sua validade como cidadãos e como seres

humanos, que não podem ser invalidados pela ideologia da competência tecno-

científica. E é essa suposta competência que aparece com toda força na

produção do virtual.

Em “Simulacro e poder” em me refiro ao virtual produzido pelos novos

meios tecnológicos de informação e comunicação, que substituem o espaço e o

tempo reais – isto é, da percepção, da vivência individual e coletiva, da

geografia e da história – por um espaço e um tempo reduzidos a um única

dimensão; o espaço virtual só possui a dimensão do “aqui” (não há o distante

e o próximo, o invisível, a diferença) e o tempo virtual só possui a

dimensão do “agora” (não há o antes e o depois, o passado e o futuro, o

escoamento e o fluxo temporais). Ora, as experiências de espaço e tempo são

determinantes de noções como identidade e alteridade, subjetividade e

objetividade, causalidade, necessidade, liberdade, finalidade, acaso,

contingência, desejo, virtude, vício, etc. Isso significa que as categorias

de que dispomos para pensar o mundo deixam de ser operantes quando passamos

para o plano do virtual e este substitui a realidade por algo outro, ou

uma “realidade” outra, produzida exclusivamente por meios tecnológicos. Como

se trata da produção de uma “realidade”, trata-se de um ato de criação, que

outrora as religiões atribuíam ao divino e a filosofia atribuía à natureza.

Os meios de informação e comunicação julgam ter tomado o lugar dos deuses e

da natureza e por isso são onipotentes – ou melhor, acreditam-se

onipotentes. Penso que a mídia absorve esse aspecto metafísico das novas

tecnologias, o transforma em ideologia e se coloca a si mesma como poder

criador de realidade: o mundo é o que está na tela da televisão, do

computador ou do celular. A “crise aérea” a partir da encenação

espetacularizada da tragédia do acidente do avião da TAM é um caso exemplar

de criação de “realidade”.

Mas essa onipotência da mídia tem sido contestada socialmente, politicamente

e artisticamente: o que se passa hoje no Iraque, a revolta dos jovens

franceses de origem africana e oriental, o fracasso do golpe contra Chavez,

na Venezuela, a “crise do mensalão” e a “crise aérea”, no Brasil, um livro

como “O apanhador de pipas” ou um filme como “Filhos da Esperança” são bons

exemplos da contestação dessa onipotência midiática fundada na tecnologia do

virtual.

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