Livro e filme examinam os 70 anos da UNE, e mostram a força do movimento estudantil brasileiro
Mauro Ventura
O GLOBO - SEGUNDO CADERNO – 29/07/2007
Pagar meia no cinema e entrar de graça em ônibus são conquistas - ou comodidades, segundo os críticos - facilmente associadas à União Nacional dos Estudantes (UNE). Mas a entidade tem um histórico de lutas que transcende em muito o alívio ao bolso estudantil. No livro "Memórias estudantis 1937 - 2007: da fundação da UNE aos nossos dias" (Ediouro), a historiadora Maria Paula de Araújo examina 70 anos de militância e revê o papel dos estudantes.
- Quando se fala em história política, ainda se privilegiam sindicatos, partidos, imprensa, eleições, organizações de esquerda, associações políticas que tenham, entre aspas, responsabilidade maior. Os estudantes aparecem como coadjuvantes.
O livro faz uma inversão e joga o foco nos jovens, que passam a ser os atores principais da narrativa.
- Em geral, eles vêm como nota de pé de página: os livros citam o político e dizem que se formou no movimento estudantil. A gente faz o contrário, dá uma notinha dizendo que o estudante virou deputado - explica ela, de 50 anos, coordenadora do núcleo de história oral da UFRJ "Memórias de esquerda".
Longa é dividido em duas partes
• O livro vai ser lançado dia 9, no Odeon, às 18h30m. Junto será apresentado um filme do diretor Silvio Tendler que também reconstrói a História do Brasil nos últimos 70 anos do ponto de vista do movimento estudantil. O longa-metragem é composto de duas partes, que serão exibidas ainda separadamente no canal Futura, nos dias 11 e 12. "Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil", de 53 minutos, tem uma visão política e traça um perfil cronológico por meio de depoimentos de ex-militantes como José Talarico, Vladimir Palmeira, José Dirceu, Aldo Rebelo e Lindberg Farias.
A segunda parte do documentário, "O afeto que se encerra em nosso peito juvenil", privilegia, em 50 minutos, a produção cultural e os aspectos comportamentais. Há depoimentos, por exemplo, dos atores Sérgio Britto e Nathalia Timberg, que começaram suas carreiras no movimento estudantil. Narrado por Cássio Gabus Mendes, traz ainda trechos de peças, músicas e poesias de época, À certa altura, o grupo TáNa Rua, de Amir Haddad, junta-se a Chico Diaz e Dira Paes para encenar parte de uma peça de Augusto Boal.
A tradição cultural da UNE começa em 1938, com a criação, por Paschoal Carlos Magno, do Teatro do Estudante Brasileiro (TEB). Nos anos 60, surge o mítico Centro Popular de Cultura (CPC), que tinha nomes como o poeta Ferreira Gullar, o cineasta Leon Hirszman e o dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha.
O filme e o livro integram o projeto "Memória do movimento estudantil", parceria da UNE com a Fundação Roberto Marinho, o Museu da República e a TV Globo, e patrocínio da Petrobrás.
O trabalho já registrou cem depoimentos, que resultaram em cerca de 300 horas de gravação, que serviram de base para a produção do diretor e a pesquisa da professora.
Tendler e Maria Paula mostram as técnicas dos estudantes. Há histórias curiosas, como a da vitrola que tinha sido um presente do governo americano, mas que era usada para tocar a "Internacional Comunista".
Também são contadas as estratégias de usar bolas de gude para derrubar os cavalo da polícia e de passar sabão nos trilhos do bonde, e a tática da contramão, em que as passeatas eram feitas no sentido oposto ao trânsito para dificultar a chegaa da polícia. Também havia criatividade na luta pela meia entrada nos cinemas, quando inventaram “a fila boba”: botavam de 50 a 60 estudantes na fila da bilheteria, pedindo meia que não existia.. Com isso, criavam tumulto e atrasavam a entrada dos espectadores. No documentário, José Genoino explica ainda como os presos se comunicavam pelos esgotos da prisão em que estavam.
__ O documento mostra que o movimento estudantil tem estofo, história e substancia __ diz o diretor que lança, ano que vem “Utopia e barbárie __ Ou ter 18 anos em 1968”.
As duas obras apresentam contradições, combates e divisões em 70 anos que vai da campaha O petróleo é nosso” à luta pela reforma agrária, do enfrentamento da ditadura ao esforço ampla, geral e irrestrita , das Diretas – Já à legalização da entidade, dos cara-pintadas ao combate do provão. Durante o Estado Novo , por exemplo, a UNE e a ditadura Vargas tinham relações ambíguas. Algumas lideranças, ligadas ao PC, eram presas pela polícia do ditador e depois soltas pela intervenção direta de Getúlio Vargas.
Livro aborda impasses atuais
Como diz o livro, a disponibilidade e a generosidade do jovem fazem com que ele costume ter papel político relevante – empunhando faixas e cartazes, gritando palavras de ordem atirando pedras e coquetéis molotov; erguendo barricadas, arrancando paralelepípedos.
Leitor e espectador acompanham a presença feminina na UNE, a eleição do primeiro negro, Orlando Silva Junior, para a presidência, em 1995, a passagem de nomes como José Serra pelo cargo – foi o último presidente antes do golpe que fechou a entidade – momentos críticos como o incêndio da sede, além da reforma universitária, principal pauta do movimento estudantil hoje. A derrubada do prédio da Praia do Flamengo e a luta pela retomada do terreno que tinha virado estacionamento, estão descritos no livro. Assim como os impasses atuais.
A UNE apóia Lula e recebe verbas oficiais, mas enfrenta a resistência de alguns grupos que acusam a entidade de adesismo.
- A UNE enfrenta essa questão, como aliás a esquerda toda. Algum preço a gente vai ter que pagar pela perda desse sentimento de rebeldia – diz Maria Paula - Mas , atualmente, a articulação passa menos pelos partidos do que pela proximidade com as camadas mais excluídas, como os sem teto, os sem terra e os índios. A renovação poderia recompor a capacidade de transformação do movimento estudantil.
Jovens dos 60 vistos com olhar de hoje
• A militância jovem vai reaparecer também nos palcos, com a peça "Lembrança de um sonho", que estréia dia 16 de agosto no Teatro Glória. Ela mostra um mesmo casal em duas épocas - 1968 e 2008. Nos anos 60, ela é uma guerrilheira de esquerda e ele, filho de um homem de direita. Nos dias de hoje, eles continuam juntos - ela dona de casa, ele desembargador -, mas há um segredo do passado que vem à tona.
O elenco tem nomes como Monique Alfradique e Maria Claudia. A direção é de Regiana Antonini.
- É importante o jovem de hoje conhecer o de ontem para dar "uma sacudida nessa pasmaceira - diz Regiana, de 45 anos. - Os jovens de hoje não querem mudar o mundo, querem mudar a vida deles, lutam por um lugar ao sol. Os dos anos 60 queriam mudar o mundo como um todo, não só o mundo deles.
Autor do texto, Luiz Carlos Maciel fez a peça sob encomenda. Criou um espetáculo que inclui desde os estudantes que protestavam até os que eram terroristas de direita e os hippies.
- Quis colocar as coisas da época em perspectiva, vistas com os olhos de hoje. E quis mostrar todos os lados, fazer uma coisa equânime, para ser esculhambado tanto pela direita como pela esquerda - conta ele.
Autor do pedido a Maciel, o produtor Oddone Monteiro - que também participa da peça - acha que a juventude atual precisa conhecer mais profundamente os.anos 60.
- Os jovens dos anos 60 eram mais voltados para o coletivo. Os de hoje estão mais no plano individual. Como diz a Irene Ravache, a nova geração é menos apaixonada, está precisando se levantar - diz. - Mas está começando uma faisquinha, como vimos na invasão da reitoria em São Paulo. Falta acender.
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Para conhecer um pouco mais sobre a UNE, leia, de minha autoria, "UNE: organização-pelego, de Getúlio a Lula", endereço http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=6003&cat=Ensaios&vinda=S (F. Maier).
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