Nove meses após atormentada gestação, surge formosa criatura, cujo nome, depois de longa discussão, deveria ser Isaac, nome de personagem desconhecida nossa, mas de doce lembrança para Ester: o sagrado apelido do falecido avô.
Na verdade, Samuel desejava que o nome não fosse esse e instigou o neto a procurar outro, mas a vontade da mãe teve prevalência no duro matriarcado judeu, de sorte que não houve jeito: era mais um Isaac na família.
A criança, porém, longe de representar a pura lembrança do carinhoso afeto que a neta sentia pelo avô, passou a significar momentos de provação e dor, desde a mais tenra infância. Nem com o nascimento, quinze meses mais tarde, da irmãzinha Isabel, nem com o advento prematuro do terceiro, Josias, nem com a terrível e devastadora chegada do quarto, Marcos, a mãe pôde compreender a razão de Isaac crescer em desajuste completo com o tônus familiar.
Ao nascimento do último filho, por solicitação especial do pai, o médico amarrou as trompas para que a mãe pudesse sobreviver às diversas gestações. A última criança lhe havia consumido todas as energias e, por pouco, não sucumbiu a infeliz criatura a tanta aleivosia.
Mas se Marcos, Josias e Isabel representaram preocupação e desconforto, Isaac parecia valer por todos eles e mais. De início, o casal pensou que se tratasse de má formação genética e que o pequeno fosse débil mental. Cedo, porém, viram que sua estirpe lhe estava indelevelmente registrada em todos os atos. A atrevida criatura não se contentava em atormentar os pais com choros convulsos, mas imaginava quanto artifício pudesse para promover os distúrbios mais sérios. O que menos fazia de ruim era apedrejar os vizinhos do alto prédio onde morava. Por várias vezes, a polícia precisou intervir, levando os litigiosos para a delegacia. O pai não podia deixar a porta do ateliê aberta, pois o pequeno lá ia espalhar as tintas por sobre as telas prontas, inutilizando os trabalhos. Aparelhagens eletrônicas não se mantinham intactas, dado que o feroz instrumento do diabo destruía tudo a pancadas e pontapés. Não houve psiquiatra que apontasse o caminho da cura. É certo que havia momento de doce sossego, principalmente quando o pai se punha a recitar os versos e salmos das sagradas escrituras, momento em que suave nostalgia parecia invadir a alma ao demônio. No entanto, pilhasse a biblioteca aberta, lá vinham para baixo todos os livros.
Samuel, espírito, conhecia o retrospecto da criatura e não via meio de estancar os feitos do rude instinto.
Davi, desacostumado com a vida no lar, afastava-se por longos períodos, na ânsia de reaver os aspectos perdidos da liberdade. Não consagrava à esposa mais do que alguns momentos de volúpia, o que lhe facultara a constituição da família. No entanto, a cada recaída sensorial reagia muito mal e desaparecia do convívio familiar por longo tempo. Sua sensibilidade artística não admitia a possibilidade de haver envolvimentos carnais e só aceitava o puro êxtase emocional como reflexo verdadeiro da existência. Não fora a boa Sara, compreensiva e amiga, teria descambado inteiramente para o mais sublime hedonismo intelectual. Em longas tertúlias, a eterna candidata à viuvez, pois o velho marido demonstrava força e vigor insuspeitos, colocava o herói em reequilíbrio psicossomático, pronto para reinvestir na obra de sua vida.
No que respeita aos negócios, contudo, o que poderia parecer insustentável do ponto de vista psicológico, transformava-se pictoricamente em telas magníficas de cores e luzes, onde o expressionismo vivenciava a dor e o sofrimento íntimos com rara perfeição. O artista crescia em fama e em dinheiro, o que lhe possibilitou saldar, em pouco tempo, todas as dívidas, vindo a tornar-se, inclusive, o amparo a vários familiares sob risco de falências. Seu ramo de negócios prosperava ainda mais quando tudo indicava para crises econômicas catastróficas. Os que possuíam fortunas resguardavam o capital sob forma de obras artísticas e as de Davi cresciam na avaliação do mercado.
Isaac, ao atingir os oito anos de idade, revelou-se na escola o capeta que sempre fora em casa. Impedido de prosseguir na companhia dos colegas pelos impulsos extremados de violência, chegando ao ponto de ferir os amiguinhos à base de alfinetadas e tesouradas, foi-lhe dada a oportunidade de aprender por meio de assistência direta de diversos preceptores pagos a peso de ouro.
Aos doze anos, contudo, sua personalidade deu tremenda reviravolta. Ao se deparar só no mundo, pois nenhum afeto o atingia, resolveu que o melhor era ceder à tolerância e, argumentando fortemente e prometendo ser fiel aos juramentos de bom procedimento, logrou matricular-se em escola particular, através dos competentes exames de qualificação e preparo, os quais não lhe foram em nada obstáculos para atingir o objetivo.
Na escola, chefiava grupelho de alunos que não desejavam seguir os roteiros estabelecidos pelos professores. Os colegas, por preguiça e incompetência; ele, por puro espírito de revolta. No entanto, sua preparação permitia-lhe obter bons resultados nas provas, de sorte que todos os colegas se viam ameaçados seriamente de reprovação e ele não. Tudo que faziam repercutia na disciplina geral da escola, mas sua ação era sutil e jamais se percebia quem eram os verdadeiros causadores dos distúrbios. A turbulência da criançada era absolutamente controlada por Isaac, que os mantinha presos a si através de reuniões secretas em sua residência, nos momentos que sabia não haver ninguém para atrapalhar.
Após o primeiro ano de atividades subversivas, o grupo foi obrigado a desfazer-se à vista dos péssimos resultados dos componentes. Tardiamente, a orientadora educacional descobriu a rede de intrigas e os autores das malandragens, especialmente porque as crianças, pressionadas pelos pais, se viram forçadas a denunciar a liderança de Isaac.
Vergastado pelas palavras pesadas do diretor da entidade, Isaac desejou vingar-se do douto professor e, antes que fosse expulso, conseguiu quase arruinar-lhe a carreira, fazendo-o cair em armadilha com determinada aluna mais velha, que descobriu apaixonada pela figura paternal do diretor. Instaurado o competente inquérito, avaliada a responsabilidade do estafermo, foi este encaminhado para casa com a descompostura maior da exclusão definitiva.
Davi chamou o filho a duras falas. Fez-lhe ver a quebra das promessas, a falta à palavra empenhada e a necessidade de tê-lo agora mais que nunca sob a tutela de instituição rigorosa. Mas Davi esbarrou em sério problema: os internatos eram raros e professos; na qualidade de filho de família judia, a única saída era buscar alguma instituição de caráter militar. Estas, contudo, exigiam procedimento pregresso imaculado, o que impedia o pequeno marginal de ser aceito. Finalmente, acordaram pais e filho que o melhor para o peralta seria prosseguir sob a tutela de certo tio que se transferira para Israel, onde, sob o rigor de um kibutz, talvez o expatriado tomasse juízo.
Ao contrário do que seria de supor, a perspectiva agradou sobremodo ao petiz, que se pôs na expectativa da viagem com extremado interesse, tanto que os dois meses de aprestamentos passou dedicado à tarefa de aprender a língua hebraica, para o que manifestou dom especialíssimo.
Em três meses de dura luta ao lado do tio, tempo em que foi inscrito em escola primária na nova pátria, Isaac progrediu intensamente, a ponto de merecer transferir-se para turma mais adiantada. Ao cabo de cinco anos, durante os quais se recusara a viajar para o Brasil, viu os pais apenas três vezes e, assim mesmo, de passagem, pois não se permitia afastar-se das atividades no campo e nos estudos por razões meramente sentimentais. Não saíra ao pai nem à mãe. Era filho da natureza.
Por essa época, ensejou-lhe a guerrilha inimiga a possibilidade de entrar em contacto com as armas e tão brilhantes foram os seus feitos militares que recebeu a incumbência de aperfeiçoamento nas artes bélicas para tornar-se oficial. O fato de não ser originário do local contornou-se com facilidade e Isaac encontrou o seu destino.
Toda a pujante e incoercível agressividade de caráter se concentrou na iniciativa da guerra, de modo que, em breve, se viu guindado a posto de comando junto à infantaria. Líder por natureza, comandou diversos assaltos a posições inimigas, vindo a merecer, postumamente, a principal medalha israelense. Seu nome hoje é respeitado pelo exemplo de patriotismo e defesa dos interesses raciais na região.
Ester, agraciada com a comenda, mandou enfeixá-la em preciosa moldura com que adornou a parede principal da sala. O filho, finalmente, lhe deu algum orgulho, embora não pudesse dizer com que contribuíra para o despojamento diante do dever. Ao olhar para a medalha, chegava a vislumbrar ali a presença do avô, mas não reconhecia no filho a serenidade que o velho sempre demonstrara.
Samuel, nesse meio tempo, foi chamado para prestar contas a respeito de suas atitudes referentemente ao encaminhamento daquele jovem, que, tão cedo, retornava ao etéreo.
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