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Artigos-->EU SEI, MAS NÃO DEVIA (* Marina Colasanti) -- 05/06/2007 - 08:57 (Heleida Nobrega Metello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos










EU SEI, MAS NÃO DEVIA





Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.



A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.



E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.



E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.



E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.



E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.



A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.



A tomar café correndo porque está atrasado.



A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.



A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.



A sair do trabalho porque já é noite.



A cochilar no ônibus porque está cansado.



A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.



A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.



E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.



E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.



A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.



A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.



A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.



A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.



A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.



E a ganhar menos do que precisa.



E a fazer filas para pagar.



E a pagar mais do que as coisas valem.



E a saber que cada vez pagará mais.



E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.



A abrir as revistas e a ver anúncios.



A ligar a televisão e a ver comerciais.



A ir ao cinema e engolir publicidade.



A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.



A gente se acostuma à poluição.



As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.



A luz artificial de ligeiro tremor.



Ao choque que os olhos levam na luz natural.



Às bactérias da água potável.



A contaminação da água do mar.



A lenta morte dos rios.



Se costuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.



A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.



Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.



Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.



Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.



Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.



E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.



A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.



Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.



A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.





* Marina Colasanti



Marina Colasanti foi grande amiga de Clarice Lispector. Este texto foi publicado em seu livro de mesmo nome (Eu sei, mas não devia - Ed. Rocco - Rio de Janeiro - 1996). Com este livro Marina conquistou um prêmio Jabuti.





postado por Heleida, junho 2007
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