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Contos-->49. CÉU ENEVOADO -- 22/05/2002 - 06:22 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

“Dentro de poucos dias”, pensava o pescador taciturno, “o sol voltará a brilhar e poderei tranqüilo jogar de novo a rede para a pesca proveitosa.”

Nem é preciso dizer que tal pescador ficou ali durante largas horas a aguardar o céu abrir-se, inutilmente. Durante esse tempo, os amigos, mais expeditos, consertaram as redes, que deterioravam, secaram e resguardaram os barcos, cultivaram a terra, revolveram os guardados à busca de algo que pudesse oferecer lucro na venda para a compra de mantimentos.

Dorismundo, não! Sentado à rocha mais elevada, contemplava o horizonte, vendo o mar crescendo turbulento e ameaçador. E quanto mais contemplava a revolta da natureza indômita, mais o coração se confrangia e mais se sentia pequeno diante da vida e do destino. Enfraquecido pela longa inatividade e pela parca alimentação, que conseguia de uns mariscos arremessados à praia, uma tardezinha em que as vagas açoitavam impiedosas o rochedo, deixou-se descair mansamente, sendo tragado pelo oceano inexorável.

Dois dias depois, a maré devolveu à praia o corpo corroído, ao mesmo tempo em que os raios do sol principiavam a refulgir promissores de calmaria e bonança.

Por aquela época, Pedro era criança de colo, não tendo sofrido diretamente a perda do pai. Contudo, a falta de alimentação fez o leite materno esvair-se aos poucos até a mais completa extinção. Foram anos difíceis, de dura provação, até que o filho mais velho adquirisse condições de lançar rede própria.

O pequeno Pedro, “desmilingüido” e apático, se via joguete nas mãos das crianças do vilarejo. Deixava correr soltas as lágrimas mal apontava na esquina algum petiz agressivo. E esse choro convulso era o estimulante mais eficaz para provocar o alvoroço moral na criatura desfeiteada pela antecipação do medo.

— Você chorou só por me ver, engraçadinho? Pois toma para aprender a chorar de verdade!

E lá vinham cascudos pesados a provocarem lágrimas sinceras. O medo, acentuando-se, fixou-lhe o pavor no inconsciente e a nossa criatura infeliz se preparava muito mal para os embates da vida.

Taludinho em idade mas exânime de forças, o pessoal da casa o alcunhou de Chorão e lá vinham outros severos pescoções e a indefectível recomendação:

— Esse menino precisa aprender a se defender.

Nesse diapasão, curtiu toda a infância e boa parte da adolescência, quando, um belo dia, descobriu a desforra como arma para soerguimento moral diante do ego ferido. Surpreendeu o filho pequeno do vizinho só, no fundo do quintal. Pulou a cerca de arame e deu no moleque com varinha de cana-brava até molestar a pele a ponto de sangrar. O tumulto chamou a atenção da mãe do agressor, que correu a socorrer o petiz. Era tarde, porém. O mal estava feito. Era necessário esconder o fato. Como? Os pais do pequeno iriam voltar logo e desconfiariam de que o autor só poderia ter sido alguém da vizinhança. O pequeno talvez não fosse capaz de apontar o culpado, tão jovenzinho era, mas os indícios levariam a alguém que permanecia desocupado o dia todo.

Imaginou a rude senhora que seria melhor afastar o filho do local e assumir a responsabilidade pela represália. Com sorte, evitaria tragédia maior. Correu com o filho à casa do irmão e fez com que lá ficasse até que a tempestade passasse.

Ao chegarem de volta ao lar, os pais do pequeno agredido, imediatamente, puseram a boca no mundo. Apavorada com a reação dos vizinhos, a mulher trancou-se em casa. Foi a pior decisão que poderia ter tomado. Arrombada a porta, deu-se furioso entrevero, principalmente porque, ao primeiro safanão, a infeliz revelou logo quem praticara a surra. Foi um deus-nos-acuda que perdurou por semanas, precisando intervenção policial e tudo o mais. Em suma, para não delongarmos o desfecho, preciso foi encaminhar Pedro para longe daquela região, pois fora jurado de morte pelo pai ofendido, principalmente porque acreditava que o filho iria perder uma vista. Não perdeu mas foi o quanto bastou para que se justificassem alguns goles a mais de aguardente, ainda porque a viúva não tinha quem a pudesse defender adequadamente.

Longe de casa, Pedro cresceria ao deus-dará. Entregue a determinado orfanato, cujas atividades eram tão-só fachada para o recebimento de polpudas subvenções estatais, o mais que o infeliz aprenderia ali seria roubar e pedir.



Quinze anos depois, vamos achá-lo forte e robusto, bem instalado, dono de vários imóveis e rodeado de filharada crescida e alegre. Que imensa transformação! Como se poderia esperar que alguém com tal retrospecto de vida pudesse dar salto tão poderoso para a frente?! Ainda mais surpreendente é que tudo foi conseguido com trabalho honesto, sem ajuda da sorte nos ganhos imprevisíveis das roletas e das loterias. Por acúmulo, a assiduidade ao centro espírita do bairro comprovava formação exemplar de caráter e a dedicação ao trabalho de assistência fraterna tornava-o invejado por quantos, na ânsia de contribuir para o crescimento da casa, não conseguiam colocar nas tarefas o mesmo empenho amoroso. Que misteriosa reviravolta tinha sido aquela?



Retornemos à velha casa em que o jovenzinho viu crescer o buço e onde se pilhou a dar curso às primeiras manifestações do erotismo.

Ali confraternizou-se pela vez primeira com jovem dois anos mais velha. A inexperiência em lidar com as pessoas, o medo profundamente arraigado no caráter e a necessidade de se ver agasalhado por alguém que lhe manifestasse algum conforto afetivo, fizeram com que o par se vinculasse estreitamente. As primeiras juras do mais cândido amor foram trocadas e um passou a viver para o outro, incondicionalmente.

Jurema era moçoila ignorante e desgraciosa. Pelos padrões do lugar, poder-se-ia considerar excessivamente feia, de modo que não despertava interesse a mais ninguém. Acresce que perdeu cedo os dentes, sendo, além do mais, coxa e zarolha. Para Pedro, era deusa de bondade e doçura; para os demais, pequena bruxa repugnante. Sendo assim, a união se deu natural, sem que o ambiente viciado se visse conturbado por essa aproximação.

Desde o começo, Pedro foi sentindo-se, de certo modo, o protetor de Jurema em relação aos demais companheiros. Como havia muita meninada miúda, castigava impiedoso os que se atreviam a mexer com a adorada, de sorte que, quanto aos menores, foi adquirindo confiança em seus punhos. Como a merenda da casa era escassa, dentro de pouco tempo deliberou ingressar em alguma mercearia na qualidade de servente, de modo que poderia, além do dinheiro, usufruir descontos na compra da alimentação. Esse primeiro traço de sagacidade revelou-lhe o caminho que seguiria daí para frente. Crente de que dois trabalhariam melhor do que um, levou Jurema consigo e ambos começaram a ajudar o merceeiro nas tarefas do dia-a-dia.

Exigência que se impunham era o reconhecimento do fato de que, se algo fizessem desonesto, teriam sérios problemas para encontrar outro comerciante disposto a lhes oferecer emprego. Conquistaram, desse modo, a confiança do patrão, que via no casalzinho disposição exemplar para o trabalho. A mocinha foi guindada à condição de balconista e, no momento supremo de sua carreira, admitida à caixa, nas eventuais saídas do dono. De início, ficavam ali apenas os trocados, mas, aos poucos, eram deixadas quantias cada vez mais consideráveis, até que tudo passou a ser regido com o máximo de dignidade pela dupla.

Pedro tudo fazia junto ao comércio do patrão. De mero empacotador e sofrível carregador, aos poucos lhe foram sendo atribuídos encargos de maior responsabilidade, como o de recebimento e conferência das partidas de produtos, até que chegou ao ápice do controle do estoque, compra e manutenção.

Quatro bons anos foram gastos nesse crescimento junto ao mercadinho. Nesse meio tempo, nasceu-lhes o primeiro filho. Por falta de registros e demais certidões comprobatórias da filiação dos pais, o pequerrucho foi batizado pelo padre da freguesia, ganhando na pia batismal o nome de Dorismundo, lembrança única que o filho guardara do pai, homenagem que prestava absolutamente inconsciente do que fazia. Era para dar um nome? Dorismundo parecia destinado a grandes feitos.

Por essa época, certos fatos começaram a perturbar o sossego do jovem casal. Como viviam num quarto no fundo do armazém, ficavam isolados do resto do mundo durante toda a noite, protegidos pela pesada estrutura do imóvel. Mas, ainda assim, certos ruídos se ouviam na minúscula janela de vidro por onde entrava o pouco de ar que evitava que sufocassem na estreiteza do domicílio. Esses ruídos foram encorpando, de modo que se puseram de sobreaviso, pois poderia acontecer de estar alguém querendo assustá-los. Temiam pelas misérrimas economias que guardavam sob o assoalho, em caixinha camuflada, fruto do abnegado trabalho.

Feitas as primeiras investigações, nada se descobria, nem animal nem homem, que pudesse estar a provocar o desassossego. No entanto, o barulho aumentava e a insistência recrudescia.

A medo, contaram ao dono do estabelecimento o que se passava. Seu Manuel era homem crente de Deus mas temeroso do diabo e pôs-se de orelha em pé. Nada disse à esposa, pois sabia que esta, mulata afeita às mandingas dos terreiros, iria querer fazer algum trabalho para afastar os maus espíritos.

Mas o estardalhaço chegou a tal ponto que, do alto do sobrado, no quarto dos fundos, onde dormia o casal, se podia ouvir perfeitamente o alarido. Foi assim que Ivonete tomou contacto com a entidade que promovia o distúrbio. Não fez trabalho algum mas, na hora do batuque, incorporou o espírito de preto velho, que contou ao povo presente que era preciso desenvolver a mediunidade da gente que morava nos fundos da casa nova da comunidade.

Lúcida, ao saber da recomendação do guia, pôs-se a pensar se seria o caso de levar o jovem casal ao terreiro que freqüentava. Pediu ajuda aos pais-de-santo, que, prudentemente, ponderaram que o casalzinho era muito jovem para largarem o bebê e se aventurarem, sem qualquer preparo, ao meio dos espíritos que lá compareciam para as manifestações. Era preciso achar lugar mais calmo para o desenvolvimento. Indicaram certo centro espírita kardecista que estava instalando-se no bairro e recomendaram que se ouvisse de novo o conselho do Pai José, o protetor de Ivonete. Consultado a respeito, elogiou as atitudes de todos mas censurou o fato de que as crianças estavam sendo afastadas dos trabalhos daquela comunidade. Era preciso trazer mais jovenzinhas para a iniciação. De qualquer modo, era bom levar o casal para o local escolhido, por razões que ele sabia.

Ignorantes dos fatos espirituais, Pedro e Jurema, atoleimados pelos efeitos drásticos do batuque estrondoso que os impedia à noite de dormir, insones ainda pela inquietude do pequerrucho, não hesitaram em comparecer ao centro espírita. Ali, os diretores eram ainda iniciantes nas tarefas mediúnicas mas se viram apaniguados pela sorte por logo estarem diante de caso de efeitos físicos nitidamente caracterizados. Outro motivo de alegria foi o fato de os umbandistas terem reconhecido sua presença, tanto no que respeitava à consideração dos vivos como, principalmente, no que dizia respeito às entidades espirituais. Sentiram-se seguros e confiantes.

Não demorou para que o obsessor se declarasse. Na realidade, era o espírito do pai de Pedro, que desejava encaminhá-lo com segurança pelos caminhos do mundo. À vista de sua luta para sobreviver e dos cuidados que demonstrava para com a família, constituíra-se em protetor daquele lar, como uma das tarefas iniciais do resgate penoso que teria pela frente.

Colocado a par dos acontecimentos pela esposa, Manuel ainda mais se animou a ajudar o casal a se estabelecer definitivamente como seres humanos. Desejando abrir outro estabelecimento comercial em bairro desprovido de boa mercearia, confiou a instalação e exploração do ponto ao jovem amigo. Afeito ao trabalho penoso do grande armazém, a pequena loja pareceu ao nosso trabalhador algo bem fácil de conduzir. Sem desleixar do trabalho, passou a estudar os pontos da doutrina. A narrativa de seu crescimento espiritual demandaria várias páginas recheadas de sacrifícios, de suores e de lágrimas, pois, de início, havia de se superar o analfabetismo e a incultura. Com a ajuda, contudo, da carinhosa esposa, que tivera o privilégio de freqüentar três séries escolares, pôde suplantar com galhardia as primeiras fases de estudo. Durante seis longos anos se viu às voltas com contas e catálogos ao lado de teorias esquisitas de espíritos que voltam do mundo das trevas, para trazerem suas experiências ao conhecimento dos vivos. Mas tanto as contas foram resolvidas, quanto os catálogos decifrados, como a doutrina foi sendo assimilada e incorporada ao conhecimento do jovem senhor.

Manuel e Ivonete continuaram os fiéis patrões e amigos. Dorismundo ganhou duas irmãzinhas e o antigo empregado obteve recursos suficientes para abrir o próprio negócio. Como anjo protetor, o português assinava como compromissário-fiador e os créditos se abriam para o amigo poder empreender os negócios. Foi assim que Pedro e Jurema, após quinze anos de dura labuta, puderam considerar-se felizes possuidores de várias propriedades, ao tempo em que a família florira e se desenvolvera absolutamente feliz. Ambos médiuns desenvolvidos, ajudaram o pequeno centro a instalar-se e prosperar em serviços à comunidade.

E assim se conta a história do filho do pescador, para quem o céu jamais pareceu enevoado, desde que lhe brilhou no horizonte da vida o amor da esposa idolatrada.

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