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Contos-->48. O ILUMINADO DO SENHOR -- 21/05/2002 - 05:26 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Carlitos era amigo de todos. Julgava-se apaniguado por ter de tudo um pouco e, por isso, era imensamente feliz. Sempre que manifestava qualquer desejo, como que por encanto, vinha-lhe às mãos o objeto almejado. Era incrível! Mas a sua gana em possuir era bem pequena, de modo que, quase sempre, o que lhe chegava eram benesses de extrema felicidade.

Certo dia, indo na via pública, cabisbaixo, Carlitos deu tremendo encontrão em certa senhora desconhecida. Aquele contacto corpóreo revelou-lhe algo que adormecera há muito tempo na sensibilidade: o amor físico. Tivera momentos de prazer na primeira juventude, mas confundira os elementos da real convivência que deve manter os humanos em harmonia, de modo que não estabeleceu nenhum lar para dar continuidade à programação genésica da vida. Envolto por inúmeras tarefas profissionais e afogueado por compromissos no centro espírita sob sua responsabilidade, adormecera para as sensações da epiderme e olvidara completamente a necessidade de obter herdeiros para prosseguimento da aventura da vida.

Pois aquele encontrão, mais que físico, representou para ele a necessidade de reatar os vínculos com a corrente cármica de seu sangue e raça.

Euricléia era a moça com quem trombara de modo tão abrupto. Senhora jovem, viúva de um e desquitada de dois, se assim podemos dizer, levava consigo três crianças, cada qual filha de um matrimônio. Aos vinte e nove anos de idade, passara na vida por tudo quanto ansiava instintivamente Carlitos.

Nem era preciso dizer que o encontro fora minuciosamente planejado pela jovem, que aspirava, desde algum tempo, conquistar alguém que fosse para sempre. Se Carlitos não se lembrava dela, evidentemente ela conhecia a fundo sua conta bancária, seus hábitos morigerados, sua “performance” no âmbito do espiritual e, principalmente, sua inexperiência com o mundo feminino. Foi-lhe fácil, portanto, assediar o nosso ingênuo amigo, não precisando, inclusive, utilizar-se de certas sutilezas a que estaria habilitada se preciso fosse. O encontrão físico era, na verdade, terrível encontrão moral.

Carlitos, posto a par de todo o drama de infelicidade e abandono, curou as lágrimas da senhora, propondo-se a ampará-la e aos filhos, se se dignasse aceitá-lo por marido.

Abocanhado de uma vez, eis o nosso herói precariamente instalado na vida, mas, com a responsabilidade de sempre, foi demonstrando que, realmente, lhe seria possível conseguir o que desejasse. Mas não desejava nada além do necessário. Se os sapatos do mais velho estavam precisando de meia sola, conseguia algum pequeno lucro extraordinário que cobria a despesa, mas se a cara consorte precisava de outro vestido, por mais que trabalhasse, nada fora do comum conseguia, pois desejar não desejava, apenas achava que, se pudesse, compraria.

Nessa vida de pequenas felicidades e de grandes triunfos morais, vamos surpreendê-lo pelo longo dos dez anos seguintes, quando, por peripécias do destino, enviuvou. A tragédia abateu-o deveras, pois amava a esposa, apesar de todos os defeitos que os anos foram apontando. De qualquer forma, a perseverança em auxiliá-la no que podia, inclusive levando-a a freqüentar a casa espírita de que era responsável — onde se sentia muito bem por considerar-se alvo das atenções gerais, uma vez que seu homem ali era muito importante —, fez com que se conformasse ao gênero de vida que lhe era possível propiciar. Aliás, capítulo especial nas decepções da rapariga foi descobrir que o nosso Carlos de Oliveira Sousa tinha homônimo bem melhor provido de dinheiro no banco em que a moça trabalhava e onde fora levada a iludir-se. A descoberta não se deu a tempo e essa foi a parte do encontrão que a derrubou por um bom tempo.

Vamos, pois, achar Carlitos de novo sem companhia feminina, infeliz e indeciso, mas com a carga de três jovens adolescentes para educar. Desacostumado com o tratamento mais adequado nessas circunstâncias, desejou, inicialmente, ver se conseguia devolver aos verdadeiros pais o encargo e a responsabilidade da educação dos dois mais jovens, contudo, estes mesmos se opuseram por considerarem-se estreitamente ligados por aqueles anos de saudável convivência, mui especialmente após terem ficado sob a tutela firme e amiga do pai adventício. Não se preocupasse com a vida, que Deus saberia prover, para dar-lhe condições de enfrentar o destino.

Animado com as palavras de apoio e incentivo das crianças (na verdade o mais velho mal assinalava a casa das dezoito primaveras), Carlitos resolveu prosseguir em sua labuta honrosa e feliz.

Cuidadoso, reunia os filhos toda noite livre para extensos bate-papos a propósito de tudo. Quase autodidata, pois pouca escola freqüentara, podia, contudo, discorrer com segurança a respeito de todo assunto moral de interesse, uma vez que, nas águas da doutrina, nadava como peixe.

Com o transcorrer do tempo, os jovens foram crescendo em afinidades com o velho senhor e passaram a considerá-lo verdadeiro pai. Em dez anos de convívio marital com Euricléia, esta não lhe dera nenhum filho, de modo que via naqueles seres com quem se relacionava seus verdadeiros rebentos. Eram uma família feliz, que foi ampliando-se com os casamentos sucessivos e com a vinda de diversos “netos”. O avô tudo fazia pelos pequerruchos, de modo que sua vida se desenvolveu até o fim como se deveras fora um iluminado do Senhor.

Em suave tarde de outono, embarcou para o outro lado, pranteado por todos, pois nunca fizera qualquer inimigo ou mesmo adversário. Em seu enterro concorrido, viam-se todos quantos ainda podiam ali comparecer por suas forças, havendo até quem se fizesse empurrar em cadeira de rodas. No plano espiritual, então, a festa era imensurável, tendo comparecido enorme cortejo de ex-integrantes da casa, inumeráveis assistidos de todas as épocas, só não dando o ar da graça a esposa querida. Pensou ele: “Que surpresa agradável estará reservando para mim a minha Euricléia?”, e pôs-se a confraternizar com os demais, em seu regresso verdadeiramente triunfal.

Após um mês de rápido processo de readaptação, fato raríssimo que iria constar nos anais do socorrismo espiritual, Carlitos pôs-se a campo para investigar o destino da amada. Imaginou, de início, ficando muito longe da verdade, que estaria em serviço de socorro do ex-marido, morto em condições misteriosas durante certo passeio de barco pela costa.

Após ligeiras pesquisas junto aos amigos, percebeu que teria muito que diligenciar para conhecer o paradeiro daquele ser a quem dedicara os melhores anos da vida. Na verdade, encontrava, nas respostas evasivas dos companheiros, certos indícios de que o trabalho iria ser penoso e cansativo. Não faria mal, todos estavam a seu lado e só faltava mesmo a mulher que lhe dera a felicidade de ser pai de três maravilhosas criaturas.

A busca foi organizada com muitos cuidados pela equipe socorrista da corporação espiritual de que fazia parte Carlitos na qualidade de instrutor. Conhecia bem as tarefas atribuídas a esses abnegados da consolação, pois fora um deles nos intervalos das últimas quinze encarnações. Estranho lhe parecia não ter reconhecimento de quem fora Euricléia em nenhum dos encarnes precedentes, nem memória dela possuir de tempo algum em que ficara na erraticidade. Era puro mistério.

Ao cabo das primeiras diligências, foi capaz de encontrar certo senhor que se disse pai de sua amiga e que se propôs a auxiliar na busca da filha, desde que, em troca, recebesse por recompensa a alegria de poder reencarnar na família.

Dada a propositura inusitada, Carlitos levou o caso a conselho do grupo, que, tendo perquirido a respeito da identidade do espírito, concluiu que se tratava de antigo desafeto da desaparecida, que, na verdade, desejava encontrá-la para dar curso a certas perversidades em revide do que considerava débitos a serem resgatados.

Diante da falência da possibilidade de ajuda, resolveram os amigos principiar o trabalho pela luta de regeneração desse senhor. Foram precisos dez longos e penosos anos para se conseguir dele adesão aos conceitos do amor a Deus e ao próximo, restando terminar a tarefa pela lição maior do equilíbrio universal pela justiça do Criador.

Nesse meio tempo, foi localizado o antigo companheiro de Euricléia, pessoa turbulenta, mas leal e sincera, que estava também em busca da mulher com quem precisava ajustar certas contas. Embora cheio das razões mais ponderáveis da defesa, uma vez que fora atraiçoado e assassinado pela esposa e pelo amante na malfadada viagem de recreio preparada por ambos para o crime, estava a pique de reconhecer que qualquer gesto em detrimento da personalidade da jovem mulher reverteria, inevitavelmente, contra sua pessoa, fazendo com que se onerasse ainda mais o seu saldo devedor. Estava, pois, a ponto de desistir da procura, malgrado as intensas emissões de vibrações negativas com que pretendia atingir a mulher, estivesse onde estivesse.

Conduzido para o hospital da instituição, cumpriria ali extenso programa de regeneração. Entretanto, suas informações foram valiosíssimas para se aquilatar a profundidade dos males e a negritude do caráter da entidade procurada.

Euricléia transformava-se, lentamente, na mente de Carlitos, em verdadeira medusa. O que mais o transtornava era a falta de notícias. Se ela vibrasse em favor dele, certamente os aparelhos de que o grupo estava dotado registrariam as ondas energéticas e traçariam automaticamente as coordenadas que apontariam o lugar do báratro em que se situava. Às escuras, a procura poderia estender-se por milênios infrutífera.

Instado pelos companheiros, resolveu Carlitos atendê-los e regressar à crosta para elaboração de novo plano de busca. A sós, em seu compartimento de repouso e meditação, não se cansava de orar fervorosamente ao Senhor, pedindo luzes para dar prosseguimento à tarefa mais imediata. Largos anos tinham sido consumidos em vão, ao tempo em que, na Terra, as crianças cresciam e seus filhos, provavelmente, estivessem necessitados de ajuda e amparo. Lembrou-se de que a esposa talvez pudesse ser atraída pelo amor aos filhos, de molde que considerou a possibilidade de atingir a esse duplo objetivo de seu atual estágio existencial. Agradeceu a inspiração, comunicou aos seus a resolução, no que foi aplaudido e secundado, e desceu à face da Terra para dar assistência aos amigos de outros tempos, com ele grupo de uma vintena de espíritos irmãos.

Na rápida perquirição que fez, pôde avaliar de imediato que tudo decorria muito bem nas diversas famílias constituídas. Os filhos estavam aposentados mas, diligentes, trabalhavam para o progresso de todos, dando ainda eficaz ajuda às casas espíritas a que se ligavam. Os dezenove netos estavam todos bem, havendo ainda alguns bisnetos a se engraçarem em formosura. Tudo estava absolutamente sob controle, mas da mulher querida, nenhuma notícia. Buscou junto aos guias de cada qual para ver se poderiam dar algum informe precioso, mas nenhum soube de aproximação da criatura junto a qualquer elemento da família.

Buscou-se álbum no etéreo para ver se conseguira encarne redentor, mas nada estava registrado a respeito. Cada neto ou bisneto tinha sua ficha particular anotada como sendo este ou aquele antigo membro da corporação familiar. Um ou outro estranho apresentava farta documentação da procedência, de modo que todos foram afastados da lista dos possíveis. Consultado o registro geral, constava que Euricléia havia pertencido a antigo grupo de africanos que haviam sido trazidos, no século dezoito, para o Brasil, para servirem como escravos. As anotações a respeito de sua moralidade e de seu ponto evolutivo ficavam vedadas à consulta pública, servindo tão-só de roteiro para possível retorno à carne e sob cuidadosa vigilância dos espíritos responsáveis pela privacidade de cada ser em sua área de atuação. Entretanto, certa pista foi oferecida, mediante a desolação do pobre Carlitos: que buscasse no setor dos homicidas múltiplos e dos terríveis criminosos das trevas. Estivesse, contudo, prevenido para surpresa muito desagradável.

Esperançoso pelo resgate da companheira, acreditando em que tudo que desejava sempre conseguia, estranhava que ser tão poderosamente perverso pudesse ter conseguido descendência tão maravilhosa. Estranhava ainda ter sido o eleito para a afeição e para o ministério de amor que há tantos anos empreendia.

De fato, ao se achegar às imediações da região indicada, onde os lancinantes gritos estentóricos de lamentação e dor impunham aos recém-chegados a mais piedosa comiseração e onde o pensamento dos puros só faz orar em compungitivos rogos de perdão à misericórdia divina, foi registrado pelos aparelhos tênue vibração em pedido de socorro. Alvoroçados com a aproximação do ser há tanto tempo procurado, foram-lhe ao encontro com o coração na mão e a alma em prantos, pois sabiam que iriam encontrar certo molambo esfarrapado de gente.

Euricléia jazia largada no fundo de poço na mais tenebrosa condição. Envolvida por milhares de pequeninos seres disformes, contorcia-se em dores atrozes, no tormento de consciência profundamente abalada pelo remorso mais contundente. Não percebeu a presença do grupo nem reconheceu ninguém ao redor, mas sentiu que algo lhe produziu algum alívio por instantes.

Naquele buraco ignóbil, onde permaneciam os mais pérfidos exemplares dos criminosos mais violentos, ficaram durante quarenta e oito horas os amigos, na tentativa de soltar a companheira dos laços que a jungiam por todos os lados a antigos desafetos, que tudo faziam para não se desprenderem da vítima. Após esse período e com a ajuda de diversas equipes socorristas para lá transladadas para o auxílio conveniente da sustentação energética da pureza das intenções, seres dotados de larga experiência nas descidas a pontos ainda mais distantes do báratro, foi possível o resgate daquele miserando ser das garras que o manietavam.

A travessia até a crosta foi difícil e penosa. Carlitos muitas vezes titubeou diante da disformidade em que se encontrava a querida amiga. No entanto, sob o amparo constante dos mais íntimos, foi-lhe possível suportar a marcha ascendente, à medida que lhe reacendia a esperança de vir a estabelecer convivência com a criatura a quem tanto se afeiçoara.

Durante esse trajeto, as ligações perispirituais foram estabelecendo-se entre os dois, de modo que Euricléia, por indução telepática, foi narrando ao antigo companheiro, agora protetor e amigo, as facécias e estratagemas que empregou para enredá-lo, demonstrando claramente que a convivência carnal de meros dez anos tinham significado o esplendor de sua existência. Na época não considerava assim, esquecida das tribulações das outras eras, mas, no fundo do catre em que agonizou durante os últimos trinta anos, pôde perceber o quanto de felicidade lhe tivera sido o encontro real e feliz com Carlitos, única razão de ter permanecido lúcida o suficiente para poder analisar todos os atos de sua existência e único argumento válido para alçar de vez o extenuado grito de socorro que, finalmente, acabou por ser ouvido e atendido.

Naquelas circunstâncias, Euricléia não sabia que estava sendo transportada para tratamento, menos ainda que as íntimas vibrações estavam sendo captadas e traduzidas pela única criatura no Universo que lhe tinha algum afeto. Se fora protegida por espírito guardião nas passagens pela Terra, nada fizera para conquistar-lhe qualquer sentimento de simpatia, de forma que os inimigos puderam tomá-la para a desforra longamente aguardada. Era chegado o momento da redenção.

Em terra firme, convulsionado por estafante luta interna, Carlitos caiu de joelhos e orou com sofreguidão, agradecendo ao Pai a desdita da aflição dos últimos tempos. Se sempre fora bom e nunca abusara da proteção que merecera, faltava-lhe compreender, em profundidade, o que era servir ao Pai, servindo-lhe às criaturas. E se já fizera tudo com carinhosa dedicação, entendia, finalmente, o que era obrar por amor ao próximo para servir a Deus. Imaginava que seu crescimento se dera de modo definitivo, mas intuíra que lhe faltava realmente executar o passo final: agir por amor ao Pai, para sua honra e glória eternas. Modestamente, reconheceu-se pequenino diante do Senhor e agradeceu-lhe os dons da compreensão e da existência. Em absoluto transe de fé imensurável na justiça e na misericórdia divinas, prometeu, em nome da verdade, que tudo faria para transformar aquele ser que lhe fora indicado para soerguer em espírito de luz. Sentia-se, ele mesmo, naquele supremo instante de transbordamento de amor, um iluminado do Senhor.

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