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Contos-->47. O ALMEIRÃO -- 20/05/2002 - 04:01 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Cozinheiro de mão cheia, Adalberto gostava de mesclar entre os acepipes algo bem amargo com que introduzia à mesa o interesse do bate-papo a respeito do sofrimento e da dor. Assim, entre uma lasanha e uma torta, por exemplo, vinha com travessa de almeirão mal cozido que, embora bem temperado, provocava certo arrepio às pessoas. Interessante é ressaltar que os amigos, acostumados à chicória irreverente, se sentiam à vontade para degustar a iguaria, certos de que há males que vêm para bem. Os novos, entretanto, sentiam-se espicaçados pelo estranho paladar que se imiscuía, muitas vezes, entre saborosos e apimentados produtos da cozinha calabresa e os suaves caldos e cremes das regiões do norte da França.

Quando não era almeirão, era a caudalosa e insossa sopa sem tempero, proveniente de rala mistura de duas ou três batatinhas com algum pimentão ou couve, para impingir ao conviva a forçada provação.

Os velhos amigos divertiam-se com as facécias de Adalberto, mas os recém-chegados à alegre tertúlia embaraçavam-se diante de tão parca substância. Esse era o prato favorito do anfitrião, que tecia longos comentários a respeito da fragilidade da pessoa humana diante dos pecados, especialmente da gula.

É de notar que Adalberto não servia carnes nem peixes, admitindo, de quando em vez, a presença de algum queijo malcheiroso, camembert ou roquefort, para imprimir à refeição a náusea e o insólito. Corria a conversação em torno dos imprevistos desagradáveis da vida e a necessidade, muitas vezes, de o indivíduo ver-se apto a balançar na corda bamba, com habilidade para não despencar no abismo da luxúria.

E assim eram as refeições por ele programadas: sempre com aquele entreato de dramaticidade, adrede preparado para o efeito.

Na vida, Adalberto era pessoa bem postada, tanto que poderia repetir as refeições tantas quantas fossem as oportunidades, sem qualquer arrefecimento das posses. Dono de extraordinário bom senso, costumava partilhar de tudo que lhe sobejava sem soberba ou egoísmo. Fazia-o por formação de caráter e porque acreditava que era essa a contribuição que daria aos semelhantes.

Viveu com esse pensamento até os sessenta e cinco anos de idade, quando foi atacado de mordaz paralisia cerebral que o afastou completamente do convívio dos companheiros. Foi parar em modesto hospital de arrabalde, não porque não pudesse arcar com as despesas vultosas de algum nosocômio de luxo, mas para ter oportunidade de contatar algum aspecto rude da vida.

Esclareça-se que a paralisia foi parcial e que de algum modo conseguia fazer-se entender pelas pessoas. Entretanto, precisava de cuidados médicos especiais, lesadas várias partes do cérebro, irremediavelmente.

Ali permaneceria por longos quinze anos, a comer as modestas refeições, onde tudo lhe parecia o mero entreato dos bons tempos de cozinha. Por recomendação médica, nenhum prato especial lhe poderia ser servido, a não ser papas e purês, cremes e líquidos. Tanto gostava de comer e de servir, viu-se preso à condição de escravo de ser servido e de mal se alimentar, com pratos totalmente sem gosto.

Os amigos da época de ouro evitavam ir visitá-lo no horário das refeições. No começo, levavam-lhe algumas guloseimas escondidas, mas os efeitos deletérios no organismo alertaram os médicos para o fato, de modo que proibição e vigilância reais foram desde logo estabelecidas. Adalberto isolava-se completamente do que considerava a sua contribuição. De certa forma, reconhecia a sabedoria divina, retirando-lhe exatamente aquilo de que melhor se servira na existência, para propiciar-lhe o seu momento de almeirão.

E ele pôde aproveitar-se bem desses longos anos entrevados. Começou contratando os serviços de enfermeiro particular que, entrosado com os demais do hospital, lhe propiciava especiais cuidados com o corpo debilitado, massageando as partes dormentes e exercitando o que apresentava vida.

Contratou jovem universitário para dar seqüência a plano de assistência intelectual e moral para quem se manifestasse sob risco de descontrole. Para isso, estabeleceu contacto com diversas entidades assistenciais que lhe possibilitaram acesso livre aos arquivos. Manteve, assim, intensa correspondência com inúmeras pessoas, trabalho que lhe absorvia os pensamentos vinte e quatro horas por dia.

Dentre os seus feitos, contam-se várias dezenas de sustações de suicídios e de milhares de conversões ao espiritismo, sem que ele próprio jamais tivesse lido de modo completo qualquer obra da codificação. Tendo descoberto que as obras eqüivaliam ao seu pensamento, não se deu ao trabalho de abrir qualquer delas para leitura de enfiada. Quando queria auxiliar alguém, mandava o amigo a seu serviço ler a missiva recebida e ditava terno e solícito texto de consolação e amor, incluindo citação das obras em apreço, que, abertas ao acaso, eram transcritas para abono de suas palavras. Dentre os entrechos copiados, um único não correspondeu exatamente à necessidade do missivista. Neste exemplar atípico, falava-se da morte e da necessidade da aceitação do fato. Na realidade, quando a carta chegou ao destino, achou a família do destinatário enlutada, de modo que a resposta, que se endereçara a um, encontrou o coração dos demais, que foram sábios o suficiente para perceberem que estava ali a inspiração de entidades que conheciam os fatos antes mesmo da ocorrência. Só nessa família foram conquistados quinze novos adeptos à doutrina.

A partir de determinada época, passou a ser visitado toda noite por espíritos sofredores que vinham reclamar dele a competente ajuda intelectual e moral, de modo que Adalberto viu aberta outra movimentada frente de trabalho. Certo de que os guias não lhe faltariam, embora não mantivesse contacto direto com eles, passou a conversar com os amigos que o visitavam durante o sono, sem ter nunca sofrido qualquer perturbação. Eram casos os mais estranhos, eram os criminosos mais violentos, eram os assaltantes mais impiedosos, eram as mulheres e homens mais viciados, que se achavam em fase final de sofrimento, mas dependentes ainda de muito trabalho de regeneração para se verem livres da sobrecarga de consciência. Em Adalberto-espírito, encontravam a palavra amiga e precisa, temperada ao gosto e ao sabor da necessidade, entremeada de suaves reprovações mas recheada de esplêndidos conceitos evangélicos, a estimular o desejo de reconquista do ideal da vida eterna.

Ali seus feitos eram tão ou mais meritórios que junto aos encarnados. Em pouco tempo, foi formando extensa equipe de colaboradores que o auxiliavam na sustentação e na prece dos que vinham chegando. O homem cumpria sua função de molde a satisfazer plenamente os mentores, a tal ponto que recebeu alvará para acompanhar as equipes socorristas ao fundo das trevas, para assistência de caráter emergencial.

Havia, contudo, sério problema de que não se dava conta: durante o sono, falava em voz bem alta e clara, reproduzindo fisicamente o que em espírito transmitia aos assistidos. De início, as enfermeiras de plantão suspeitaram de delírio e tudo providenciaram para dar-lhe paz ao repouso. Ministraram-lhe sedativos e calmantes sob receita médica, mas de nada adiantou a medicação. Toda noite, voltava Adalberto a falar e a falar, mansa, tranqüila, mas energicamente. Como, pela manhã, acordasse bem disposto, os médicos deixaram de atribuir ao fato maior importância, ficando o amigo à vontade.

Acontece, porém, que recém-chegada enfermeira, espírita por convicção, segura dos conhecimentos, passou a pôr reparo nas palestras do assonorentado senhor. Ao ouvir freqüentemente os termos Deus, Jesus e amor, resolveu gravar as entrevistas, pois parecia-lhe que Adalberto conversava reservadamente com entidades espirituais.

Assim determinada, introduziu sorrateiramente no quarto os aparelhos de registro radiofônico e, noite após noite, enquanto fazia a ronda pelos diversos quartos, ia gravando as conversas. As primeiras fitas continham recomendações de caráter bem particular, com nomes de pessoas completos e indicações de lugares bem precisas. Achou tudo muito estranho mas não titubeou em ver ali algo do plano espiritual. Levou as gravações ao centro que freqüentava, despertando a curiosidade de todos os dirigentes, que se dispuseram a investigar a veracidade das informações, a um tempo que, inteligente e prudentemente, decidiram que não se daria a conhecimento público antes de ouvidos os instrutores da casa e de apresentadas as fitas ao encarcerado da dor.

De fato, tudo que se continha maravilhava os investigadores pela precisão das minúcias e pela propriedade das revelações. As famílias ficavam curiosas mas o segredo do Adalberto foi mantido intacto por mais de doze anos, quando veio a público a primeira obra impressa, contendo todas as mensagens investigadas.

Como dissemos, as primeiras gravações indicavam pessoas e lugares com precisão. Aos poucos, porém, foram intercalando-se preces e recomendações de caráter bem geral, incentivos aos ouvintes, discursos prolongados a respeito da virtude e do procedimento mais adequado para se obter da vida o máximo de resultados. Verdadeiras obras de moralidade e de amor. Se não houvesse sido escrita a história do espiritismo, alguém poderia codificar através dessas mensagens, com seguro roteiro, todos os aspectos da doutrina.

Consultado a respeito da publicação, Adalberto anuiu com satisfação, exigindo tão-só que a primeira obra viesse a lume após a sua morte. Não desejava ser importunado durante os últimos anos de vida. Desse modo, ao partir, em ensolarada tarde de verão, pediu para que o sol lhe batesse diretamente sobre o rosto, de modo que, ao passar para o plano da eternidade, não se viu ofuscado pela luminosidade dos amigos que o aguardavam. Havia cumprido o seu desiderato de amor.

Após as efusivas congratulações, regadas por lágrimas de muita alegria e felicidade, fez-se momento de profundo silêncio, pois adentrava o recinto espírito de resplendor fulgurante: era o orientador supremo das famílias ali reunidas. Dirigindo-se ao recém-reempossado dos atributos espirituais, perguntou-lhe entre amável e zombeteiro:

— O prezado irmão considera ainda necessário amargar o paladar com o almeirão da vida?

— Certamente, — respondeu o inquirido. — Se não fora o sofrimento dos últimos três lustros, não poderia hoje saborear tão doce sobremesa.

— Então, bom amigo, — refletiu a excelsa entidade, — saiba que sobre a mesa está preparada para você saladinha de agrião com cebola, que poderá ser temperada com abnegação, uma pitada de temperança, um bom punhado de paciência e demais ingredientes cuja dosagem você se tornou perito em formular. Fique na paz do Senhor e bom proveito!

Disse e retirou-se dentro do mais absoluto silêncio.

Os amigos mais imperfeitos acharam absurdo que a festa tivesse recebido criatura tão deslumbrante, com aviso tão inoportuno. Quando iam externar os sentimentos, Adalberto atalhou-os e, com mavioso acento, grave e doutrinal, prognosticou:

— O prato do dissabor está servido. Vamos prosseguir com o banquete. Certamente, o último acepipe recompensará os sacrifícios do paladar. O mestre aqui compareceu como áspero entreato que nos abre o apetite para o festim da vida. Saibamos apreciar a dor como o instrumento pelo qual chegaremos ao Pai. Oremos todos juntos em agradecimento à divina sabedoria.



Adalberto está aprestando-se para retornar à carne. Programou para si a ingente tarefa de livreiro e editor espírita, para dar seguimento à vida de sacrifícios. Queira Deus realize os objetivos sem fazer salada de letras nem sopa de cogumelos venenosos, para o que se preparam as entidades que visam a tornar-se em pedras de tropeço.

Oremos nós pelo bom sucesso dos empreendimentos. Saiba ele degustar a salada, aceitando as condições adversas que lhe foram propostas. Quem sabe, um dia, reconhecido e amigo, venha a perceber que esta notícia a ele se refira e dê provimento ao nosso pedido de publicação. Certamente isto lhe saberá a almeirão amargo, mas até lá o seu paladar estará afeiçoado a semelhante gosto.

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