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Contos-->A biblioteca do general -- 17/05/2002 - 13:25 (Lindolpho Cademartori) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




A biblioteca do general

Por Lindolpho Cademartori

Baseado no conto "O general na biblioteca", de Italo Calvino


“Lamentar-se-ia o general por não ter podido dispor de mais tempo para dedicar-se à leitura dos esplendores ideológicos pelos quais havia sido seduzido. Esperanças que se esvaíam por entre os desvãos da ignorância; versos deslocados de um poema melancólico. Uma promessa cujo cumprimento fora malogrado pela atitude precípua e inconseqüente de uma minoria despótica. Um amor cujo desfecho grosseiro e brusco ensejava nostalgia e remorso. Como o general desejava que o tempo fosse maleável e regressasse aos seus tempos de juventude! Quantas flores ideológicas não teriam sido abruptamente podadas! E quantas frustrações não teriam sido evitadas.”



Tratava-se de um tempo onde os clichês e lugares-comuns eram entronados reis das argumentações. Contemplava-se, sem o menor queixume, a profusão de anacrônicos conceitos de bravura, coragem e nobreza. Tempo este que também resvalava propicialidade para a ascensão dos cadafalsos da tirania.
O general não era distinto dos demais. Afigurava-se tão ou mais arbitrário do que seus comparsas da injustiça. Não tinha conhecimento, todavia, da tarefa vindoura que revelhar-lhe-ia uma obscura e maravilhosa manifestação de humanismo e honestidade para consigo mesmo.
Havia sido o general incumbido de destruir uma biblioteca dita, pelo teor de seus títulos, “subversiva”. Ei-lo que foi, flanqueado por sua tropa, adentrando as dependências do templo do conhecimento. Deu ordem para que prendessem o bibliotecário e os demais funcionários. No intuito de compreender o que lhe fora incumbido destruir, dispensou a tropa após o almoço. Sentou-se numa das mesas juncadas de livros e pôs-se a folhear uma das obras malogradas.
Leu um, dois, três livros; tão-logo olhou o relógio, contemplou que o tempo não era seu cúmplice na jornada de traição, de maneira que a paixão pelo conteúdo das obras agigantava-se a cada página virada. Quis acender um charuto, mas as lágrimas que teimavam em derramar-se por sobre a brasa fizeram-no constatar uma vida cujo baluarte de edificação havia sido a covardia. Chorou, chorou, chorou. Minha nossa, como chorou o general! Eram paradoxais os sentimentos que se apossavam do idílico militar. A cada leva de lágrimas vertidas pelos olhos, engendrava-se na tristeza um crescente torpor de alegria e descobrimento. Apresentava-se ao general uma gama de conteúdo responsável por uma odisséia de conhecimento e retratação. Jogou o charuto fora e apanhou outro livro.
Retornaria a tropa à biblioteca no alvorecer do dia seguinte. Um cenário nada nobre afigurava-se à vista daqueles que ousavam interromper o militar em seu exercício intelectual: com a farda amarrotada e os cabelos desgrenhados, resplandecia em suas feições um misto de horror e admiração. O general, emérito mantenedor da ordem e dos princípios morais, estava, quem diria, apaixonado por aquilo que jurara combater.
Deixou-se conquistar pelos ideários para com os quais nutria ódio e desprezo. Os títulos subversivos, magnas-obras da literatura política marginal, passaram, num ínterim ínfimo, a ser o sustentáculo do outrora parco intelecto do letárgico general.
Muito embora seus subordinados ainda tenham tentado chamá-lo à “razão”, o general não assentiu ao apelo. Continuou absorto nos livros e, não contentando-se em conceder dispensa geral à tropa, extendeu-a a todo o quartel. Os soldados não admitiram tal deliberação e tentaram destituir o general de seu comando, bem como removê-lo da biblioteca. Consternado e encurralado, ei-lo que foi, na contramão de suas antigas convicções, conclamar o auxílio de seus inimigos de outrora, ao que foi prontamente atendido. Juntaram-se ao general hordas de manifestantes dispostos a preterir a própria existência em nome de um ideário mal-visto pelo “mundo civilizado”. Apesar dos esforços perpetrados no intuito da manutenção da liberdade, não lograram os futuros mártires sucessos em seus propósitos – foram retumbantemente massacrados pelo braço armado das instituições.
Tão mais choraria o general ao contemplar o fato de que, nos títulos considerados subversivos, estava o bojo estrutural da indentidade de seu povo. Tal era a razão pela qual tais obras urgiam serem destruídas: uma nação malograda pelo ego combalido de seus fracassos não era digna de estar ciente de sua gênese. Uma identidade que sucumbira diante da égide da força tirânica haveria de ser mantida alheia de sua complementação – o povo. Iria a espada institucional-reacionária brandir contra o ideário humanista, de modo a suprimir uma esperança ainda na aurora de sua plenitude.
Lamentar-se-ia o general por não ter podido dispor de mais tempo para dedicar-se à leitura dos esplendores ideológicos pelos quais havia sido seduzido. Esperanças que se esvaíam por entre os desvãos da ignorância; versos deslocados de um poema melancólico. Uma promessa cujo cumprimento fora malogrado pela atitude precípua e inconseqüente de uma minoria despótica. Um amor cujo desfecho grosseiro e brusco ensejava nostalgia e remorso. Como o general desejava que o tempo fosse maleável e regressasse aos seus tempos de juventude! Quantas flores ideológicas não teriam sido abruptamente podadas! E quantas frustrações não teriam sido evitadas.
Sob a penumbra da lamparina que iluminava a cela lúgubre e mortiça, o general pode ainda dispor de um breve desanuvio consciencioso para lançar mão um trunfo que escondia por debaixo da farda imunda – havia conseguido surrupiar um título da biblioteca. E ei-lo que foi, meio duvidoso de seus próprios sentimentos, postar-se abaixo da lamparina. Abriu o livro e esboçou um sorriso pleno e gozozo. Uma dupla sensação de felicidade acometeu-o como que de súbito. Das dúvidas que pretenderam permanecer, resta apenas uma, atinente à razão pela qual o general transparecia tamanha satisfação – teria sido pelo fato de estar de posse do livro ou simplesmente por ter subvertido as regras?
Seria o general convertido em mártir por seus feitos simultaneamente heróicos e esdrúxulos. Quanto à biblioteca, dir-se-á, mui imerecidamente, que a mesma foi reduzidas a cinzas pela égide tirânica e ignóbil que o general conheceu, amou, odiou e esqueceu.
Num apêndice talvez inoportuno, faz-se patente uma despretensiosa analogia para com a pauta da identidade tupiniquim. Falha-me a memória o nome de algum mandatário e/ou líder que tenha ordenado a destruição de qualquer meio pelo qual se angaria conhecimento e informação. E, incorrendo um tanto mais em personalismos, dir-se-á que, “se houve algum” – por óbvio que houve -, implicaria em pouca ou nenhuma diferença, dado que, para o povo que vive sobre essa terra dita hospitaleira e generosa – “plantando-se, de tudo dá.” -, cultura e conhecimento têm valor tão-somente para aqueles que se dedicam à inglória arte da elucidação da identidade brasileira como um todo inalienável.
Penso muito sobre isso. Muito mesmo. Penso em coisas que nem sequer deveriam vir-me à mente. Divago sobre a quem pertence a responsabilidade do constante estupro cultural a que vem sendo submetido a dinâmica social brasileira. Numa sentença precípua, adjudicar-se-á a culpa à estrutura institucional. Por conseguinte, a constatação do erro crasso – os meandros da locomotiva institucional competem unicamente àqueles que a soerguem: o meio social. Hesito na atitude de colocar em dúvida a competência deliberativa da sociedade, talvez até mesmo numa sublevação do instinto de auto-preservação. Incluo-me, pois, naquilo que não vejo com bons olhos. E devaneio acerca do que fazer. Abandono meu exílio consciencioso-dialético para sair à procura de um lugar onde eu possa refletir acerca de minhas convicções, se é que ainda tenho alguma. Todo e qualquer ambiente afigura-se inóspito. Lamento-me mais uma vez e me remôo num choro silencioso em que não se verte lágrimas, talvez em virtude de nutrir a certeza de que o único recinto que realmente me acolheria sem reservas seria a tão difamada biblioteca do general.

Lindolpho Cademartori
Comentarios

Tiago  - 04/04/2019

blink-182 - Feeling This.

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