Usina de Letras
Usina de Letras
255 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62152 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10448)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13567)

Frases (50554)

Humor (20023)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140786)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6176)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->43. AO ARREPIO DA DOUTRINA -- 16/05/2002 - 06:43 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Sebastião gostava de pairar a distância dos conceitos básicos da doutrina. Se lhe diziam que a alma, ao desprender-se do corpo, ia para o Umbral ou retomava seu caminho de luz, achava que haveria terceira possibilidade mais lógica e não aceitava a palavra dos companheiros, dos guias e dos teóricos da codificação. Se lhe diziam que Emmanuel havia consagrado o princípio de causa e efeito em suas obras, dizia que isso era só pequenino aspecto de questão mais abrangente, desconcertava o interlocutor com terminologia vasta e absolutamente técnica e concluía que muito do que se escreveu em nome do augusto irmão se devia a animismo elevado às últimas conseqüências.

Mas, um dia, haveria Sebastião de se ver encalacrado diante de cerrada discussão em torno do restabelecimento da prova por meio da reencarnação. Tópico proibido para ele, reencarne só admitia em condições especialíssimas, como no caso de Jesus, que, para volver à Terra, havia tomado de figura humana e argamassado corpo especial de fluidos desconhecidos, capazes de suportar a amplitude energética de ser extraordinariamente desenvolvido. Ia enveredar pelos conhecidos caminhos tecnicistas mas foi baldo o desforço. Os oponentes eram adversários de peso e bem se haviam preparado para a argumentação.

Após exposição de inúmeros pormenores esclarecedores e comprobatórios de casos verídicos, os interlocutores aplicaram-lhe, de chofre, solene golpe do qual não mais se restabeleceria na vida:

— Você acredita que esta seja sua primeira encarnação? Então, explique-nos por que você não é perfeito como Deus o criou.

Para isso, Sebastião ainda teve resposta:

— É porque vim de outro campo vibratório para o encarne na Terra.

— Que tipo de organização corpórea você utilizava lá?

Aí saiu pela tangente:

— Se eu fora perfeito e me lembrasse do que me aconteceu antes, não viria peregrinar por este mundo mais denso...

— Significa que você admite ter podido já estar envolto em algum espesso manto adequado à sobrevivência sob as condições ambientais de outro planeta?!

Não haveria possibilidade de discordar. Sebastião consentiu com a cabeça.

— Sendo assim, precisou desvesti-lo, ao deixar a antiga moradia?

— Perfeitamente.

— Podemos afirmar que ali podia ter havido morte, desencarne, separação do princípio espiritual, que se apartou do elemento material?

— Certamente.

— Você admite que está de novo encarnado?

Sebastião sorriu amarelo, pois reconhecera a força argumentativa dos companheiros.

— Se você encarnou de novo, não é o mesmo que reencarnar? E se você admite a possibilidade de ter reencarnado em planetas em condições diferentes, não é lógico que deva aceitar que os espíritos tenham o direito de reencarnações no mesmo planeta? Se você não aceitar o nosso roteiro de pensamentos, os nossos silogismos e as nossas conclusões, seremos obrigados a reconhecer que você não discute pela elucidação da verdade mas pela imposição de seu ponto de vista. Logo...

Por vários dias, Sebastião não conseguiu cerrar os olhos sem que se deparasse mentalmente com dois ou três diabretes a fustigá-lo com pontiagudos tridentes. À fúria dos ataques, opunha débil resistência, até que, preso pelos cornos que lhe cresciam, era conduzido para o fundo dos infernos. Ia ser arremessado em caldeira de óleo fervente mas acordava a tempo de se safar ao suplício. Esse o seu tormento.

Cansado de sofrer toda noite, pôs-se a meditar profundamente a respeito do que poderia significar aquela dramática representação cerebral. Reconhecia que se tratava de criação imagética da situação em que se viu conduzido à aceitação dos argumentos dos opositores do outro dia, mas não atinava com a razão de tamanha insistência. De início, supôs que poderia ter sido a vergonha de ter de admitir certa derrota vexatória no campo do conhecimento; como, porém, se sabia imperfeito, não via razão em não aceitar o fato inconscientemente.

Pensou que o sonho poderia ser-lhe sugerido por entidades espirituais e cogitou da possibilidade de serem espíritos amigos a forçarem-no a que refletisse a respeito de sua situação moral diante de tão grave disposição mental, a ponto de sofrer tão profundamente por se ver em inferioridade intelectual diante dos parceiros. Se, ao menos, fossem pessoas desconhecidas. Viu que aí poderia residir algo verdadeiro, embora julgasse o remédio excessivo para tão pequena moléstia.

Ao cabo da primeira semana de horrores noturnos, não havendo perspectiva de alívio, resolveu inocentar os bons amigos, pois via na repetição do fato extremada maldade. Sendo assim, nada mais lógico que atribuir os sonhos a entidades malignas, interessadas em fazê-lo sofrer por alguma razão desconhecida. Entretanto, como nunca admitira a hipótese da influenciação de caráter negativo, num de seus arrepios à doutrina, ficou a considerar a causa como advinda de energizações de possíveis desencarnados em vias de abandonar o planeta para se destinarem a reinos naturais de caráter mais grosseiro. Sua capacidade de assimilação vibratória é que possibilitava o contacto. Lutou por fortificar-se durante angustioso mês em que as preces mais pungentes nenhum efeito pareciam apresentar. Rogou de pé, de joelhos, deitado no leito, rojado no chão; dirigiu-se diariamente aos centros que freqüentava; participou de quanta sessão de desobsessão e doutrinação lhe foi possível; enfim, os diabinhos não foram embora nem com rogos diretamente feitos ao Pai.

Cansado de lutar sozinho, procurou os amigos do debate, expôs-lhes minuciosamente tudo o que lhe vinha ocorrendo e pediu-lhes, humilde, que o desculpassem por imaginá-los (não sabia através de que mecanismos) por trás da aflição noturna.

Os amigos ficaram admiradíssimos pelo que lhe estava acontecendo, mesmo porque haviam, inclusive, esquecido o incidente, embora se lembrassem que houvera discussão, tendo ficado a impressão de que o máximo que ocorrera fora a exposição de pontos de vista contrários. A argumentação, a temática e as circunstâncias do evento estavam dispersas na atmosfera mental, como o pó que se dissolve ao primeiro vendaval.

Sebastião dera ao fato importância superior. Os demais encaravam tudo como a luta de cada dia, mesmo porque seu interesse maior se resumia em auxiliar as pessoas. Se tivessem suspeitado de conseqüências tão funestas, nem teriam provocado a discussão.

Voltou bem tranqüilo para casa, certo de que, pela primeira vez durante semanas, os diabinhos iriam deixá-lo descansar em paz. Nem bem adormeceu, contudo, ei-los de volta, mais ferozes que nunca. Sobressaltado, Sebastião acordou justo no momento em que iria ser arremessado ao tacho. O corpo tremia-lhe todo diante do susto renovado. Pôs-se a lastimar-se da sorte e grossas lágrimas de desespero começaram a rolar-lhe pelo rosto. Lembrou-se das obras básicas da doutrina e predispôs-se a relê-las cuidadosamente, a fim de avaliar a quais temas opunha resistência, pois concluíra que era exatamente aí que estava o ponto: fosse a consciência a despertá-lo, fossem os bons amigos da espiritualidade, fossem espíritos zombeteiros ou inimigos, tudo demonstrava ser tão-só o efeito de causa mais íntima e essa, certamente, situar-se-ia nos domínios da vontade, do caráter e na manifestação do livre-arbítrio. Poderia ser que se tivera desviado demais do espírito da doutrina, mas por excesso de cuidados e por exagero de inteligência. Abriria os livros e aceitaria pacificamente cada ponto que lhe pudesse parecer falho, impreciso, incompleto, fantasioso ou imaginado. O que lhe parecia o mais importante era não mais ficar sujeito aos sobressaltos de toda noite. É bem verdade que conseguia dormir as suas horas corridas, mas passavam totalmente em branco para seu espírito, de modo que o corpo mantinha todas as funções em absoluta ordem. A mente é que ficava a ponto de explodir.

Na manhã seguinte, arrumou a estante e verificou que possuía todas as obras de Kardec. Tinha a coleção completa das obras de André Luís, muitas de Emmanuel, completando o acervo todo tipo de dissertação desde as obras de Flammarion, Léon Denis, Crookes, até as modernas psicografias do apóstolo Francisco Cândido Xavier, em que recém-desencarnados enviam consolo aos familiares e amigos. Revisaria tudo que lhe fosse possível. Começaria pelo opúsculo primeiro: O que é o Espiritismo?

Já na primeira noite, sentiu melhoras. O sonho fora o mesmo, mas, ao acordar sobressaltado, verificou que a aflição diminuíra. Viu-se no caminho certo e serenou.

Ao terminar O Livro dos Espíritos, era abandonado à porta do inferno e ali quedava só, até despertar pela manhã. Havia sofrimento ainda, mas não desespero. Com O Livro dos Médiuns, começaram a rarear os demônios que vinham acicatá-lo. Ao término da leitura, chegaram mesmo a assediá-lo, esquecendo-se de ferrá-lo com os tridentes. De obra em obra, o sonho foi diminuindo em intensidade até que, ao ler O Evangelho Segundo o Espiritismo, que deixara para o fim por crer que seu problema era mais técnico, filosófico e científico que moral, conseguiu dormir toda uma noite sem sonhos.

Começou, então, nova fase de sofrimentos. Se durante o sono não era mais atacado por representantes do báratro, preocupava-o, agora, o fato de não mais estar a sonhar. Tanto rogara para deixar de atormentar-se à noite que o efeito fora, sob certo aspecto, inteiramente desastroso. Após diversas semanas em branco, foi-lhe tomando conta da mente verdadeira alucinação. Precisava, urgentemente, ter alguma vida noturna, ou sufocaria de vez. Começou a temer o leito e passou a dormir onde se encontrasse, no receio de despertar em branco na manhã seguinte. Não houve desconforto físico que se representasse imageticamente no cérebro totalmente exaurido de fantasmas.

Alucinava-se quando recorreu à ajuda direta do orientador espiritual das sessões de doutrinação. Em meio à comunicação de certo mentor da casa, interrompeu-o e, em lágrimas, expôs-lhe a situação. A resposta obtida era de muito amor e consideração, mas não se estendeu para além da enigmática recomendação:

— Se você não consegue sonhar à noite é porque está obstando seus sonhos de vida. Veja que a solução para o bem interno está no relacionamento com a realidade externa. Procure em seus irmãos o socorro que você deverá dar a eles.

A frase fez sucesso na reunião que se seguiu ao encerramento dos trabalhos. Os que desconheciam os problemas íntimos intentaram fornecer-lhe indicações bibliográficas importantes: lesse isto, procurasse aquilo. Não havia, contudo, obra que Sebastião já não tivesse lido e anotado. Os que conheciam a angústia do irmão sorriram condoídos e admitiram que o remédio, como dissera a entidade iluminada, poderia ser a atitude que vinha tomando com relação a todos os amigos e companheiros, pois, desde há algum tempo, recusava-se a debater com eles os temas da doutrina, limitando-se a ouvir calado, no máximo, abonando algum ponto de vista com exemplificação colhida nesta ou naquela passagem.

Resolveram, de comum acordo, que iriam fustigá-lo intensamente nas próximas reuniões, obrigando-o a expor seus pontos de vista, mesmo que da discussão não se aproveitasse mais que a leitura inicial.

Assim se fez. Toda noite, antes de qualquer trabalho, reservou-se horário para discussões. Apenas para favorecer a participação do amigo, começaram todos a contrariá-lo frontalmente. Se dissesse que os espíritos demoram para reencarnar, opunham-se, dizendo que o reencarne era imediato; se dissesse que o médium poderia deixar-se obsidiar por entidades a quem desse guarida, ofereciam em resposta a possibilidade de os guias impedirem tal situação.

Durante bons quarenta e cinco dias, ainda Sebastião passava as noites in albis. Certa ocasião, ao se iniciarem os debates, o nosso herói abriu várias obras em pontos determinados para comprovar que as assertivas do grupo tinham sido absolutamente equivocadas, pois os pontos da doutrina estavam expressos com clareza. Encontrara os argumentos em Kardec, em Rochester, em Hermínio Miranda e nas mensagens da Escolinha de Evangelização. Trazia a prova provada através de manuscritos dos próprios companheiros durante as sessões de psicografia. Pesquisara as gravações mas inutilmente, contudo, o que trouxera parecia-lhe concludente.

Nesse ponto, atreveram-se a manifestar-se, dizendo que a discussão não girara em torno do aspecto citado. Que acontecera a ele? Estaria sonhando?...

Deveras, sem que tivesse percebido, desde algum tempo, Sebastião debatia com os colegas durante o sono vários pontos da doutrina e com tal ênfase que unira a realidade ao devaneio, de modo que tudo lhe parecia girar em torno de único eixo vital.

Consultado o mentor da casa, este disse:

— Não demorará muito para o caro irmão passar por outro suplício. Saberá caracterizar o momento exato da ação regenerativa concernente à causa da aflição, entretanto, se quiser superar definitivamente esse modo de operar a realidade consciencial de sua vida, deve buscar na alma o amor que lhe imprimiu o Pai ao criá-la. Desperte-a para o mundo, volte-a para o próximo, arremesse-a para Deus e tudo lhe será dado por acréscimo de misericórdia.

Hoje, Sebastião ouve pacificamente as exposições dos amigos, expõe dúvidas, estabelece roteiros de estudo, participa de todos os trabalhos do grupo, mas, de vez em quando, tem uma ou outra crise que o joga para áreas novas de atuação no trabalho de assistência aos irmãos necessitados. Aos poucos, no entanto, está aprendendo a agir por livre iniciativa, segundo os ditames mais rigorosos da doutrina.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui