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Artigos-->Porque as margens ouvem -- 01/03/2007 - 07:10 (Nelson Maia Schocair) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Ao ter indicada a leitura de um artigo sobre o “descompromisso com a verdade histórica”, ou sintática, ou morfológica, ou confusão semelhante, no que concerne à letra do Hino Nacional Brasileiro, percebi que o articulista implicava especialmente com a frase inicial do referido Hino “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / de um povo heróico o brado retumbante” que, lida de forma literal, denota uma indeterminação do sujeito. Insistia ele ter apreendido, quando menino, que havia crase em “às margens plácidas”, o que corroboraria com a tese da tal indeterminação, haja vista “Ouviram” não se referir a nenhum ser em particular. Consoante afirmação própria, NUNCA ouve o “Brado do Ipiranga”, forjado para ilustrar um ato administrativo sem outras testemunhas – principalmente de uma simples margem de riacho – que não os articuladores da Independência.



Mais à frente, implica com outras frases igualmente metafóricas, esnobando a complexa arte da conotação, ao afirmar que não se pode “conotar o que não se baseia na realidade, no fato”. Ou seja, se não ouve o “brado”, não se pode afirmar que as margens ouviram-no. Entende-se a dúvida, afinal, nem todos dispõem de bagagem cultural suficiente para compreender os ditames da análise contextual.



O ideário temático, na composição da letra do Hino Nacional Brasileiro, não pode ser analisado apenas à luz da gramática, é imprescindível a adição dos conceitos da literatura. Essa junção é complexa, por isso é perfeitamente possível entender a dificuldade de se penetrar no campo sinuoso do sentido figurado, já que este passeia pelos meandros do desconhecimento literário, não tanto quanto à definição primordial de seus Gêneros – Dramático, Lírico, Narrativo –, mas quanto às divisões dos Estilos que os compõem. Portanto, não nos apeguemos à divisão dos Gêneros, mas à compreensão dos Estilos, sobretudo, o Lírico.



Hino é um tipo de composição em versos que cumpre o fim precípuo de “enlevar, exortar, elogiar, louvar” uma divindade (função principal); uma associação ou agremiação; um ser a quem se admira; ou uma Instituição, caso específico dos Hinos Nacionais ou de seus Símbolos (vide o Hino à Bandeira). Na medida em que tenciona enaltecer, essa composição lírica tende a se de utilizar artifícios laudatórios, honoríficos ou ufanistas a fim de cumprir sua função naturalmente CONOTATIVA.

Quando um hino, instrumento de louvor, exorta “Jesus, mostra ao mundo a grandeza de Te louvar com fé, / Orar e ouvir a Tua voz em nós”, a que voz o autor se refere? Quer o criativo cristão, realmente, aludir à razão ou à emoção? Ouvem-se e entendem-se os ensinamentos de Jesus Cristo com seu aramaico antigo e quase indecifrável? Dispõe o autor desses versos de um tradutor instantâneo ou será que mais um milagre é operado pelo Grande Sábio a fim de que a voz, o idioma, sejam compreendidos? Não precisaria discorrer mais para obter uma resposta plausível: ou se tem fé, ou não se “ouve” a Sua voz.



Um dos mais laureados clubes de futebol do Brasil, em seu Hino Popular (composto pelo grande Lamartine Babo), em certo trecho alerta: “Salve o querido pavilhão / das três cores que traduzem tradição / a paz, a esperança e o vigor / unido e forte pelo esporte/ eu sou é tricolor”. Gostaria o (a) leitor(a) de pintar as paredes de sua casa com tinta “paz”; possuir um carro cor de “esperança”, ou ainda, vestir um paletó ou um vestido tom de “vigor”? Reflita: construiu-se um contexto real, denotativo, ou se queria dizer paredes brancas, carro verde e paletó ou vestido vermelho – neste caso, grená? Entretanto, não haverá poética suficiente na determinação adjetiva das cores, se não estiverem associadas ao lúdico lirismo de sua concepção de amor e de paixão clubística.



Da mesma forma, quando os apaixonados Pixinguinha – um dos mestres da MPB – e Otávio de Souza declaram seu amor por uma mulher, usando tons azuis de pena de tinteiro e acordes em tom maior: “Tu és divina e graciosa, estátua majestosa / do amor por Deus esculturada e formada com ardor / da alma da mais linda flor de mais ativo olor / que na vida é preferida pelo beija-flor”, eles o fazem com tamanho sentimento que a elevam a duas categorias que a distinguem de outros seres humanos: a divindade “divina” e a reificação “estátua” e a aproximam da característica típica do Simbolismo de Cruz e Sousa ou de Mallarmé. Mais uma vez a exaltação a uma divindade estatuária promoveu o encontro paradoxal entre o real e o figurado.



Ao analisar o Hino Nacional Brasileiro, é possível compreendê-lo sem a má vontade que caracteriza o cético, o qual se arvora de deus da crítica, como parte de dois estilos literários, independentemente de sua formatação lírica: o Romantismo e o Parnasianismo. Embora pudesse descrever o andamento de sua melodia, cabe aqui apenas a leitura poética como premissa maior deste artigo. A discussão deve ser histórico-literária.



O Romantismo europeu do século XVIII chegou – com atraso – ao Brasil, em 1836, pelas mãos do poeta Domingos José Gonçalves de Magalhães com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudade, cujo título já traz, em si, marcas CONOTATIVAS em sua concepção lírica. Ou alguém imagina que num suspiro possa estar contida a essência da poesia? Quero crer que o título do poema é sintomático. Porém, o poeta que de fato consolidou esse estilo em Pindorama foi Antônio Gonçalves Dias com sua “Canção do Exílio”, composta em Portugal, no ano de 1843: “Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá”. Pronto! Iniciava-se a fase Nacionalista ou Indianista cujas bases calcavam-se na PERSONIFICAÇÃO da terra, com a supervalorização da natureza; no UFANISMO não-nacionalista ou xenófobo, porém, afeito à doutrinação do amor incondicional pela recém-soberana nação brasileira; e na exposição do ÍNDIO, como o verdadeiro herói nacional.



Por outro lado, o Parnasianismo – corrente poética do Realismo psicológico de Machado de Assis e do Naturalismo cientificista de Aluísio Azevedo – teve, em Olavo Bilac o seu “Príncipe” (sem cetro e sem coroa), em Alberto de Oliveira (seu sucessor, igualmente sem aparatos honoríficos) e em Raimundo Correia os artífices de uma linguagem perfeita, métrica, rima, sonoridade ideais a serviço de uma arte que buscava a perfeição da forma e a beleza do vernáculo baseadas na escola grega clássica – Parnaso origina-se de Parnassus, região de montanha da Grécia, onde, segundo a lenda, moravam as Musas. No entanto, quando muito se esmera em intentar a perfeição, esbarra-se, paradoxalmente, na insanidade da imperfeição. O desrespeito voluntário à ordem direta dos termos e das orações cria o caos sintático que dificulta a compreensão do conteúdo. Leia a segunda estrofe do soneto “A um poeta”, de Olavo Bilac: “Mas que na forma se disfarce o emprego / Do esforço; e a trama viva se construa / De tal modo, que a imagem fique nua, Rica, mas sóbria, como um templo grego”. Em ordem direta teremos: Mas que se disfarce o emprego do esforço na forma e se construa a trama viva de tal modo que a imagem fique rica, mas nua e sóbria, como num templo grego.



Entendendo-se esses dois estilos, pode-se voltar à análise em questão.



Como Hino, posto está que “precisa” cumprir sua função ufanista “Ó Pátria Amada / Idolatrada / Salve! Salve!”, e o vocativo cumpre bem a sua função evocativa tal qual ocorre em outras partes, afinal, conversa-se com a Pátria, como se de vida própria ela desfrutasse. Noutro segmento encontramos: “Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores”. Novamente a Pátria é “mãe” que nos acolhe em seu seio (de Mulher, de Mãe, com perdão a Caetano Veloso, de Mátria). Nesse caso, a referência ao Romantismo é tão flagrante que, hoje, possivelmente, Joaquim Osório Duque Estrada seria processado por plágio por Gonçalves Dias ou seus prepostos já que não eram contemporâneos. Não há dúvidas, pois, que a letra do Hino cumpriu o esperado dele quanto ao tom laudatório a que se propunha.



Da mesma forma, ao lermos em seus versos “lábaro, plácidas, fúlgidos, penhor, garrida, impávido, colosso”, encontramos o elaborado vocabulário usado na composição dos textos parnasianos. Hoje leríamos, respectivamente: estandarte, tranqüilas, brilhante, garantia, destemido, gigantesco. Além disso, as desaconselháveis inversões sintáticas eram usadas para que houvesse harmonia entre letra e sonoridade. Analisemos outro trecho: “Se o penhor dessa igualdade / Conseguimos conquistar com braço forte, / Em teu seio, ó Liberdade, / Desafia o nosso peito a própria morte!”



Ponhamo-lo em ordem direta: Se conseguimos conquistar o penhor dessa igualdade / com braço forte, / Ó liberdade, / nosso peito desafia a própria morte em teu seio!



Ao fazermos a leitura das formas verbais empregadas, temos um caso típico de ENÁLAGE – uso de forma verbal em lugar de outra, mais precisa. Foi utilizado pelo autor o presente histórico no lugar do futuro do presente: “Amanhã eu estudo, mãe!” ou “Só vou à praia no feriado.”, frases tão comuns em nossas lições do cotidiano. Essa substituição estilística justifica o uso da conjunção condicional (se) em tempo e modo verbais não hipotéticos – presente do indicativo. Numa leitura mais atual teríamos: “Ó Liberdade, nosso peito (vontade) desafiará a própria morte em teu seio (chão) se conseguirmos conquistar as garantias dessa igualdade”.



Outros trechos que suscitam críticas – como renitentes palavras de ordem – aludem ao “Gigante pela própria natureza (...) / Deitado eternamente em berço esplêndido”. Os apologistas do caos associam, com profundo desconhecimento artístico, a frase “Brasil, País do futuro!” com a que declara “e diga o verde louro dessa flâmula / paz no futuro e glória no passado”. Os ditosos críticos usam falácias do tipo: “...o futuro nunca chega!” ou “Futuro... do subjuntivo!”, além de outras menos afeitas a trocadilhos. Em primeiro lugar, “Gigante”, o Brasil o é pela extensão de seu território e pela exuberância de sua natureza; em segundo lugar, “Deitado” não que significar “na cama, preguiçosamente escarrapachado”; antes, denota tomar assento, estabelecer o seu lugar no rol das nações livres e soberanas. Mais uma vez o sentido figurado é força que emana da criatividade, do imaginário de um eu-lírico extasiado por sua conquista. Como na mitologia grega os Titãs eram gigantes que pretendiam ascender ao Olimpo para destruir Júpiter, a fim de tomarem seu trono, o gigante Brasil assenta seu lugar no altar da história ilustrada pelos artífices romântico-parnasianos.



Diante da exposição histórico-literária, nada mais natural do que entender que “margens ouvem” como testemunhas oníricas e simplórias de um ato que provavelmente jamais ocorreu: o Brado do Ipiranga. Da mesma forma que ela, a “Pátria amada” pariu os filhos deste solo como autêntica e titânica mãe gentil. Salve! Salve!

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