O trinco deu um estalo e a porta do quarto se abriu. Corina vê a boneca embrulhada em panos de dormir.— Vovó! Emília estácute; aborrecida comigo.— Por que sua boneca estácute; brava contigo?— Dei uma palmada no bumbum dela.Corina fez uma retrospectiva do que ocorrera naquele dia, e se recorda de que, ainda cedo da manhã, “acariciara” o traseirinho de Ravenala, com uma palmada, por causa de uma travessura.— Durma, minha filha! Assim que o sol nascer, você pedirácute; desculpas a Emília!— E se o sol não nascer de novo? Tenho medo de escuro! Não deveria haver noite! Vultos vagueiam. Vampiros e lobisomem passeiam na escuridão.— Isso é lenda!— A carimbamba também é lenda? Tenho medo da carimbamba.— Às vezes, a ficção avança os muros da realidade ou a realidade penetra o labirinto da ficção. O que hoje é ficção, amanhã pode ser realidade, mas monstros não existem. Eles são obras criadas por mentes doentias.Ravenala insiste.— A carimbamba existe? — Quando se acredita numa coisa, ela passa a existir de verdade. Mas a carimbamba só existe em teus medos. E agora que ela se casou com a mocinha camponesa, o encanto foi quebrado.— E a velhinha?— Bem, a velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor, para que a história nunca acabe, continue viva e passe de geração para geração. A ficção mostra-se tão real, que personagens dos contos de fadas saem dos livros e vão morar em mundos reais, como a tua boneca. Sabes de onde ela veio?— Emília me falou que seu pai era um homem bom, e foi preso, porque escrevia livros. Se eu escrever um livro, também serei presa?— Não dê crédito a tudo que diz uma boneca. Agora, durma, Princesinha.Corina retirou-se. Seus passos lentamente se afastavam, até desparecerem do alcance auditivo da neta.— Pode acordar, Emília, a vovó jácute; foi.— Ufa! Jácute; estava cansada de fingir.A boneca Maria Emília fechou as cortinas do silêncio e dormiu. Não sem antes questionar: "Jácute; não sei se sou personagem da ficção, vivendo a realidade humana, ou um ser humano, vivendo uma ficção.*** Adalberto Lima, trecho do livro "Estrela que o vento soprou"
Adalberto Lima
Enviado por Adalberto Lima em 12/11/2019 Reeditado em 12/11/2019