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Contos-->EM NOME DA NOSSA AMIZADE -- 08/05/2002 - 21:06 (Paulo de Goes Andrade) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Em nome da nossa amizade

Paulo de Góes Andrade


Na saída do teatro, dois largos sorrisos e um forte abraço festejaram o encontro dos dois amigos, que não se viam há muitos anos. Cristiano, aquele mulherengo, desde adolescente, que não trocava um “rabo-de-saia” por um jantar com o presidente da República, se isso acontecesse. E Antero, bem comportado, o bom menino que sempre foi. Talvez só admitisse sexo no casamento, imaginava o amigo. Espelhava-se no pai em andar na linha. Constituiu família cedo. Casou-se com uma evangélica, contrariando a mãe, dona Zilu, fervorosa católica.
Viram uma comédia, em cartaz por várias semanas. Os intérpretes, do tempo de Walter Pinto, o diretor das revistas da praça Tiradentes, não eram conhecidos para Antero, que não se ligava em teatro, tampouco nos atores daquela década dos anos 60.
- Táxi! Táxi!
Cristiano enfiou a mulher que o acompanhava no automóvel, que rumou para a zona sul. Puxou o amigo pelo braço até um botequim da esquina, onde mais pessoas se juntaram após a sessão do teatro. Apertaram-se entre os fregueses e chegaram ao balcão. Não resistiram ao vício brasileiro do cafezinho.
Livrou-se da dona para estar com o amigo. Evitou apresentá-la. Um dia apresentaria coisa melhor. Prometeu. Não sabia quando. Mantinha-se adverso ao casamento. “O matrimônio é um “fardo pesado” de obrigações. Em geral, não dá certo. Sempre tem um parceiro esperto que passa a perna no outro.
- Ou enfeitando a testa com chifres, ou fazendo dele (ou dela) um “luluzinho” encoleirado, sem liberdade. Considerava.
A mulher que o acompanhava não era garota de programa - nome mais distinto para prostitutas dos dias de hoje - essas que acompanham até executivos. Era mais uma vulgar. Antero notou o jeitão de rameira, que por mais que disfarce, não perde a identidade. O andar, a maneira de vestir e a maquiagem revelaram-na nitidamente.
Cristiano, desavergonhado, andava com qualquer uma por toda parte. Com mulher não tinha preconceito. Loura, morena, negra, magra. Até gordinhas! Caiu na rede, é peixe. Usava o dito popular. Um dia, convidado por um convidado para um casamento, entrou na Candelária de braços com uma dessas piranhas. Os presentes se entreolharam.
- Até os homens, com caras de bons-moços, como se nunca tivessem transado com prostitutas! Uns fariseus, meu irmão!
- Fariseus? Por quê fariseus?
- Por quê? Porque são uns fingidos! Uma cambada de sem-vergonhas! E de cornos também. Não duvido nada, sabe?
- Ah... é...? Antero aceitou a comparação do amigo...
O zunzunzum generalizou-se entre as melindrosas madames. Até o reverendo acompanhou, com reprovação, por cima dos óculos meia-lua.
- Foi um vexame. A minha intenção foi afrontar essa sociedade hipócrita! E agora, mais bajuladora e mais servil ainda. Entendeu, né...?
Antero apertou o dedo indicador na boca pedindo, no gesto, que Cristiano calasse o “bico”. Os militares estavam no poder. A repressão estava pelo país inteiro. Todo mundo desconfiava de todo mundo. Em toda parte alcagüetes se infiltravam a serviço do golpe de 1964. Cristiano podia se exceder e dali mesmo ser convidado, com peculiar delicadeza, a dar um passeio num camburão da PM. O policiamento ostensivo estava na rua.
Admirador de Marx e Engels, Cristiano, no fundo, era um “comuna” revoltado que viu escorrer pelo ralo a filosofia dos dois teóricos do comunismo. As mudanças sociais da revolução de 1917 ficaram na História. Pelo menos no Brasil.
Ele entendeu a advertência de Antero.
O cafezinho despertou o nacionalismo de Antero, que não se conformava com o abuso de estrangeirismo entre nós. E desabafou com discrição:
- Por quê não intitularam logo a merda dessa peça de Body and Soul. (O nome reluzia em gás neon: Corpo e Alma).
- Tudo nesse Brasil tem que ser americanizado! Pra quê importar esses modelos, pombas!? Copiar tudo que se vê nos Estados Unidos?
- Olha os nomes das lojas por aí afora! É Miame Shop, Golden House, Texas Barrr…, puxou pelo “r”, e outros tantos, que muita gente nem sabe pronunciar. Breve o nosso guaraná vai mudar para Amazon-guarana, para concorrer com a Coca-Cola, se antes não for encampado por esse truste.Você vai ver! Cristiano concordou.
Antero herdou o espírito nacionalista do pai, que era militar, agora reformado, do Exército. Da mãe, certos princípios religiosos. Nunca foi um papa-hóstias, mas respeitava a dedicação de dona Zilu com a igreja católica do bairro. Discordava, apenas, sem se manifestar, da sua idolatria aos santos de madeira que mantinha num oratório, que ganhou de presente do marido.
O enredo da peça, bem ao gosto de Cristiano, mostrava um velho burguês, solteirão, luxurioso e feio, no tempo do Império, representado por um ator que lembrava Procópio Ferreira, que fazia de sua mansão um paraíso de prazeres mundanos. Os bailes semanais atraíam figurões da alta sociedade da Corte que disputavam, entre bebedeiras e cantorias, diversas cortesãs, que hoje são chamadas mesmo de putas. As cenas, no palco, lembravam, na concepção de Antero, uma Sodoma. Mais moderna, é claro.
Cristiano, debochado, afirmava que “sexo é sexo em todos os tempos, desde o Paraíso, quando Adão tirou o cabaço de Eva”. Os sodomitas (será que assim se chamavam?) não eram diferentes, “trepavam à la papai-mamãe, mas as aberrações existiam e eram praticadas a valer”.
- A mulher de Ló, você não vê, curiosa como toda mulher, quando fugiam para aquele lugar chamado Zoar, segundo a Bíblia, não virou uma estátua de sal? Você sabe disso melhor do que eu. Por quê aquilo? Devia estar pensando nas tantas variações sexuais a que, pelo menos, assistiu. Se não as experimentou. Não duvido nada!
- Você continua o mesmo irreverente! Interrompeu Antero. Pra quê misturar alhos com bugalhos? Comparar passagens bíblicas com a nojeira desse teatro? Toma vergonha nessa cara, Cristiano!
- Sem essa, mano! Revidou. No palco nem houve cena de incesto, como praticaram as filhas de Ló, que meteram vinho na cuca do velho e treparam com ele e se engravidaram! E já viviam bem distantes de Sodoma. Atente pra isso!
- Eu sou realista e não materialista como me considera. Sei até que se chamavam Moabe e Ben-Ami os filhos incestuosos daquelas putinhas! A sacanagem já era difundida desde aquele tempo, Antero! Não me venha com santidade não, que não cola. Caramba! Pra não dizer caralho. Desculpe! Eu sempre fui assim desbocado. Você me conhece. Você sabe também que a Bíblia está cheia de muitas outras aberrações sexuais. Ou não sabe?
Cristiano não acreditou na disposição de Antero em assistir à peça.
- Você sabe que eu sou macho tanto quanto você, mas não me entrego totalmente aos prazeres da carne. Sexo, eu sei que é bom. E Deus assim o fez para a procriação. Se fosse ruim, sem graça, sem orgasmo, não é assim que você acha? Ninguém, nem o macho nem a fêmea se interessariam por isso. O mundo seria um vazio, um deserto, porque homem com homem, ou mulher com mulher, não povoariam a terra!
- Vim ver a comédia para comprovar se recomendava trazer Anita, minha mulher, para assisti-la. Ela gosta de teatro, mais do que eu.
- Não gostei, disse Antero. Eu gostei, contrariou Cristiano. Você acredita que eu até me excitei? Se você não tivesse aparecido, eu ia comer aquela guria logo depois de tomar um lanche com ela. Mas, em nome da nossa amizade, preferi despachá-la para recordarmos os bons tempos... Aquela época que você nem pensava andar com uma Bíblia debaixo do braço, procurando convencer alguém a aceitar Jesus. Será que quer me converter também?
- Não! Estamos aqui para reviver lembranças. Contudo, meu irmão, eu sei que você não é um caso perdido. Ainda vai “acordar” para a verdade. Tenho certeza.
- Vou aceitar Jesus? É isso que quer dizer?
- Isso mesmo!
- É... Pode ser... Mas, aquela dona, que nem te apresentei, diz que largou um tal sujeito, com quem vivia, porque o cara “cortava” dos dois lados. Era um “gilette”. Sabe o que é isso? Ou não? É que ele metia com ela, uma vez ou outra, mas adorava tomar na bunda. Contou-me que deu um “flagra” no puto deitado com um macho na cama do casal. Os dois peladões. Já pensou que quadro, meu chapa?
- Brother, a escassez de homem com H no mercado está grande demais! Deve ser por isso que muitas mulheres estão virando “sapatão” a-doi-da-do. Isso mesmo, a-doi-da-de-o-dó...
- Você sabe que eu até aceito essa sodomia de mulher com mulher? Agora essa sacanagem de veado com mulher, ou veado com veado. Paciência! De jeito nenhum!
Antero quis saber o nome da mulher.
- Cristina. Mas quer que a chame de Cris. Frescura daquela coisa! Diz que está sozinha agora. Jurou. Não arranjou outro, e anda pedindo pra eu mudar pro apartamento dela no Leme.
- Estou sentindo que quer se enrabichar comigo. Logo comigo! Coitada... Pensa que eu só trepo com ela. Pode?
O amigo continuava o mesmo. Hoje, ainda mais pornográfico e cheio de gírias. Diante de tantas expressões chulas, não adiantava insinuar uma vírgula sequer de evangelização.
- Eu até que podia dizer para Cristiano o que está em Eclesiastes 12:1 – Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais venhas a dizer: Não tenho neles contentamento. Mas..., não! Em vez disso, seria melhor dá-lhe uma lição de moral; reduzi-lo a zero. Dizer que precisava “se encontrar”; que era uma ovelha desgarrada do rebanho do Senhor. Se conhecia algumas passagens da Bíblia, por quê não entendia o amor de Jesus? Não precisava ser membro dessa ou daquela igreja. Bastava se juntar aos bons para ser um deles. Viver em sociedade. Não nessa hipócrita, bajuladora e servil, como considerava, de ricaços falidos, que se dizem cristãos. Mas, com gente da sua espécie, da sua classe, da sua estatura intelectual. Um monte de conselhos, enfim.
Também, só pensou, olhando nos olhos do amigo. Não adiantava. Cristiano sempre foi um sacana. Iria ridicularizá-lo com chacotas bem próprias dele. Ponderou, então. Na igreja, providenciaria uma corrente de orações a seu favor. Melhor mesmo era ir embora. Arranjar uma mentira.
Desculpou-se com os Céus. Pediu perdão a Deus e... sacou uma dessas mentirinhas sociais, que tanto nos livram de certos embaraços:
- Ainda vou à Rodoviária. Anita está chegando de Juiz de Fora no ônibus das 20 horas.
Vieram ainda outras recordações, como o tempo do grupo escolar, a rua onde residiram em Madureira, os tombos que tomaram pulando dos bondes em movimento. Cristiano não esqueceu a coleguinha Suze, que não gostava de se chamar Suzana, e era taradinha para ser bolinada por eles nas brincadeiras “de se esconder” debaixo da cama dos pais de Antero.
Antero seria pastor no mês seguinte. Cristiano continuava empregado na “Ligth”.
- Táxi! Táxi!
- Tchau, Cristiano!
- Tchau, meu irmão!
Nunca mais se avistaram.



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