Eu era criança e não sabia, e não sabia do tempo. Até mesmo porque criança não tem tempo, sempre se atrapalha com os dedos quando mostra a idade.
As crianças não são do tempo, não precisam do temp9o, não existem para isso. Vivem todas sob o encanto da fada madrinha e, portanto, simplesmente elas são e estão em algum lugar existindo.
Conheci muita criança que aguardava ansiosa seu irmãozinho chegar da maternidade para levá-lo imediatamente às corridas do descampado. Sonhava em dividir as roupas, os sapatos, as meias e, por isso, ter maior variedade; em dividir os legumes das sopas, o xarope, a gripe, a culpa dos vidros espalhados e outras obrigações de criança.
Mal podia esperar o momento para apostar corrida com ele, como faziam todos os irmãos conhecidos. E, o que era mais importante de tudo: unirem-se na corrida contra os irmãos vizinhos. Afinal, todos corriam com todos o tempo todo mas, os irmãos se uniam na corrida contra os outros irmãos vizinhos e os irmãos da rua inteira se uniam na corrida contra os irmãos da rua de baixo e todos os irmãos da cidade se uniam nas corridas do parque de diversões nas festas da praça central.
Correr! Correr! Este era o tempo. Abrir o corpo, acompanhar o vento na subida e na descida. Correr de lado, de frente, de costas, em todas as direções. Correr rodopiando, dando as mãos, abrindo os braços, imitando pássaros, em todos os sentidos, correr sem sentido.
Às vezes a queda era inevitável e já fazia parte da brincadeira de correr. Era divertido descobrir de quem era a vez de cair. Havia quedas de várias modalidades e tamanhos: queda de lado, de frente, de costas, rodopiante... a queda rodopiante era a mais difícil de todas – exigia uma certa experiência acrobática.
Depois da queda o maior triunfo era chegar no descampado, no outro dia, com as pernas divididas em pequenos e grandes cortes pintados de mercúrio. Era motivo de honra e glória a arte daquela tinta divina na carne humana. Mercúrio de lado, de frente, de costas, rodopiante, em todos os sentidos. Quanto mais mercúrios, mais velozes nos tornávamos.
Custava entender porque as crianças que vêm da maternidade não sabiam correr.
Custava mesmo era entender porque as crianças de braços e pernas compridos não esbugalham os olhos diante do sorvete vermelho, nem os deixa cair e colorir com novos tons a farda da escola. Também não correm acompanhando o vento do descampado, assim como fazem as crianças de braços e pernas certos, desconfia-se que seja por causa do tamanho dos seus membros, eles não saberiam o que fazer com os centímetros que sobram.
Pobres crianças compridas! São inválidas para acompanhar o vento.
E os pais? Bem, os pais não são crianças de braços e pernas importantes. São crianças que já nascem pai e mãe. Sempre estiveram ali.
Meu pai, que sempre estava correndo, vivia me dizendo que não tinha tempo para nada; nem mesmo para me ver correr no vento, já que não tinha tempo para isso.
A minha mãe, que corria feito uma louca (conforme ela mesma falava), vivia me dizendo que há tempo para tudo: tempo para correr, tempo para sentar na cadeira da escola, tempo para ajoelhar, tempo para descansar, tempo para deitar e dormir.
Nunca entendi muito bem as crianças compridas.
Meu pai às vezes olhava a chuva pela janela e dizia: “hoje não está um bom tempo”. Para nós, crianças encantadas, não existiam dias de “bom tempo” ou “mal tempo”. Havia só dias. Se tivesse sol era dia de correr levantando poeiras brilhantes; se tivesse chuva, era dia de escorregar no barro e de sorrir molhado.
Na escola a professora que também era tia mas que não era irmã do meu pai nem da minha mãe, insistia par que eu soubesse todos os tempos dos verbos: verbos do tempo passado, do presente e do futuro; verbos para o tempo de ida e de volta; verbos para passar, para dar presentes e para ir embora; verbos para falar e até para calar; verbos perfeitos e imperfeitos; verbos das pessoas sozinhas, das acompanhadas e de todas as outras juntas; Verbo que era Deus; verbos para dizer se já era tempo; verbos para passar o tempo; verbos de vida e de morte; verbos para correr. . .
Descobri que estas eram as palavras mágicas que desfaziam o encanto das fadas.
Sendo isso, um novo tempo apareceu nos meus olhos. Rapidamente ele bebeu a minha boca e se espalhou pela cabeça. Foi tomando o peito passa à passo até alcançar as pernas.
No dia seguinte os braços e as pernas acordaram compridos. Pela primeira vez usei guardanapo para corrigir o gelo na boca. Não sabia mais correr acompanhando o vento no descampado; já não sabia levantar poeiras brilhantes sob o sol e não sorri molhado para a chuva.
Sabia agora, assim como sabia a minha mãe, porque havia tempo para tudo. Era tempo demais para uma criança sem tempo. E assim, sem tempo para ser criança, soube, assim como sabe o meu pai, que não há tempo para nada.