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Contos-->33. O ANJO DECAÍDO -- 06/05/2002 - 06:48 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Sob título tão sugestivo, o irmão Otávio escreveu alentada mensagem que transmitiu, com muito amor, através de seu escrevente, para conhecimento da humanidade. Tão incertos são os caminhos do mundo, tal texto foi ter às mãos do confrade Valdomiro, pessoa equilibrada e surpreendentemente cônscia de todas as obrigações carnais. Até então, só tivera na vida momentos de extrema felicidade e se sentia fortemente apaniguado por realizar tudo de modo fácil e valoroso.

Ao contatar o texto, sentiu frêmito interior a indicar-lhe que algo havia ali que bem de perto poderia interessá-lo. Em casa, abriu o libreto na página indicada e começou a leitura de modo atento e sagaz. No entanto, a cada passo, após a decifração de cada mínima palavra, suspendia a leitura e divagava imerso em sonhos e elucubrações inteiramente estranhas à sua personalidade, sempre tão objetiva e operosa.

Leu ali, finalmente, que os anjos decaídos, na realidade, eram criaturas humanas que haviam incidido em muitas falhas e que mereceram, como castigo cármico, o sofrimento mais atroz, na tentativa de levá-los a compreender que o amor é que deve construir a felicidade dos seres e não o ódio, a revolta, a rebeldia. A dor era sinônimo de oportunidade de superação das deficiências e a ascensão aos céus só se daria após a compreensão do valor das virtudes, dentre as quais resplandeciam a piedade para com os semelhantes, a caridade e a humildade.

Sentiu-se Valdomiro orgulhoso por ter resistido até então a todos os assédios da vaidade, do egoísmo e do descrédito da divina justiça. Agasalhou junto ao peito a elucidativa mensagem e prometeu prosseguir trabalhando honestamente, para fazer jus às promessas divinas.

Mal sabia que estava sendo sondado por forças malignas que bem poderiam fazer por merecer o epíteto de anjos decaídos. Mas a sua euforia fê-lo esquecer-se dos amigos da espiritualidade e sentiu-se forte em si mesmo para enfrentar o mundo.

Um dia, estando entediado por terem saído os familiares, cansado dos programas da televisão, aborrecido com as leituras constantes que fazia, relembrou os primeiros tempos de labutas no espiritismo e desejou reencarnar-se, se assim lhe fosse concedido, emérito escritor de obras morais para poder sintetizar a fé, a esperança e a caridade em um único volume de muito conhecimento e de muita luz. Esse devaneio fê-lo acrescentar mais sonhos ao sonho e foi levando a fantasia de encarne em encarne até atingir o píncaro da mais magnificente luz. Compôs-se com Jesus e imaginou-se transvestido em redentor da humanidade. Sentiu na pele a frieza do aço adversário, viu rasgarem-se-lhe as carnes sob o açoite impiedoso, percebeu a escorrer-lhe o sangue pelo rosto sob o impacto doloroso da coroa de espinhos, ouviu os impropérios mais pungentes e confrangeu o coração ao perceber que os cravos lhe penetravam os pulsos e os calcanhares. Ao sentir-se no ar, positivamente começaram a borbulhar-lhe por todo o corpo gotículas de suor. Espantou o efeito da figura que o sufocava e voltou à realidade de sua condição. Despertara-o o vazio que viu diante de si no campo espiritual. Se morresse ele, Valdomiro, mesmo tendo propiciado à humanidade enorme benemerência, iria capacitar-se a ascender à casa do Pai, como Jesus o fez?

Tal meditação levou-o a considerações mais terra-a-terra a respeito das realizações de Jesus. Como poderia, vestido com a mesma densidade corpórea, realizar feitos tão notáveis como andar por sobre o mar, efetuar curas, discursar para multidões e até mesmo expulsar demônios e ressuscitar cadáveres? Se quisesse ter a glória de tornar-se um dia salvador da humanidade, precisaria, desde já, iniciar a peregrinação do amor.

Não titubeou e, aproveitando-se da ausência da família, saiu em meio à chuva e dirigiu-se ao hospital da cidade, para obrar em harmonia com as forças do universo espiritual, objetivando levar aos companheiros, nos leitos de dor e sofrimento, a esperança da convalescença.

Conhecido dos médicos, enfermeiros e atendentes, em hora de visitas, penetrou sem causar estranheza e buscou entre os leitos da enfermaria aquele que sofrera a desdita de não ter recebido qualquer parente ou amigo. Estava ali o bom Jovelino, preto velho, desdentado e agonizante, apto a receber o influxo revitalizador da energização fluídica e magnética.

Sem prévio aviso, ordenou à inconsciente criatura que se erguesse do leito, pois estava curado. Não precisava de fé, pois a força curativa do médium iria propiciar-lhe o restabelecimento necessário.

O pobre velho despertou assustado e mal teve forças para divisar a figura que o estimulava a erguer-se. Era a gota d água que lhe faltava para entornar o copo da vida. Morreu naquele mesmo instante, ao influxo da intempestiva manifestação de poder do nosso Valdomiro.

Tendo chamado a atenção para si pelo desajeitado gesto e pela tonitruância da voz, foi logo cercado pelos circunstantes para conhecimento do que ocorria. Chegado o médico, constatou-se o trespasse. Valdomiro perturbou-se no imo da consciência, mas exteriormente nada demonstrou. Com largo gesto, afastou os presentes e, dirigindo-se ao cadáver, incitou-o a restabelecer a vida, conclamando-o:

— Levanta-te, Lázaro, e anda, para honra e glória do Senhor!

Não é preciso dizer que foi tido como louco e internado na ala de isolamento psiquiátrico do hospital, enquanto era convocada a polícia e advertidos os familiares.

Após longas tratativas, lograram os filhos conduzi-lo de volta para casa, livrando-o das garras ávidas dos policiais que desconfiavam que o preto velho havia sido assassinado. Não havendo motivo para o crime, acederam em liberar o prisioneiro, não sem antes indiciá-lo em homicídio culposo. Fixada a fiança, eis que Valdomiro pôde safar-se da cadeia.

Em casa, estupefação geral. No centro, incertezas e indecisões. No etéreo, constrangimento e impossibilidade de acesso à mente perturbada. Chamados os guias da entidade em desequilíbrio, contaram o que se passava no íntimo da doce figura do missionário. Era preciso cuidar para que não sucumbisse à vergonha e ao desânimo provocados pelo descrédito íntimo de seu valor.

Os amigos acorreram em seu socorro. Sempre fora ele a ajudar a todos. Estava agora na contingência de receber ajuda. No centro, providenciaram-se preces especiais em prol do restabelecimento. No etéreo, mobilizaram-se os protetores para organizarem-se planos de auxílio emergencial. No entanto, as forças do mal progrediam no arguto projeto de captar aquela alma para sua falange. Seria troféu valiosíssimo, dada a pureza que sempre demonstrara na vida.

Era o que podiam observar. O que não sabiam é que Valdomiro tivera tão-só pequena recaída que o reconduziu à condição de criatura em débito com a Divindade há longo tempo. Se recebera encarne de proveito, era a trégua de que necessitava para inteirar-se das verdades evangélicas. Agora que conseguira, pelo intelecto, o conhecimento necessário das virtudes, deveria refazer o caminho que o conduziria à aquisição delas, através do trabalho consciente do valor de cada uma. Seus méritos tinham sido muitos, tantos que obrigavam encarnados e desencarnados a buscarem-lhe conforto, no entanto, preciso seria recompor-se por esforço próprio e muita dedicação ao próximo.

Nesse meio tempo, Valdomiro desejou regressar ao centro para ouvir certa palestra que seria proferida por orador espiritista de larga nomeada. Os familiares hesitaram, com medo de novo vexame, agora no ambiente sagrado do templo, mas cederam, mediante o indefectível argumento de que lá haveria seguro resguardo espiritual.

No dia aprazado, Valdomiro estava extremamente agitado. Não conseguia mais dizer as preces que tão bem conhecia e que um dia foram esteio de seu equilíbrio. Por pouco não cedeu aos pérfidos conselheiros que o induziam a realizar cena de descontrole. Na última hora, lembrou-se da figura do anjo decaído e se inspirou no artigo de Otávio para restabelecer o princípio da primitiva pureza espiritual, tudo lá no fundo da consciência. Tal pensamento íntimo, desconjuntado, desarticulado, mas presente, permitiu pequena brecha por onde os guias conseguiram infiltrar um pouco de luz. Restabelecido do assédio obsessor, foi conduzido à sala da palestra e pôde assentar-se entre os dois filhos mais vigorosos, os quais temiam por algum súbito ataque de nervos. Mas tudo teve transcurso bem tranqüilo e pôde o irmão palestrante discorrer serenamente a respeito do valor da prece para restabelecimento da saúde perispiritual.

Em sua desorganização mental, Valdomiro não foi capaz de bem perceber o significado de cada palavra ouvida, mas calou-lhe fundo a oração de abertura dos trabalhos. Durante todo o expediente, esteve desatento, mas o inconsciente ia ajeitando as idéias, de modo que, ao término, foi capaz de acompanhar o pai-nosso perfeitamente, em voz sofrida mas audível. Os filhos deixaram escorrer algumas lágrimas em agradecimento aos sintomas do restabelecimento que se evidenciava e partiram de volta com ânimo novo.

Em casa, Valdomiro sofreu novo ataque dos inimigos do espaço, mas pôde garantir-se em sua fugidia lucidez, não aceitando as influenciações de que era vítima. E essa luta perdurou por longos anos, até que um dia, tendo de ir a julgamento, se sentou no banco dos réus a ouvir a acusação de homicídio. Em dado momento, inesperadamente, levantou-se e pediu a palavra. Como se recusara a prestar qualquer informação ao advogado que o assistia, o qual o tinha na conta de dementado e nisso fundamentara a sua defesa, o juiz julgou por bem conceder-lhe a palavra, para avaliar melhor a extensão de sua incapacidade intelectual.

Valdomiro, então, em longo e inflamado discurso, desvendou passo a passo a sua vida, narrando com emoção todos os episódios que julgava significativos para enaltecer o seu encaminhamento à doutrina espírita. Sentia que poderia estar lavrando definitivamente a sentença de insanidade, pois tudo poderia parecer enovelá-lo nas malhas da mais pura fantasia, principalmente se o juiz fosse algum materialista ferrenho. Falou de espíritos, de carmas, de destinos e quejandas programações de vida. Revelou-se lúcido e claro na argumentação, mas fundamentava tudo em razões meramente conjeturais. Não dizia coisa com coisa, se analisado fosse do ponto de vista do relacionamento que deveria existir entre os homens. No entanto, buscou na espiritualidade a influenciação para a sua atitude e, surpresa das surpresas, revelou o ataque de megalomania espiritual que o levara a acreditar em que poderia curar o infeliz enfermo e até mesmo a ressuscitá-lo. Acrescentou os dados posteriores do assédio de que foi vítima pelo plano espiritual e declarou-se perfeitamente curado de todas as anomalias psicológicas. Ouviria a sentença com serenidade, pois expusera todas as reais razões do desatinado gesto.

O juiz bem ponderou a respeito da lucidez e da força argumentativa do indigitado autor do homicídio, mas não proferiu sentença definitiva. Ao contrário, determinou o recolhimento do réu à prisão e estabeleceu alto valor para a fiança, ao tempo que novas investigações deveriam ser realizadas para constatar-se se motivos havia para o crime. Incluiu no parecer que o réu deveria ser levado para novos exames clínicos, a fim de detectar-se se alguma vez, realmente, estivera insano. Novo julgamento, quando fossem encerrados os competentes inquéritos policiais.

O advogado interpôs recurso. Denegado.

Os médicos não atinaram com qualquer causa para possível diagnóstico de moléstia no aspecto mental. O réu conseguia raciocinar regularmente pelo comum padrão dos mortais e nenhum indício havia de que passara por qualquer fase de loucura. Abonava-lhes a conclusão o fato de não ter havido necessidade de internação, não tendo havido nenhum acompanhamento médico durante o período que mediou o homicídio e o julgamento.

O delegado fez minucioso exame de sua vida pregressa e nada encontrou que justificasse acusação de mérito. Supôs, então, que o fato de Valdomiro ter freqüentado a casa espírita poderia ter-lhe sugerido, ao contrário do que afirmava o réu, a idéia de executar o enfermo por eutanásia, para aliviar ao doente o peso da enfermidade.

Para chegarem a tais resultados, os investigadores e os médicos levaram cerca de três anos, sem contar os percalços burocráticos das férias, transferências e aposentadorias que soem ocorrer em tais circunstâncias. Finalmente, novo juiz foi designado para o caso e este, para tomar conhecimento dos autos, levou cerca de dois anos.

Enquanto isso, Valdomiro curtia na prisão a desdita do isolamento. Não falando a linguagem dos demais, pôde estabelecer certa aura de periculosidade latente, uma vez que chegara precedido da fama de que era louco furioso e que deveria estar internado no hospital psiquiátrico do poder judiciário. Largado à própria sorte, conseguiu obter permissão para os seus sagrados livros, dentre os quais lhe interessava sobretudo aquele em que se lia a famigerada mensagem do anjo decaído. Tal texto foi incorporando-se-lhe ao conhecimento da verdade bíblica, de modo que se tornou o te-déum a que recorria toda vez que assaltado por idéias que pudessem parecer-lhe sugestões de descompasso mental.

Nesse meio tempo, estudou o espiritismo de maneira profunda e pôde auxiliar o corpo médico do presídio na assistência aos enfermos. Embora marcado por ter provocado a morte a um doente, sua tenacidade, sua persistência, sua boa vontade e sua docilidade fizeram com que fosse aceito na categoria de atendente. Ali prodigalizou conselhos aos terminais e conseguiu o arrependimento de muitos diante da inexorabilidade da morte. Curou vários enfermos, ministrando-lhes a horas certas a medicamentação recomendada. Tão assinalados foram os serviços que os doentes desejavam ser tratados por ele. Desdobrava-se em cuidados e orava com fervor, para que os companheiros de celas se afeiçoassem à doutrina espírita. Conseguiu infiltrar alguns textos em diversos compartimentos e, aos poucos, foi criando fama de curandeiro. Ele mesmo nada sabia dessa condição perante a população carcerária e prosseguia impávido a auxiliar nos tratamentos.

Certa ocasião, foi-lhe dado cuidar de certo cadáver, para encaminhamento ao serviço funerário e espantou-se pela falha médica, pois, ao aproximar-se do corpo, reparou que respirava. Não desconfiou de que poderiam ter suas preces feito regredir a moléstia e recomposto o estado de vida, a fim de oferecer à criatura nova oportunidade de progresso.

Ao ser convocado para novo julgamento, eis que desejou manifestar-se perante o juiz para expor minuciosamente o projeto de prosseguir encarcerado para ajudar os detentos. Surpresa das surpresas, o juiz absolveu-o e mandou-o para casa, pois não encontrou nada que justificasse a prisão.

O advogado quis acionar o estado por erro judicial e prisão indevida. Ganharia alguns milhões por perdas e danos, principalmente morais. Valdomiro, contudo, resignou-se com os lucros espirituais, que considerava muito superiores, e retirou-se para a humilde posição de ser esquecido de todos. Não abriu casa de atendimento mediúnico, não promoveu curas nem ressuscitamentos, mas orou muito pelos que sabia estarem enfermos e necessitados de ajuda.

Transformou-se em anjo tutelar da família e hoje cuida de recuperar os vampiros que o desequilibraram e o tiraram do caminho ascencional. Sentia-se anjo decaído, mas sabia que, na realidade, o que conseguira fora restabelecer os vínculos com o Criador, de sorte a poder considerar-se servo fiel e cumpridor das obrigações. Ao defrontar-se com as cruzes que vai encontrando em sua peregrinação, ora o pai-nosso, recorda-se do sonho de grandeza espiritual e ri-se por dentro de alegria por lhe ter Jesus inspirado a crença de que poderia salvar a humanidade, o que resultou na salvação de si mesmo. Quão misteriosos são os caminhos do Senhor!

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