87 usuários online
Poesias-->CUNHAPORÃ, UMA HISTÓRIA DE AMOR- II - O CANTO GUERREIRO -- 29/06/2002 - 20:59 (J. B. Xavier)
CUNHA PORÃ compõe-se de onze capítulos. Aconselho aos leitores que efetuem a leitura a partir do primeiro, seguindo seqüencialmente a ordem crescente, para que o entendimento do enredo não fique prejudicado. * * * CUNHAPORÃ - PARTE II - O CANTO GUERREIRO J.B.Xavier “Irmãos meus de sangue! Às vezes, exangue, Amargas torturas Da guerra bebi. Nas provas mais duras Nas quais fui testado E em grandes agruras Não esmoreci.” “Meu tino me serve De guia no escuro, E que assim se conserve Em dias por vir. Que eu vença o futuro temores, cansaços, Que eu esteja seguro De nunca fugir.” “A quantos matei? Jamais vou saber! Jamais me lembrei De contar inimigos... Só resta entender: Não há diferença Em matar ou morrer. Em mim só me abrigo.” “Já fui pelas serras Vencendo a má sorte. Andei longas terras Que nunca esqueci. A braços com a Morte Andei tão distante. Com povos mui fortes Lutei e venci.” “Olhai o meu peito E o claro matiz De um talho perfeito Que fez-me o embate. Mas morro feliz Se a lança atirada Fizer cicatriz Que enfeite o combate." E isto dizendo, olhou os guerreiros Que sérios, nervosos, se agitam ligeiros Prevendo o que então viria a seguir. E apenas num gesto, rápido, tenso, Tirou de seus ombros o manto imenso Que suave ao seu lado, no chão foi cair. Seu corpo saltou para a noite escura Marcado nas lutas de tanta bravura. O espanto deixou os guerreiros prostrados. Que lanças suas mãos não haviam partido? Que vezes, na dor, sem um só gemido Não tinha o tacape do ímpio quebrado? Seu rosto severo, seus braços possantes E o altivo que havia em todo o semblante Tornava-o muito acima dos seus. E a pira queimava incensos amenos, E o fumo a subir era como acenos Ao bravo que agora queria ser deus. "Eu sou o seu deus!" - bradou Ygarussú. "Mais rápido ainda que o veloz suassú ! Mais forte que o raio, o vento ou a lança!" Pasma a aldeia! Jamais a floresta Ouviu coisa assim! Que os deuses em festa, Se o tenham ouvido, não queiram vingança... Rolou no horizonte um trovão taciturno: Tétrico aviso ao audaz importuno. Quem desafia o poder de Tupã ? Quem é que, em deus, por si se entronara? Quem é que a si próprio assim se elevara? Quem ousaria prever o amanhã ? Os homens em roda ouviam enlevados. Futuros guerreiros olhavam, sentados, O grande cacique que os céus lhes mandara. As moças sonhavam os sonhos das virgens, Enquanto o valente cantava as origens Do clã que o - um dia, há tempos - gerara: "Em guerras distantes As tribos errantes vagavam constantes Por ermos hostis. E a tribo que agora O penhor revigora E a mesma de outrora: Os bravos tupis. O vento na mata, O som da cascata, A lua de prata Deixava antever Que em tempos vindouros, Tal qual um agouro, Das lutas os louros Iriam colher. O céu incendido Que cobre o bramido Do índio ferido Em remoto iporã , É o mesmo por certo Que ao índio desperto Vai deixar aberto O poder de Tupã . Poder que encerra O verde da serra O grito de guerra, O som do maracá. É o mesmo que assim, Nas eras sem fim Forjou num festim O cacique Condá. Condá, que às vezes Aos vis portugueses Impôs os revezes De lutas sem par. Um corpo pintado, Um rosto irado, E no crânio, alado, Branco canitar. Penacho frondoso, Porte garboso, Arco lustroso Condá exibia. Nas guerras insanas Santas, profanas, Em voz soberana Seu brado se ouvia. Guerreiros! eu canto O riso, o pranto De quem sofreu tanto P’rá nos ter aqui: Condá e os demais. Por certo lembrais Do chefe Virí. Virí, o seu braço Deixou forte traço No chão, no regaço Dos tempos de outrora. As mãos calejadas De vidas tomadas. Sua lança ousada Tivesse eu agora! A força da Terra Que em si toda encerra As mortes na guerra Clama por ti! A ti só eu chamo, Tupã! eu conclamo: Desfaça o engano, Renasça Virí. São esses os bravos! Beberam dos favos Das lutas. Escravos Do lutar e vencer. A mim delegaram, A mim confiaram, Em mim transplantaram Sua força e poder! Ouçam-me agora Que chega a hora De ir-me embora. Seu deus, pois, eu sou! Meu canto já finda. Na guerra benvinda Meu braço ainda Ninguém derrotou." E fez-se silêncio. Calou o gigante. E tudo ao redor silenciou nesse instante Sagrado, a render-lhe uma muda homenagem. E enquanto alguém lhe entregava o manto, Os sons tão heróicos de seu nobre canto Ainda ecoava na densa folhagem. Assim o tupi, com seu porte altaneiro, Reinava na aldeia, e seu canto guerreiro Deixou toda a taba feliz, enlevada. Seus olhos, no entanto - discreta procura - Buscavam a beleza, a meiguice, a candura Do rosto sereno da doce amada. As moças ao longe, em nervosos sorrisos, Deixavam antever, em indícios precisos, O amor dedicado ao grande oyakã. Mas fogo no peito ilustre havia Queimando por dentro, em lenta agonia Por seu grande amor, sua Cunhaporã. E quem duvidava que tão nobre canto Visava o amor esperado há tanto E que em breve, sabiam, iria esposar? Seus olhos furaram a noite escura Buscando a beleza, a meiguice, a ternura Que o canto guerreiro queria agradar. Nas faces das moças, lindas, tingidas, Em vão procurou as feições tão queridas Sem no entanto encontrar o doce olhar vago. Olhou ansioso além da amurada. Sabia onde ela seria encontrada. Afastou-se correndo a caminho do lago. Subiam no espaço as fagulhas do lume Levando aos céus o espesso negrume. Silêncio na mata! findara-se a festa! Tornou-se mais fraco o estalar da fogueira. Mil olhos seguiam a marcha ligeira Do chefe e herói, a sumir na floresta. FIM DA PARTE II * * *