Este épico foi escrito como homenagem a Gonçaves Dias, em agradecimento por seu monumental poema "I-Juca Pirama", que considero um divisor de águas na poesia brasileira. Se o mestre, de onde está, puder considerá-lo retribuição, fico feliz, porque o simples fato de falar seu idioma e poder ler sua magnífica obra nos originais, já me torna um felizardo.
Agradeço às tribos Caigangues do Noroeste do Rio Grande Sul, com quem convivi por quase um mês, praticando seus costumes, rituais, e vivenciando seu modo de vida.
Agradeço de maneira especial ao Cacique Ita-Ussú –já falecido - há época residindo em Porto Alegre, pela paciência que teve com este teimoso homem branco, que, de gravador em punho, tomou muitas horas de seu tempo, até poder entabular com ele algumas conversas em seu idioma, o guarani.
Agradeço também ao Professor Leopoldo Zaninni - já falecido - pelas aulas sobre costumes indígenas do Sul do Brasil, e em especial, sobre o povo Charrua.
Agradeço ainda a todos os que colaboraram com informações sobre questões indígenas, sem as quais essa obra não poderia ter sido escrita.
CUNHA PORÃ compõe-se de onze capítulos. Aconselho aos leitores que efetuem a leitura a partir do primeiro, seguindo seqüencialmente a ordem crescente, para que o entendimento do enredo não fique prejudicado.
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CUNHAPORÃ - PARTE I - O CENÁRIO
J.B.Xavier
Selva sombria! grandes carvalhos
Se afastam de lado a ceder aos atalhos
A vez de percorrer a floresta densa...
Caminhos escuros que os índios aprontam
Se cruzam, se afastam, de novo se encontram,
Formando clareiras na selva imensa...
A onça se esgueira, ligeira, felina,
A lua que nasce por trás da colina,
E o sabiá, que no galho dormita,
Dão cores à mata, e o ruído que fazem
Embalam o sono de outros que jazem
No chão e nos ninhos. A vida palpita!
A brisa então surge, numa calma dança.
Estrelas se juntam àquela bonança,
Brilhando medrosas à luz do luar.
A prata dos céus vai matando o dia
Que cede lugar em lenta agonia
À noite que agora já vai começar.
Vermelho, o céu anuncia a luta
Do Dia com a Noite. Que linda disputa!
E as serras distantes já vão se afastando...
As aves, em bandos, em grande algazarra,
Voam felizes, qual louca fanfarra,
Nos ninhos queridos vão se acomodando.
No chão o regato suave desliza.
Desagua num lago, que a braços com a brisa
Vibrando sua face em vitral se transtorna.
Enfada-o a luta dos grandes titãs.
Conforta-o o lindo coaxar de suas rãs,
Divino coral que seus charcos adorna.
Aqui e distante, na água espelhada
Um peixe assoma com cauda dourada,
Brincando com as folhas que caem bailando.
Pousando tranqüilas vão logo dançar
Divino bailado à luz do luar
Que o lago, aos poucos, vai iluminando.
E as nuvens branquinhas, já avermelhadas,
Trazem o sangue em que foram manchadas
Na imensa batalha, e vão se afastando.
E a noite então surge em mil esplendores,
trazendo paixões, inspirando amores,
E com as plantas, as águas e o céu contrastando.
A brisa aos poucos vai enfraquecendo
E as sombras da noite então vão descendo
Trazendo o silêncio à grande extensão.
Os vales cobrindo, clareiras, montanhas,
Descendo ao mais fundo de suas entranhas.
Na selva palpita audaz coração!
E pia a coruja na noite singela
Voando na mata: gentil sentinela
Que a noite vigia acesa e atenta...
O rio que desce dos montes distantes
Desfia seu canto, e nas águas dançantes
Depõe suas mágoas, e chora, e lamenta.
Na face do lago a imagem tão clara:
Jassy refletida no reino de Yara!
Profundo silêncio! as matas caladas!
Estóicos, à noite os deuses levantam
E vagam na selva, e riem, e cantam
Os cantos do Olimpo, de eras passadas.
É então que nas tabas as tribos guerreiras
Contam seus casos á luz das fogueiras.
São cantos de heróis, de lutas, de morte,
Que aos jovens valentes só fazem sonhar
Os sonhos de guerra, o acompanhar
Os homens da tribo, rijos e fortes...
Nenhum se acovarda, no entanto, e ainda
Esperam a idade - de todos benvinda -
Em que o braço forte o tacape erguerá.
São quase crianças, leais e valentes,
Que a vida entregam, alegres, contentes,
À luta esperada, que um dia virá .
Num círculo ao longe as moças escutam
Os cantos de guerra que eles disputam.
Cantos de guerra que fazem sonhar.
As cândidas, doces, suaves morenas
Trançando as sedosas e lindas melenas
Esperam com um deles poderem casar.
Que sonhos não vão em seus olhos escuros?
Que ardentes desejos nos corpos tão puros
Não causa o canto dos heróis-guerreiros?
Donzelas que sonham os sonhos amenos
Que fazem vibrar seus corpos morenos
Que em curvas se alongam, lascivos, fagueiros.
No centro da taba, brilhando no lume
Derramam-se os homens. Da noite o negrume
Qual manto profundo, a tudo encobre.
Em volta do chefe derramam-se eles.
Os jovens, os velhos, e todos aqueles
Guerreiros valentes, da estirpe mais nobre.
É Ygarussú, o tupi imbatível,
Da flecha certeira, do golpe terrível !
E o som de sua voz, que em guerras ecoa
Atinge o inimigo, já enfraquecido,
Imbele, cansado, doente ou ferido.
Por isso distante seu nome já soa...
Quem visse sua flecha matar o mutú
Ou em plena carreira prostar o inambu...
Na aldeia não havia sequer um guerreiro
Com força bastante para retesar
Em toda a extensão o seu ybirapar,
Por certo o mais duro dos duros madeiros.
Quem visse o tacape ferir a akã
De seus inimigos, quem visse Tupã
Clareando suas trilhas nas noites sombrias,
Por certo haveria de reconhecer:
Tão cedo de novo não ia nascer
Guerreiro assim destro pelas cercanias
E amores desperta.; e loucas paixões
Caminham com ele! e mil corações
Por ele deliram em idolatria!
É rude, valente, amigo da Sorte.
O grande oyakã, cantando a morte
As lindas morenas assim seduzia.
E o fragor desses cantos na noite subiu,
Até que o cacique o silêncio pediu.
Somente o lume ardia faceiro
E o pesado silêncio às vezes quebrava.
O grande cacique de pé se postava
Cantando à aldeia seu canto guerreiro:
FIM DA PARTE I
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