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Contos-->30. DE PENA EM PUNHO -- 04/05/2002 - 05:38 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Balduíno era médium de exímias qualidades. Apaniguado por vasta cultura adquirida em diversos cursos superiores, aposentou-se com bom salário e aprestou-se para receber os amigos da espiritualidade em sessões íntimas, que promoveria em dias alternados aos de sua presença no centro.

Emulado pela figura inolvidável e diáfana do grande apóstolo do bem de Uberaba, o emérito confrade e amigo Francisco Cândido Xavier, pensava ter o domínio do vernáculo suficientemente significativo para emprestar a mão para os espíritos elevados, os quais poderiam utilizar-se de seus recursos para produzirem as obras maravilhosas que serviriam para despertar, definitivamente, a humanidade para o seu destino. Almejava mais, pois pretendia elevar o espiritismo pela literatura, propondo-se à cópia de obras de transcendental valor artístico, de modo a possibilitar ao leitor, além do ensino acabado, o prazer perfeito da estesia total.

Sabia-se pretensioso, mas não tinha pressa. Experiente em tomar todo tipo de ditado, conhecia os caminhos da imantação, da magnetização, os percalços das faixas de ondas e das freqüências dos fluxos energéticos, não ignorava os gravames das dificuldades surgidas pelas energizações imperfeitas, mas tinha todo o tempo do mundo, para que os espíritos trabalhassem sobre ele até o ajuste perfeito, que adviria a qualquer hora.

Sua expectativa frustrou-se de início, pois, em casa, com a família e poucos amigos, o mais que fazia era apanhar ditados de sofredores, que, a custo, conseguiam dominar e encaminhar ao socorrismo fraterno dos guias e protetores. Nessa vida, levaram bem seis meses. Após esse tempo, Balduíno começou a impacientar-se e inquiriu seu guia, em caráter particular, a respeito das transformações que esperava se lhe operassem na personalidade para os ditados de caráter superior. Reconhecia os méritos do atendimento aos que necessitavam de ajuda, mas lembrava-se do povo a debater-se nas trevas da ignorância e desejava muito mais.

Em forma de inspiração, veio-lhe a resposta que desejava ouvir: que esperasse, tivesse fé, mantivesse a promessa da paciência, que os seus considerandos estavam sendo devidamente estudados pelos próceres da administração sideral. Resposta cabal e completa só deles dependia. Enquanto isso, pena na mão, prosseguisse com o labutar de amor.

Naquela noite, surpresa imensa! Veio-lhe à mente, de modo suave e preciso, notável poema a respeito do amor. Estendia-se o poeta-espírito por laudas e laudas de papel, em significativos e perfeitos versos alexandrinos. Falou de Jesus e de Deus, sonhou com a Virgem Maria tendo no regaço a figura do menino-deus, exprimiu a delicadeza de José ao receber, como pai, filho tão excelso, configurou a vida do Mestre, as lutas, os esforços, os sacrifícios, relatou, enfim, toda a paixão e encerrou com magnífica descrição do calvário, alçando o Senhor os olhos ao céu e de lá recebendo magnífico e esplendoroso facho de luz. Era o próprio evangelho, a vida, a paixão e a morte de Jesus, em versos deslumbrantes.

Balduíno muito satisfeito ficou, embora lhe desagradasse a assinatura simples que foi aposta à mensagem. Era só um João, não Apóstolo, não Evangelista, mas João, sem Batista ou outro epíteto de nomeada. Ao menos fosse Elias ou José, ou mesmo André ou Sebastião; mas “João!”... Em suma, o escrito estava soberbo mas repetia as noções conhecidas e divulgadas aos quatro cantos pelas vozes dos evangelistas.

Guardou o poema, aguardando novas manifestações. À tarde, sozinho, desconfiado de que poderiam estar ocorrendo interferências indébitas da parte de algum companheiro menos atento à preparação necessária para a importância da sessão, pôs-se de sobreaviso para apanhar qualquer ditado que lhe chegasse à mão.

De fato, ditas as preces de abertura, logo pôs-se a escrever desenfreado a respeito do espiritismo. A entidade comunicante fazia questão de elaborar significativa mensagem filosófica, partindo da definição de Deus, seus atributos, as provas e contraprovas de sua existência, a discussão da realidade, a apreciação dos fluidos energéticos e vitais, perpassou pelos espíritos, suas categorias e suas leis, visitou os infernos, subiu aos céus, descreveu as virtudes, malhou os vícios, enalteceu a natureza, profligou os homens que maltratavam as encarnações e a criação e terminou fazendo largo elogio a Deus, exaltando-lhe a misericórdia, a bondade, a justiça e o amor, tudo em prosa de altíssimo nível, que não desdiria a produção de qualquer teólogo ou sábio humanista. Mas assinou João. O mesmo simples nome de antes.

Balduíno leu e releu a obra, considerou-a acabada e fartíssima de conhecimentos, mas ponderou o que tudo que ali se encerrava se continha em O Livro dos Espíritos, de Kardec, julgando até que a obra conhecida estivesse vazada em molde mais simples e compreensível para a mentalidade do homem comum, pouco afeito aos tratados filosóficos.

A bem da verdade, o texto que apanhou era pequeno extrato condensado do saber espírita a respeito da natureza do homem, de seus atributos e de seus compromissos. Era obra de divulgação do espiritismo, mas não se poderia dizer definitiva. Tais comentários lhe vieram à cabeça, quando percebeu que, se não se dedicasse por várias semanas a tal trabalho, nunca poderia receber obra de mais vasta erudição.

Assim pensou e assim procedeu. Combinou com os guias a maneira melhor de se dispor para o trabalho e, a partir do dia seguinte, reservou a manhã toda e boa parte da tarde para a escrita mediúnica.

Durante seis longos anos escreveu sem parar. Começava às sete da manhã, interrompia para meia hora de almoço e prosseguia até às seis da tarde, ininterruptamente. À noite, não descurava dos compromissos e ia participar dos trabalhos do centro ou dos encontros familiares. Se perguntado a respeito do que vinha realizando durante o dia, guardava silêncio ou dizia que era obra para o futuro. Não conhecia o paradeiro dos esforços que procedia, mas via que as folhas iam acumulando-se. Como havia sempre continuidade e os espíritos faziam questão de ligar e religar uns dias aos outros, acabou perdendo o sentido do todo. Sabia, contudo, que o escrito era da mais alta qualidade e que as entidades vinham bem do Alto para as transmissões, pois havia necessidade, muitas vezes, de enérgicas massagens na mão para restabelecimento da circulação sangüínea, tão rápidos eram os impulsos eletromagnéticos enviados ao seu cérebro. A par de todo seu conhecimento, foi obrigado a manter extensa enciclopédia e diversos dicionários em várias línguas para consultas rápidas a respeito deste ou daquele vocábulo, em cuja grafia titubeasse, ou para confirmar a significação mais esquisita de determinados termos que supunha não se adequavam ao contexto. De resto, não houve uma única vez que seus avisos tivessem qualquer razão de ser, pois os conhecimentos de seus maiores eram perfeitos.

Ao cabo desses seis anos de sofrido trabalho, sem sábados, domingos ou feriados, escrevendo cerca de quarenta folhas de papel almaço por dia, em letra miúda e absolutamente legível, conseguiu calhamaço de impor respeito até ao editor mais fecundo. Alexandre Dumas, o pai, e Camilo Castelo Branco, juntos, não escreveram em toda a vida um terço de sua produção nesses anos de dedicação e desprendimento.

Como última mensagem, recebeu a incumbência da organização e da publicação.

Ora, apanhar os ditados havia sido possível porque as idéias se atropelavam no cérebro mas escorriam para o papel de modo lúcido e perfeito. Organizar os fascículos a partir da compreensão dos temas, a divisão em tópicos e subtópicos era coisa bem diferente. Avaliou o trabalho que teria e imaginou que devesse contratar algumas pessoas para ajudarem-no, pelo menos, na transcrição dos manuscritos. Pedir que os amigos participassem da tarefa, nem pensar, pois não tinham tempo e, de resto, poderiam ver algo que lhe passara despercebido, de modo que não desejou sujeitar-se à crítica antes mesmo de ser editado. Como se vê, Balduíno considerava bem mais sua a obra que reflexo da sabedoria e conhecimento da espiritualidade.

Examinou as economias e considerou possível contratar três rapazes ou moças para o serviço. Reservou a sala da casa para escritório, comprou móveis adequados, raspou o fundo do cofre e instalou três máquinas de escrever elétricas de última geração. Não pôs objeção aos gastos porque imaginava que, terminada a tarefa, poderia vender o material e recuperar as despesas. Avaliou o aviltamento e a defasagem orçamentária, mas considerou que valia a pena o sacrifício para bem da humanidade.

Nesse trabalho de compilação e organização, despendeu dez dolorosos anos, em que as incompreensões domésticas começaram a surgir, à vista da presença importuna de pessoas estranhas a partilhar da vida íntima da família. Além disso, o dinheiro empregado fazia falta à educação universitária de dois dos cinco filhos e a esposa começava a exigir descanso da longa peregrinação conjugal absorvida por infindável obra. Sob o peso de tal responsabilidade, Balduíno não arrefeceu. Considerava o seu ministério de amor e concluía que não poderia deixar pela metade o trabalho de sua vida. Comparou-se a Machado de Assis e viu na esposa a contrapartida da emérita Carolina. Achava que, se o grande Machado tivesse os percalços que enfrentava, não teria sequer fundado a Academia.

Aos trancos e barrancos, após aquela década, viu-se a braços com cerca de cinqüenta mil folhas datilografadas. Desperdiçara o tempo fazendo o papel de copy desk e exigindo que cada folhinha não apresentasse um único erro sequer. Tanta exigência fez com que se revezassem na datilografia nada menos de duzentos jovens.

Enfim, restava catalogar os temas, estabelecer o roteiro da obra, dividi-la em tomos e pô-la à disposição dos editores. Não confiando no discernimento de ninguém, uma vez que conhecia profundamente cada pequenino texto, cada desenvolvimento de idéia, cada parágrafo e cada período, pôs-se a elaborar o trabalho de acabamento. Nesse acerta e desacerta, arruma e desarruma, encaixa e desencaixa, levou mais dois suados anos. Mas foi época tranqüila, pois os proventos da aposentadoria iam integrais para as despesas da casa, de modo que pôde ver os filhos devidamente instalados em suas vidas profissionais. É verdade que lhe guardavam certa mágoa por não haver comparecido às formaturas, mas sabiam que o pai realizava obra que lhe imprimiria indelevelmente o nome nos anais da história da humanidade; modestamente, é verdade, concordava ele, mas indelevelmente.

Ao cabo desses dois anos, as cinqüenta mil folhas datilografadas em espaço duplo couberam em cento e oitenta volumes, que dariam para serem contidos, ao serem impressos, em letra miúda, em cerca de cinqüenta. Era verdadeiramente obra de fôlego, mas poderiam contar os editores que estava ali resumido todo o conhecimento do etéreo possível de ser transmitido aos encarnados.

Esse foi o real drama, a verdadeira tragédia de sua vida. Diante de tão imenso volume, nenhum editor se atreveu sequer a folhear a obra; quando muito se espantavam com o título: Para o Homem Ser Feliz após Eliminar os Vícios e Adquirir o Direito de Ir ao Céu. Balduíno não gostava do título, mas lhe fora justificado em cinqüenta alentadas laudas pelo expositor principal da matéria.

Entre parênteses, devemos dizer que, ao longo desse tempo de preparação da obra, prosseguiu freqüentando regularmente o centro espírita e apanhando os ditados de todos os amigos da espiritualidade, que se admiravam muito de sua dedicação e desprendimento. Chegou mesmo, certa vez, a ouvir conselho que imputou como invejoso e de baixa extração moral, pois ousara o comunicante desconfiar de que estaria em mãos de embusteiros. Na sessão seguinte, levou pequena dissertação representativa da obra na qual se expunha, com toda a clareza, as quinhentas formas de reconhecimento dos espíritos jocosos e das entidades mentirosas, de modo que, naquela sessão, só ele falou, ou melhor, leu, sendo preciso encerrar o expediente com atraso, ficando várias folhas ainda por ler. O orientador deu-se por satisfeito e não mais se falou nisso.

Mas os editores recusaram-se a aceitar a editoração. Julgavam o trabalho muito extenso e as despesas elevadas. Não ousavam falar da dubiedade da aceitação do público, porque lhes parecia por demais evidente a impossibilidade da impressão e da divulgação.

Após cinco longos anos de tentativas frustradas, resolveu Balduíno arcar com as despesas. Inventariou todos os bens e pôs-se à cata do melhor orçamento nas diversas tipografias da cidade. A mais barateira calculou o valor em dez vezes mais que tudo que se pudesse obter da alienação do que possuía. Era impossível tal caminho. Recorreu a diversas fundações de benemerência mas, à vista do empreendimento, nenhuma se propôs a partilhar das despesas. Em suma, foi colocada definitiva pedra sobre o assunto pela esposa, que ameaçou com o divórcio e repartição das propriedades.

Nesse meio tempo, Balduíno fez amizade com esperto livreiro da capital, atilado comerciante, que sabia ver um sucesso de editoração até mesmo em obras rejeitadas por todos os parceiros. Nunca tivera qualquer fracasso editorial e, quando a obra não oferecia grandes perspectivas de aceitação popular, aconselhava o autor a certas alterações que faziam o trabalho brilhar nas prateleiras. Era emérito em sua arte.

Balduíno não hesitou e convidou-o a visitar o escritório, principalmente porque sabia que o novel amigo se filiara há pouco ao espiritismo e se interessava pelas publicações espíritas. Este estava a par da instituição da benemerência editorial em prol das obras assistenciais e buscava fonte mediúnica para iniciar sério trabalho nesse campo. Enfim, era oportunidade de ouro, tantas e tão ricas eram as mensagens.

Oduvaldo, o livreiro, compareceu ao encontro cheio de esperanças de achar ali a fonte de novo empreendimento, mas, à vista da espessura dos cento e oitenta volumes, arrefeceu. Sugeriu, porém, que Balduíno não se desesperasse e, se tivesse ânimo, que resumisse a obra; certamente, um bom extrato de cento e cinqüenta páginas poderia iniciar a coleção. Só não foi expulso de lá porque havia no coração do amigo certa consideração espírita, além de constituir-se em último recurso e de ter sido o único a sugerir algo que representava alguma perspectiva de publicação.

Dentre os manuscritos antigos, enquanto Balduíno saíra em busca do café, para se restabelecer da agitação que o dominara, topou Oduvaldo com palpitante poema a respeito do Cristo e pequeno opúsculo sobre o espiritismo. Estavam ambos datilografados e devidamente encadernados, pois antigos auxiliares se dedicaram a eles com extrema simpatia, tendo sido esse trabalho certo presente de aniversário que o patrão recebera dos subordinados. Oduvaldo, ao retorno do amigo, se propôs a editar aquelas pequenas obras, constituindo um conjunto a que daria o nome de Luzes para a Humanidade. Balduíno se recusou a admitir sequer a possibilidade de aceitar semelhante oferta e, retirando-lhe os opúsculos da mão, apontou-lhe os maciços volumes da obra maior, lançando a frase capital:

— Ou se publicam aqueles ou nenhuma outra mensagem será divulgada!

Oduvaldo viu a renitência, considerou a teimosia, sopesou os motivos, equilibrou-os na balança de seu julgamento com o peso dos cento e oitenta volumes e deliberou não ofender o amigo com qualquer outra proposta.

Assim que saiu, Balduíno foi fulminado por lancinante e mortal apoplexia. Morreu ali mesmo, caindo por sobre a obra inédita, segurando ainda os dois libretos.

Achado pela esposa, estranhou ela que portasse as curtas dissertações e concluiu que seria de sua última vontade que viessem a ser publicadas. Consultado a respeito, Oduvaldo calou a real derradeira manifestação do escrevente e patrocinou a editoração, com extraordinário sucesso, da pequena e esclarecedora obra.

Quanto aos cento e oitenta volumes, foram encaixotados e enviados para certa instituição de caridade, que os terminou vendendo a peso para que produzissem algum dinheiro para a sopa dos pobres. O comprador, espírita e amigo da instituição, sem conhecer o verdadeiro teor das mensagens, transformou tudo em papel higiênico e toda a obra terminou ali, já que os originais de há muito tinham sido incinerados para afastar os ratos do porão.

Balduíno, enquanto a obra existia, errou de ceca em meca para encontrar os autores para salvar o trabalho. Quando percebeu que tudo se havia perdido, pediu permissão ao orientador e se pôs à busca de médium disposto a receber extenso ditado de obra que certamente salvará a humanidade e que conseguiu reter de memória, por superior esforço de concentração.

Isto ocorreu há doze anos e ainda Balduíno não encontrou quem se aprestasse a receber tamanha revelação. Seria o nosso cansado escrevente quem se habilitaria? Ou o intimorato leitor? Para sossego dos amigos, devemos dizer que, por esforço de condensação, Balduíno já conseguiu reduzir os volumes a cento e vinte. Desconfia de que, enquanto não chegar a cento e cinqüenta páginas, não encontrará quem o auxilie na divulgação da superior comunicação dos espíritos de luz.

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