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Contos-->Leonildo -- 03/05/2002 - 08:42 (Paulo Da Loia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Leonildo acordou sobressaltado. Estava em meio a um sonho muito esquisito quando o pequeno despertador a pilha tocou. Passou lentamente a mão no rosto para enxugar o suor que a noite quente provocou, bocejando demoradamente. Espantou a preguiça e levantou-se da velha cama de casal com muita dificuldade, esforçando-se para acordar a sua esposa e de não acordar as duas filhas menores que ali também dormiam.
O barraco era apertado e quente, piorando a sensação de calor nessas noites de verão, porém Leonildo estava construindo-o aos poucos. Conseguira fazer dois pequenos quartos, um banheiro estreito e uma cozinha um pouco maior que os demais cômodos. Algumas partes que eram de madeira e papelão, foram completamente substituídas por alvenaria. Seu sonho era deixar sua casa igual às que ficavam mais abaixo da favela, perto da avenida. Essas casas eram bem construídas e confortáveis, algumas sendo até sobrados. Com o pouco que conseguia juntar com os seus bicos de final de semana e a promessa da Prefeitura de legalizar a posse do seu terreno, Leonildo imaginava que para a metade do ano seguinte, conseguiria atingir seu intento.
Eram cinco horas da manhã e ainda estava escuro. Leonildo havia se lavado e vestiu o uniforme da firma, já que Josemira, sua mulher, tinha posto todas as suas roupas para lavar e não havia secado em tempo. Ele não gostou muito da idéia de trajar o uniforme, que fazia apenas quando chegava na construção, por estar um pouco sujo e por atingir sua vaidade. Impotente, rendeu-se à situação e acabou de se arrumar. Pôs o relógio, que foi presente de sua mãe, no pulso direito e a carteira de documentos muito surrada no bolso da calça. Penteou o cabelo e sentou na pequena mesa da cozinha, esperando o café que sua esposa estava terminando de coar. Josemira encheu o copo de vidro e ofereceu ao marido, comentando:
- Nildo, o leite em pó da nenê está acabando, viu?
O homem coçou a cabeça com desânimo. Faltavam dez dias para o pagamento e havia sobrado só alguns tostões. Respondeu à mulher que tentaria fazer algum trabalho extra para conseguir o dinheiro. Josemira ficou menos apreensiva porque Leonildo estava com sorte nesses últimos meses e sempre conseguia um serviço para os finais de semana, principalmente no prédio de que seu irmão era zelador.
Estava na hora de sair para o trabalho e o trajeto até o bairro de classe média alta onde ficava o local da construção demorava uma hora e pouco de ônibus. Antes, porém, realizou sua habitual despedida, que era dar um beijo em cada um dos seus cinco filhos e na patroa.

* * * * *

Leonildo ficou quarenta minutos esperando o seu ônibus no ponto e em pé. Subiu no coletivo e ficou surpreso que esse estava quase vazio, muito diferente dos outros dias. Chegou a comentar com o cobrador se estava acontecendo alguma coisa de anormal. Com a negativa do outro, ficou feliz por ter o direito, pela primeira vez na vida, de escolher o lugar para sentar e o eleito, como não era de se estranhar, foi no fundo e perto da janela.
Mesmo com essa sorte repentina, Leonildo estava com um sentimento que o seu dia não seria o dos melhores. Talvez o sonho esquisito e inacabado da noite anterior tenha deixado sua alma aflita, mas rezou e pediu proteção fazendo o sinal da cruz. Algumas vezes ele tinha esse tipo de sentimento e o único remédio que acreditava que pudesse curá-lo era o de pedir a proteção de nosso Senhor. Com a demora de chegar ao seu destino, Leonildo ficou relembrando de sua infância em Petrolina, de seus irmãos e de seus pais. Lembrou de sua chegada em São Paulo e de seu casamento. Evitava às passagens ruins, ficando apenas com as boas memórias. Seu coração se encheu de melancolia, de uma doce melancolia.
Num certo momento, uma garota entrou no ônibus. Era uma moça bonita, com seus longos cabelos amarrados num rabo-de-cavalo, alta, bem-vestida e estava segurando uma pilha de livros e cadernos nos braços. Ela passou a catraca e foi em direção onde estava Leonildo. A moça olhou para o lugar vago ao seu lado, mas quando reparou no modo como ele se vestia, com a roupa esgarçada e manchada de sujeira, fez uma careta e, rapidamente, deu dois passos para trás acomodando-se em outro banco. O modo enojado que a jovem o encarou fez com que Leonildo ficasse completamente humilhado. Bastante envergonhado, ficou com a cara grudada na janela até o seu ponto de chegada, que mal esperou o veículo parar para sair correndo daquela situação embaraçosa. Do ponto de ônibus até a construção, ficou amaldiçoando a esposa por achar que ela era culpada pelo seu vexame. Se algo doía profundamente em Leonildo era a discriminação e sabia, mesmo que por instinto e não por avaliar ou compreender corretamente o ato, que havia sido vítima apenas por uma questão de aparência e poder aquisitivo.

* * * * *

Leonildo trabalhava como azulejista para uma grande firma de construção especializada em prédios residenciais. Logo cedo havia muito para se fazer e recebeu a missão de concluir às paredes de uma cozinha e de uma lavanderia naquele mesmo dia. Como o serviço não era pequeno, pôs a mão na massa.
O canteiro de obras estava tumultuado nesse dia ensolarado, por causa da notícia da demissão de onze empregados. Isso gerou intranqüilidade entre os peões, pois havia um boato que mais pessoas seriam dispensadas. A construção do edifício estava atrasada e os engenheiros e os mestres-de-obras estavam sendo pressionados pelo gerente da empresa. Leonildo ficou bastante preocupado de ser o próximo da lista, pois a construtora era uma ótima firma para se trabalhar, já que pagava em dia e dava café da manhã, almoço e vale-transporte. Perder o seu posto de trabalho e tanto benefício seria desastroso para ele e para sua família.
Na hora do almoço houve mais confusão. Foram mais três empregados dispensados e esses se rebelaram contra a demissão, quase chegando à violência física, provocando muito nervosismo em todos. Contudo, os ânimos foram apaziguados e tudo voltou ao normal. Entretanto, não parou por aí... A empresa que era responsável em servir o marmitex para os peões teve problemas e não conseguiu enviar às refeições para a obra. Para amenizar o contratempo, a empresa deu a cada trabalhador a quantia de cinco reais para que eles almoçassem nos bares ao redor da obra. Leonildo ficou mais uma vez apreensivo, porque todo o alvoroço durou quase duas horas e teria que correr para cumprir o prazo de entrega do seu serviço.
Por sorte ou azar, junto com os seus dois tradicionais colegas de bóia, Amparo e Deoclésio, o mestre-de-obras Pacheco, chefe direto dos três, resolveu acompanhá-los. Escolheram um bar que servia um prato feito por quatro reais e cinqüenta centavos. A refeição era formada por arroz, feijão, bife, batata frita e uma salada de tomate e alface, além de uma lata de refrigerante. Leonildo fez às contas e, com o que tinha no bolso, mais o troco do almoço, conseguiria comprar um pacotinho de leite em pó para sua filha de quatro anos.
Os homens sentaram numa mesa para quatro e, enquanto comiam, falavam sobre vários assuntos. Futebol, mulheres, trabalho e política...
- É, o tal de Agemiro Fonseca vai se candidatar a prefeito – comentou Pacheco.
- Esse sim que é homem! – exclamou Leonildo. – Lá na minha região ele fez um montão de coisas: escola, posto de saúde, ajudou muita gente. Eu vou votar nesse homem, com certeza!
Pacheco olhou o subordinado com irritação e logo disse:
- É por isso que esse país não vai pra frente... Veja só. Esse Agemiro Fonseca é um ladrão safado! Ficou milionário roubando tudo que podia! E você vem me falando que ele é bom? Você é um ignorante! Por isso que você vive na miséria, vive num barraco de favela! Por isso que você é um analfabeto que não sabe nem escrever o seu nome! Esse cara tá aí, porque no buraco que você mora, todo mundo deve pensar a mesma coisa. Um bando de imbecis!
Em meio ao silêncio que se estabeleceu após o comentário, Leonildo não teve reação. Nunca imaginou que seu chefe ficaria tão irritado com sua declaração despretensiosa. Ficou vexado e seus olhos se encheram de lágrimas. O clima só não ficou pior porque seus colegas foram-lhe solidários.
- Eu não tive condições de estudar como o senhor, mas eu sei ler e escrever o meu nome, sim – Leonildo ousou dizer.
O ex-almoxarife e ex-sindicalista, Pacheco, ficou cabisbaixo, reconhecendo que havia se excedido nas palavras.
Na hora de pagar, Leonildo foi o último a chegar ao caixa. Deu a nota de cinco reais e ficou esperando o troco. De repente, o dono do bar entendeu-lhe a mão coberta com balas de sabores de fruta. Surpreso, Leonildo não entendeu:
- É o seu troco. Não tenho mais nenhuma moeda aqui.
- Como assim, meu troco?! Eu quero em dinheiro, não em confeito!
- Já disse que não tenho troco... Se você tiver dinheiro trocado, tudo bem, caso contrário, vai ter que aceitar as balas ou um vale.
- Isso é um absurdo! Da próxima vez quero ver se você vai deixar eu pagar o almoço com bala, também!
Leonildo ficou irritado porque estava esperando pelos cinqüenta centavos para o leite da filha. Como estava atrasado e seu chefe parecia impaciente, resolveu pegar as balas e ir embora, pondo-as no bolso.
Voltou ao trabalho muito afetado com os acontecimentos recentes. Ficou dizendo para si mesmo que estava com a razão quando pressentiu que teria um péssimo dia. Ficou resmungando a tarde inteira e perdeu um pouco da sua concentração para o trabalho. Quando soou a sirene avisando o encerramento do expediente, às seis horas, Leonildo e seu ajudante haviam acabado de terminar a lavanderia. Leonildo pediu para o rapaz guardar as ferramentas, enquanto ele acompanharia a vistoria de Pacheco. O mestre-de-obras, carregando uma grande lanterna, ficou examinando o serviço de Pacheco. Não demorou muito para encontrar uma porção de defeitos e não teve cerimônia para maldizer o subordinado:
- O que é isso, Leonildo? Você está de brincadeira comigo? Olha essa parede, está uma porcaria. Olha... Tudo errado, mal feito! Você tá maluco? Com esse monte de gente sendo mandado embora, você quer ser um deles, também?
Leonildo não tinha nada para responder. Fazendo uma análise crítica de seu trabalho, concordou com o chefe, as paredes estavam mal feitas. Naquele momento, Leonildo temeu pelo seu emprego. Ficou olhando para Pacheco, como indagando qual seria o seu futuro. O mestre-de-obras coçou a cabeça e, ciente que Leonildo era um bom profissional, disse a ele ir para casa e no dia seguinte refazer as paredes. Chateado, Leonildo acatou as ordens.

* * * * *

A volta para casa não foi tão boa quanto à ida. O ônibus estava lotado e Leonildo fez quase todo o trajeto, de uma hora e meia, em pé. Ficou amargando o péssimo dia que teve e tentou achar uma explicação para tanto dissabor. Chegou no barraco eram oito e meia e seus filhos e a esposa assistiam a novela na pequena televisão. Mesmo cansado e aborrecido, cumpriu o ritual de beijar a todos. Foi tomar banho, enquanto a mulher esquentava o jantar. Vestiu um calção e uma camiseta e sentou para comer. Após jantar, assistiu um pouco de uma partida de futebol e foi dormir.
Suas filhas já estavam na cama, brincando. Leonildo empurrou um pouco as duas para o canto a fim de poder subir no leito. Como não estava muito bem, fechou os olhos, tentando dormir. Sentiu uma respiração ofegante e quente em seu rosto. Era sua filha mais nova que encostou sua cabeça em seu peito. Leonildo perguntou o que ela queria, mas como estava envergonhado de não ter conseguido trazer-lhe o leite, evitou olhá-la. Ela contou que estava doente e fingiu tossir. Manhosa como era, queria a atenção do pai e inventou que estava enferma. Ela pediu, então, um doce e Leonildo respondeu que não tinha trazido nada. Ela fez uma cara de decepção, mas tentou outras formas para seduzir o pai a brincar consigo. Foi quando Leonildo lembrou das balas. Levantou-se ligeiro, foi ao banheiro, tirou as balas do bolso do uniforme, voltou e deu uma para cada filho. Voltou para a cama, pegou a menorzinha no colo e deu-lhe três confeitos. A menina abriu um sorriso iluminado e seus olhos ficaram brilhantes de alegria pela surpresa. Não hesitou e deu um enorme beijo em seu pai, acrescido de um forte abraço.
Todas as decepções, tristezas e humilhações desse e de outros dias desapareceram por completo após o afago da filha. Sentiu-se o mais realizado dos homens e aprendeu que um pequeno carinho poderia ser muito compensador. Amava os filhos mais do que tudo na vida e sentiu-se forte, novamente, para levantar cedo e fazer tudo de novo para que eles tivessem uma vida muito melhor e mais digna que ele jamais haveria de ter.
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