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Contos-->O tormento de Portus -- 02/05/2002 - 19:26 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
- Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade?
Portus respondeu aquela pergunta um tanto sem vontade, apenas para obedecer a uma ordem. O significado de muitas coisas ele não compreendia, justiça e liberdade eram palavras pouco usadas na sua vida até então e parecia que haviam sido usurpadas de seu cotidiano. Restando-lhe a solidariedade de alguns companheiros. Tinha certeza do seu futuro e estava conformado.
Nascido em um berço singelo de uma família simples no fundo do rincão no interior de uma fazenda. Trazia no seu nome uma homenagem ao avô paterno: - Este guri é neto do lendário maragato Castro Barbosa! Estufava o peito o velho Pedro. Dona Candinha completava baixinho para as amigas que o nome também era uma homenagem a um personagem do único livro que tinha lido, e guardava com muito carinho na estante da sala.
Naquele momento crucial de sua vida o silêncio era a resposta que mais o satisfazia. Tinha absoluta certeza que a liberdade, democracia e tantos outros ideais pelos quais lutou, ao longo de sua vida, não teriam sido em vão. Portus estava arrasado, seu passado de homem de esquerda com fortes e arraigadas convicções e obcecado por justiça social de nada adiantariam. O que estava decidido a falar o levaria certamente ao ostracismo político. Momentos antes de se dirigir a sala do júri, confessou ao Rafa, amigo de todas as horas desde o tempo de juventude e de guerrilha.
- Finalmente terei tempo às minhas memórias... vastas memórias!
Por alguns segundos seus olhos brilharam. O mesmo vítreo quando em noites de sombra no cativeiro, recitava com eloqüência trechos inteiros de Minha Luta de Trotski, ou interpretava com largos gestos teatrais um poema telúrico de sua terra natal.
Rafa, simplesmente, retribuiu com um forte abraço.
Sua mão sobre a Bíblia Sagrada manteve a mesma indiferença que sua voz. Tanto poderia estar sobre uma revista em quadrinhos ou sobre uma arma de fogo. O interrogatório foi longo, o promotor, astuto e eloqüente não deixou por menos e Portus falou como nunca tinha falado. A verdade que ele jurou a si próprio que não omitiria. Portus era um réu confesso.
O interesse do público foi intenso, a plenária estava repleta e os órgãos de imprensa cobriram o júri mais badalado da cidade até então. Nenhuma pessoa presente naquele ambiente e muito menos os jornalistas, não entendiam como uma pessoa de tamanha envergadura, símbolo de uma geração, estivesse ali diante de suas câmaras e microfones, em rede para todo o país, a abrir-se como se estivesse de joelhos diante do confessionário. Ninguém tinha imaginado que estivessem documentando para a história dos movimentos sociais aquilo que seria a maior tragédia política dos últimos tempos, um homem disposto a enfrentar a realidade tal qual ela é, fria e pacientemente.
Quem olhava para Portus, após o seu interrogatório, sentia claramente no seu olhar distante que ele estava totalmente ausente do recinto. Imóvel, estático, pernas cruzadas e braços apoiados nas guardas da cadeira, seu pensamento estava muito longe do burburinho da sala do júri.
Foi ao encontrou de seu pai nos banhos de açude, nas pescarias da volta do rio, nos passeios de mãos dadas com o velho, nas trilhas dos matos sem fim.
Era incrível como o pai sabia todos os nomes dos passarinhos.
Quando algum ruído estranho se ouvia era só pedir colo e logo estava seguro nos braços do seu velho Pedro. Visualizou seu Pedro, chimarreando a beira do fogão a lenha, sentado num banquinho forrado com um pelego, não podia faltar o lenço colorado marcando a identidade e o espirito do eterno maragato. Não raro o seu olhar se perdia no horizonte infinito do bojo da cuia até que o chiar da chaleira o despertava para um outro mate. Portus enxergou seu pai por um instante em sua frente. Veio em sua memória os vastos cabelos, o bigode volumoso que em pouco tempo foram branqueandos e depois sumiram prematura e definitivamente de sua vida.
Tentou lembrar de um poema que tinha feito há muito tempo em sua homenagem. Num tempo em que fugia da repressão, solitário em um aparelho, a inspiração batia a sua porta e escrevia. Escrevia muito. Dedicava todo este tempo de clausura à poesia e memórias da guerrilha. Inúmeros cadernos escritos e vários perdidos, pois os milicos não avisavam que hora chegariam e na correria da fuga muitos poemas e crônicas ficavam para trás. Esta homenagem ao velho Pedro ficou guardada em sua memória mas aquele momento não era propício a uma lembrança lúdica dos anos de infância ou nos tempos de solidão e revolução. Lembrar por completo uma poesia que falava do gosto do velho Pedro pelo mate na varanda ou a sombra dos cinamomos, era praticamente impossível naquele instante. O título veio como um raio em noite de vendaval, uma centelha na mente, um reconforto a memória meio falquejada. - Última Payada!
“E o guri cresceu assim
No gosto pelo chimarrão
Prá quem nasceu neste chão”.
Por alguns momentos a memória ia em vão para o passado, mas o que vinha não era a poesia feita em um momento introspectivo no fundo de um quintal de subúrbio e sim tiros, tortura e perseguições pelas ruas da cidade.
“Quando o “Velho” anoiteceu”.
-Meu Deus! Não lembro mais de meus versos.
Desistiu.
Era impossível fazer um poema naquele momento, muito menos lembrá-lo.
Ainda pode ver o sorriso reconfortante de Amanda no meio da platéia, discreta e linda como sempre, e que nunca deixou de estar ao seu lado nos momentos mais difíceis desde os tempos de guerrilha e conspirações. Uma companheira que havia suportado os horrores do cárcere sem nunca se abater, por isto sua admiração transformou-se em uma paixão arrebatadora. Amanda era a mulher de sua vida e estava ali solidária com o seu sofrimento.
De repente vislumbrou, como por encanto, a imagem de seu pai ao lado de Amanda, um leve sorriso iluminava sua face, uma alegria no brilho dos olhos e batia palmas com o entusiasmo de uma criança. O encanto se desfez rapidamente e sumiu de sua visão. Com o seu olhar fixo no chão, uma profunda tristeza toma conta de Portus.
- Ah! Seu Pedro porque tu não estás mais comigo?
- O que que foi? - Perguntou o juiz.
- Não, nada.
Baixou a cabeça e chorou em silêncio.
Neste momento os jurados se retiram para elaborar o seu veredicto. Portus imóvel já percebia que os dias seriam amargos e a solidão sua eterna companheira.

- Pai! Pai! Pai!
Num sobressalto, Portus, acorda assustado no meio da noite, como sempre, coberto de suor. Amanda era toda cuidados com as crises noturnas do companheiro. Foi assim nos tempos em que estavam exilados e continuava após o retorno à pátria com a abertura democrática. Portus enxergava uns fantasmas do passado que seguidamente o perseguiam no meio da noite. Hoje o sonho de uma revolução não estava mais presente em seus pensamentos, mas as imagens que vinham em forma de pesadelo eram arrebatadoras e inesquecíveis.
- Aquele mesmo sonho novamente... tiros, correrias, cárcere, tortura, dor e... o julgamento.
- O júri? – perguntava Amanda.
- O júri, meu pai batendo palmas, você ao lado dele e a imagem que mais me deixa inquieto: o Rafa no fundo da sala caminhando de um lado para outro, parecia desesperado.
Desde os tempos da volta do exílio Portus pensava muito no seu amigo Rafael. Rafael havia ficado no Brasil porque tornara-se um desaparecido político. Não estava no cárcere e não constava na lista da troca do embaixador e nem no movimento guerrilheiro. Havia desaparecido após aquela fuga dos policias e nunca mais alguém o havia visto. A memória de Rafael atormentava seus pensamentos e se transformava em pesadelo em noites maldormidas.
As lembranças da guerrilha eram assombrações que atormentavam o seu dia a dia. O exílio não tinha curado todas as feridas. Suas convicções de esquerda tornaram-se mais evoluídas, porém jamais pegaria em armas novamente. Veio para disputar uma luta democrática de poder.
Na véspera da posse como primeiro exilado eleito prefeito de uma capital do Brasil, Portus ainda era perseguido pelos fantasmas do passado. Tornavam suas noites insones e suas convicções democráticas mais fortes. Não estava arrependido de ter sido o revolucionário que sonhava com a classe trabalhadora no poder, porém tinha muitas dúvidas, muitos companheiros perderam a vida em nome deste ideal. Hoje são apenas lembranças nas reminiscências dos que ainda lutam por um mundo melhor, são histórias de vida que devemos ter presente com exemplos de companheirismo.
- Amanda, eu não esquecerei um grande companheiro no meu discurso.
Na entrada do passo municipal a imprensa o aguardava. Milhares de pessoas queriam ver o futuro prefeito o homem que veio do exílio para assumir os destino da cidade. Prometeu participação popular e um governo voltado para os excluídos.
- Dedico esta vitória popular a um grande companheiro que não está aqui conosco e talvez poucos tenham conhecido. Foi o mais destemido revolucionário que conheci, meu companheiro de lutas contra a ditadura e que há muito tempo está desaparecido seu nome: João Rafael Mello Saraiva, um grande companheiro. À memória de Rafa dedico este mandato popular.
Emocionado, encerrou o discurso sob forte manifestação popular com fogos de artifício, aplausos e euforia na praça. Amanda segura-lhe a mão fortemente e sussurra em seu ouvido. – Nada foi em vão.
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