O mato ergueu-se insistente no meio daquelas pedras altas e em toda a vastidão de poeira e fumaça. Com o tempo, dada a sua raridade, aquela sobra verde tornou-se jardim e refúgio de alguns pássaros pagãos que ali chegavam irresolutos. Surgiam em golpes inesperados das dobras das cinzas envoltos em grossas penas de gesso; depois assentavam amarrotados espremidos entre a sede e a solidão da viagem. Lá fora o sol era dono de todo o fôlego e ameaçava lançar a qualquer momento os seus reflexos sobre a areia escaldante. Só era possível ciscar o chão em busca de sementes respingadas no sereno da noite. Só era possível ali - embora não tanto, no bolso daquele curto retalho de tapete, espreguiçar as asas e bater o ar sorrateiro, ensaiando vôos noturnos.
Éramos todos moradas de muitas pessoas anônimas. Éramos apenas penas frugais apanhadas numa rede circundante. Nós íamos e chegávamos e voltávamos às curvas da cidadela marcando um ritual trânsfuga de almas penadas bailando passos profanos em voltas e voltas em torno das pernas. Em cada gestual comum, um código múltiplo telepático de sinais verdes, amarelos e vermelhos: ir e vir e virar - desvirar-se; um, dois ou três olhos - ou quatro; braços cruzados, sina descruzada - peito suspenso; abrir, fechar, parar e passar; pressa, vagar e torpor.
Naquele jardim das delícias terrenas, o bosque pintava a saga humana em três línguas de veludo; das folhas de suas árvores, transpiravam gotas sinuosas que escapavam de fontes de miúdas águas, de fontes primaveris e de fontes finais de marte, de fontes de banhos de vênus que regavam novas heras e que adoçavam o sal de olhos bumerangues.
Naquele espaço onde faunos encantavam pedras preciosas, foram plantadas algumas corujas pagãs com penas de ossos. Elas possuíam olhos de todos os olhos e, em sua maioria, na maioria do tempo, olhavam para trás do que para frente. Via-se também os beija-flores - voláteis criaturas da rapidez, que tinham penas que nem sabiam que tinham; quando nós, outras aves, sentíamos o vácuo do seu movimento, eles já vinham de volta trazendo no bico as penas de outras passagens. Ao lado dos beijadores planavam as aves de penas de ninfas, mais tarde foram chamadas de galinhas. Havia os gaviões de penas indiferentes, eles também não eram dignos das penas dos outros e foram chamados de vassouras. No meio do dia, ordenados e abomináveis, os pingüins chegavam frios e neve; estavam como se não nada estivessem e como se tivessem penas de paisagem – eles eram os maiores pagãos. Também chegavam gralhas de penas leves que distribuíam alegria e brilho ao lugar e pavões de penas suntuosas que desfilavam o veraneio de cada cor de estação. Ouvia-se cantos de vários sibilos, via-se aves de vários cantos, cantos de todas as cantadas. As aves se encontravam e às vezes se perdiam, se olhavam e algumas preferiam difamar o juízo. Muitas delas passavam de mentirinha; outras passavam, na verdade, para beber refresco e seguir lá fora enfrentando o sol ardente, porque também ali, a vigilância solar enviava seus espelhos moduladores.
O que mais comprazia era saber daquelas matas desafiando a fronte da aridez, no meio da tarde, fazendo-se inapagada.
Assim como oásis, também miragem acudiam gotas virulentas: transeuntes anões entoavam cânticos de sereia de dentro das penas de corvos doentios.
Tudo ali era, em cada um, uma parte daquilo que encontravam.
Um dia de quando abriu, na saída da tarde, uma ave vinda do vento atravessou o portão como uma flecha de cravo que propaga o fogo. Uma ave de raras penas de ouro azul chegara sob a distração dos beijos vãos e ao encontrar-me, pensou encontrado. Confesso que isso perturbou silenciosamente a minha espécie. Eu que vinha vindo há pouco do sertão, onde o sol inflama o sulco da terra e abre feridas na carne, jamais cogitara tamanha infidelidade própria desconhecida. Porém o assombro foi maior ao perceber que havia trazia das passagens, as penas que ajuntava no caminho de outros horizontes e que delas tecia asas.
Era a diferença de mim como uma parte minha vista na igualdade essencial e invisível aos olhos. De tanto pois, de tão reconhecimento que fora, que sempre estivera presente e eu passado e futuro. Não era o tempo de todos os tempos – era a eternidade debulhada na memória de cada forma de nuvem. Existir aqui somente era uma parte cega de mim e de outros; outras metades alheias e maiores me pertenciam mas não se tocavam.
As asas por fim ergueram alturas. Um frescor d’água inundou-me a taça de bronze.
Sim, as asas por natureza anarquistas!
O céu aberto de braços de estrada! Do céu de Le Petit Saint do Monte, se ouviu quebrar seixos calcáreos.
Ave as asas aladas! Ave, os sonhos Alam! As almas Alam!
Esta descoberta agitou-me o espírito e, dessa vez, o sol reluziu na água um brilho inefável de cores variadas.
Ver-me alado fora, do lado de dentro, outros espaços de sonhos abriram-se insofismáveis. Além dos labirintos aonde se vai sem lanterna e sem ser, nem mesmo parecer, o que não precisava para ser.
A ave secreta deu-me por fim presente: medalha de prata com cravo atravessado para dentro da carne.
Uma febre de estranheza ressecou-me a língua. O sol sedento dizia derreter-me as asas. O peso do chão devolvia-me as penas.
Como agora saber do vento e contentar-se com o pouso?
Como prender as asas nas grades dos dedos se eu amei o vôo?
Uma vontade de criança encheu-me a boca para pedir: “fica!” - outra vontade assumiu meu sonho: “leva-me!” – um arremedo disse-me: “segue-se!”
Daqui doravante, alçadas partidas farão sobreviver o encanto da volta! Pousos mais virão para que outras decolagens espanem a poeira de praias espelhadas!
Então, num passo trôpego e num trago sóbrio, o peito de águia tomou os ares e, seguindo o vento, acompanhou o azul das asas.