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Contos-->28. O ESPÍRITO DE SACRIFÍCIO -- 02/05/2002 - 05:58 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando Enéias se atreveu a reclamar da quantidade de trabalho, o seu guia e mentor ousou lembrar-lhe que o Pai só atribui aos filhos tarefas que sejam capazes de suportar.

Deveras, Enéias tinha até certa razão em seu desafogo, já que, além de todos os afazeres caseiros, ainda lhe restava ir em busca do pão de cada dia e de alimentar três porquinhos para seu irmão, à vista de possuir amplo quintal. Fazia-o contrafeito pois enojava-se da carne dos animais e consumia tão-só vegetais, evitando inclusive os ovos e o leite e respectivos derivados. Era perfeito em sua higidez, pois, além do trabalho e dos cuidados com a casa, mantinha-se em forma, freqüentando academia de ginástica próxima, três vezes por semana, participando, aos finais de semana, de partidas futebolísticas patrocinadas por entidade sociodesportiva local. Jamais recusava convite para compartilhar do esquadrão da oficina, não sendo raras as oportunidades em que emprestava o brilho de sua atuação a diversas entidades esportivas do bairro.

Além disso tudo, comparecia a centro espírita, religiosamente, quatro vezes por semana, em duas das quais se sentava à mesa mediúnica para auxiliar nos trabalhos da doutrinação e da desobsessão. Era espírita convicto, dos bons. Respeitava o espiritismo e o praticava em todos os atos da vida. Mas naquele dia, com seus trinta e sete anos a lhe pesarem nas costas, reclamou das tarefas, uma vez que lhe cabia o serviço mais pesado de receber, através da psicofonia, os irmãos mais sofredores, ao mesmo tempo que se dispunha a transcrever diversos ditados dos orientadores espirituais. Além de tudo, reservava algumas horas para ler e escrever em casa, ao influxo do acaso, objetivando estar em dia com a literatura e com a influenciação mediúnica mais atual e ativa. Bem comparando, era atleta olímpico em constante competição.

Compreende-se, então, que a medo tenha o orientador mencionado a relevante e expressiva palavra do Senhor. Bem pesadas as coisas, qualquer outro não suportaria metade de seus afazeres. Mas o mentor ousou ainda mais: disse-lhe que deixasse de cuidar dos porquinhos, uma vez que o fato contrariava sua postura diante dos animais.

Essa observação, dita com sagacidade para despertá-lo para as responsabilidades para com o Senhor em confronto com os compromissos carnais, foi acompanhada de sutil influenciação intuitiva em que, por meio de refulgente mensagem de amor, se concitava a necessidade de se seguirem as orientações cristãs do amor a Deus e ao semelhante.

Após a sessão, durante a leitura dos textos, os participantes da mesa discutiram longamente se era preferível buscar atender aos reclamos do amor divino de preferência ao do próximo, ou se este era o caminho mais seguro para aquele. O resultado da discussão, no coração de Enéias foi quase desastroso pois, no fundo da consciência, passou a perlustrar toda a vida e lhe vieram calafrios quando reparou que o que mais fazia era cuidar de si mesmo, especialmente de seu corpo. O fato de o mentor lhe haver mencionado os três porquinhos não lhe pareceu importante em si mas, inteligente e cuidadoso, buscou ver nas palavras do instrutor algo mais profundo. Realmente, era bem dotado das qualidades intelectuais tanto quanto conseguia brilhar na área esportiva. Mas reparou na expressão de Jesus que o amor ao próximo deveria ser igual àquele que se destinasse a si mesmo. Somou todos os minutos da semana e verificou que noventa por cento do tempo eram gastos consigo mesmo, oito por cento com a casa e os últimos dois por cento com os semelhantes. Incluía no tempo destinado a si mesmo tudo o que fazia no trabalho e todas as horas de sono.

Só, em casa, na próxima oportunidade em que proporcionou ocasião para a manifestação espiritual, escreveu longa crônica em que se comentava o valor do trabalho como função social e outra em que se designava o sono como a janela que se abria para a alma ir conviver no plano espiritual, momento em que poderia progredir pelo estudo ou pelo trabalho.

Evidentemente, os amigos auxiliavam-no, no sentido de que se esclarecesse que os noventa por cento da semana deveriam ser reduzidos de muito, no que respeitava à aplicação relativa a si mesmo.

Fez novo levantamento e considerou, ainda assim, que exagerava nos exercícios físicos e nas participações sociodesportivas. Deliberou reduzir esse aspecto das atividades, mas nova mensagem de muito esclarecimento e força provou-lhe que, devido à idade, se diminuísse as atividades, iria sofrer sérios revides orgânicos. Era preferível prosseguir como vinha fazendo até que, por meio de recomendações médicas adequadas, fosse transformando as energias em trabalho por outro modo que não onerasse o corpo. Julgou oportunas as observações e procurou o facultativo da família, que ponderou largamente a respeito da influenciação benéfica das atividades desportivas, instando para que as mantivesse todas intactas, aguardando que a idade avançasse mais. Após os quarenta anos, aí sim seria conveniente a transformação sugerida pelo plano espiritual.

Novamente diante da consciência, resolveu consultar as economias para ver se conseguiria empregar algum serviçal para desafogá-lo em relação aos trabalhos com a casa. Aí o conselho foi enérgico e pronto: não havia possibilidade alguma.

Queria ampliar o escore no campo do amor ao próximo, mas via-se totalmente enleado pelas múltiplas tarefas. Resolveu seguir o conselho inicial, chamou o irmão e pediu que levasse os leitões embora, pois precisava daquela horinha diária para outras atribuições. O irmão não gostou da perspectiva de sacrificar os animais tão cedo e lhe pediu para que ficasse ainda com eles, até que lograsse outro local para a engorda. No fundo, no fundo, o que este desejava era postergar o momento da devolução dos animais para mantê-los o mais possível sob os cuidados generosos de Enéias. No entanto, sentiu forte resistência à permanência deles com o irmão, precisando sacrificá-los de imediato. Aí Enéias se condoeu dos animaizinhos e decidiu prolongar o tempo da entrega.

Imaginou, então, estratagema que, talvez, pudesse convencer o irmão a não abater as infelizes criaturas: deu-lhe de presente obra do irmão Ramatis em que se condena a humanidade ao sofrimento, enquanto persistir massacrando os irmãos inferiores para alimentação e aproveitamento industrial. O irmão, espírita e carnívoro, leu com sofreguidão a obra e viu nos argumentos aventados certa razão, embora tentasse refutá-los com citações dos livros de Kardec, especialmente em relação à passagem em que o espírito Erasto denuncia a existência dos animais para proveito do homem. Aí Enéias opôs os médiuns e não os espíritos ou os argumentos e disse que, enquanto o médium de Ramatis partilhava de suas idéias, bem poderia ter ocorrido que o mediador de Erasto pudesse ter incluído na mensagem referida pensamentos próprios. Ambos concordaram com essa possibilidade e os porcos foram deixados na pocilga sem serem ameaçados.

Mas os leitões tendem a transformar-se em cachaços e estes se tornam grandes e fortes, inconvenientes para pequeno fundo de quintal. Que fazer, então, com os animais? Soltá-los-iam na floresta. Que floresta? Com muito sacrifício, conseguiram transportá-los para a Mata Atlântica, à orla da Serra da Cantareira e, a custo, espantaram-nos para que se internassem no mato. Não se animaram, contudo, a sair dali. Tinham enfrentado dissabores mil com os cuidados para não se verem os bichos maltratados na condução; teriam como sobreviver naquela região desconhecida? A noite chegou e eles, indecisos, sem saber que destino dar aos animais, os quais resolveram deitar por ali mesmo. Pensa que pensa, intentaram fazê-los voltar aos engradados. Inútil investida. Os animais enfronharam-se na mata e desapareceram da vista. Determinaram-se a deixá-los pernoitar ali e deliberaram voltar na tarde seguinte, após o trabalho, para o resgate. O destino que dariam aos animais ficaria para ser cogitado depois.

No dia seguinte, nova preocupação: os animais não mais se encontravam lá. Várias pegadas no barro fresco do dia chuvoso demonstravam que, atrás das patas, havia indícios de pés humanos. Julgaram que crianças das redondezas tivessem acossado os animais e confrangeram-se-lhes os corações pelos possíveis danos, além da perigosa perspectiva de que poderiam as crianças se virem vítimas dos ataques dos poderosos dentes dos enormes cachaços. Foram atrás dos indícios e descobriram marcas de pneus onde terminavam as escaramuças presumíveis. Tinham os porcos sido capturados, evidentemente. Pretenderam seguir o roteiro do caminhão infrator da liberdade dos bichos mas não lograram êxito, pois se perdiam as marcas entre as inúmeras deixadas na estrada por diversos veículos.

Enéias tinha, finalmente, conseguido atender à solicitação do protetor, mas não de forma que o convencesse que tivesse sido a melhor solução. Na noite da psicografia, interrogou o mestre, que lhe informou que os animais tinham servido de alimento para diversas famílias de certa favela do bairro. Cumpriram assim o destino que os homens lhes haviam programado.

Intrigado com o desfecho do caso, Enéias não se satisfez com as explicações, embora tivesse ficado aliviado por não ter sido acusado pelo amigo tanto quanto era pela consciência. Achava que havia procedido mal e rezava pelo perdão das almas dos animais. Sabia que não seria atendido, pois reconhecia que tais espíritos não manteriam qualquer vibração possível de contatar-se pelas suas emissões de solidariedade fraterna universal, mas, mesmo assim, meio supersticiosamente, elevava o pensamento às forças da natureza, para que lhe dessem condições de bem compreender a situação e luz para que os animais pudessem evoluir em seu destino particular. Aí o seu conhecimento se confundia e era incapaz de ver além da dor e do sofrimento.

Todo esse transtorno desviou-lhe a atenção da preocupação primordial: o excessivo acúmulo de tarefas. Nesse meio tempo, faltou a algumas sessões de ginástica, deixou de freqüentar regularmente o centro espírita, falhou algumas vezes no trabalho, deixou de lavar e limpar alguns utensílios de cozinha, a roupa perdeu alguns botões e a horta viu murcharem as folhas que deixaram de ser regadas. Mas esse titubeio foi curto. Em breves dias, Enéias retomou o ritmo de sua vida e pôde acrescer de mais alguns tópicos a longa lista de atividades. Agora ia duas vezes por semana ao zoológico, para prestar serviços gratuitos no tratamento dos animais.

Hoje, se você perguntar a Enéias o que acha da lição de Jesus, certamente responderá que acrescentou mais um tópico ao dístico do Senhor:

— Amai a Deus sobre todas as coisas, ao próximo com a vós mesmos e respeitai os animais como vossos irmãos inferiores.

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