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Contos-->27. A HORA DO DESCANSO -- 01/05/2002 - 07:18 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ansiava Antunes pelo descanso mais que merecido. Vinha há sucessivos vinte anos de intensos trabalhos mediúnicos. Durante tão larga peregrinação, por várias vezes fraquejara-lhe a saúde, perdera algumas oportunidades de apresentar-se por motivos de força maior, sustara a escrita, certa feita, por uma semana, para dar curso a certa viagem inadiável de negócios, mas férias mesmo, aquele descanso à beira da praia ou sob a aragem das montanhas, jamais tivera alguma.

Houve ocasiões em que realmente desejou ficar parado por algum tempo para restaurar as forças, mas, assim que se punha a escrever, lhe vinha a inspiração e os temas se sucediam, as equipes se renovavam, os amigos da espiritualidade faziam rodízio e ele ali, firme e denodado, acreditando que fora talhado a formão na pedra, para servir de intermediário ao plano espiritual. E suas mensagens não lhe desdiziam da tenacidade e da inteligência, sempre de bom nível apostólico, quer no incentivo ao estudo e ao trabalho, quer na comoção à lágrima, quando se apresentavam ensejos de consolo e de conforto. Era médium dos bons, possuía vasta cultura intelectual, patrocinava as reuniões no centro, assistia e ministrava conferências, em suma, perfazia o conceito de espírita-modelo.

Certa feita, após esses vinte esplêndidos anos de sucesso na transcrição das vontades alheias, desejou suspender o trabalho por alguns poucos dias, convidado que fora, pela enésima vez, pelos filhos para ir em viagem de férias ao redor do mundo, do qual mal conhecia sua cidadezinha e a capital, para onde se afastara durante aquela semana supra-referida.

Como dissemos, ansiava Antunes pelo descanso mais que merecido, mas não quis partir sem ajustar com os amigos do etéreo o devido contrato para após o retorno. No entanto, ficou surpreendido com a proposta que lhe fizeram. Iria em viagem, mas deveria reservar toda tarde duas horas para apanhado dos costumeiros ditados, necessitando, para isso, cumprir o roteiro diário de repouso, alimentação e cuidados morais e espirituais costumeiros. Se achasse que o trabalho sempre lhe fora valioso e salutar sustentáculo para a vida mental e para a postura diante da existência, deveria atender à solicitação e aceitar o trato.

Empolgado com a perspectiva da viagem e admirado com a lhanura da proposta, aceitou incontinênti, sem refletir um átimo a respeito de semelhante compromisso.

No dia aprazado, lá estava bem disposto no aeroporto, às duas da tarde. Tinha pensado em tudo: o avião partiria às três e ficaria no alto durante três horas, tempo mais que suficiente para apanhar qualquer ditado. Expôs o problema aos filhos, que iam objetar qualquer coisa, mas foram impedidos por categórico:

— Deixem comigo!

Pontualmente, às três horas, alçou vôo a poderosa aeronave transcontinental. Acomodado em macia poltrona, dispôs os lugares de modo a que se mantivesse isolado dos demais passageiros. De início, a novidade do forte ronco dos motores, o empuxo natural para arranque e decolagem e a aceleração do possante veículo aéreo surpreenderam-no pela violência das emoções. Mas Antunes estava vacinado contra o temor, pois o contrato de trabalho com o plano espiritual previa, no mínimo, mais um mês de atividades. O vôo estava resguardado.

Após o primeiro atropelo emocional, sentiu certa vertigem ao contemplar a paisagem, as casas diminuídas em seu tamanho, as montanhas achatadas contra o solo, o horizonte, longínqua linha afastada, as nuvens formando aglomerações sobre as quais a aeronave passava. De novidade em novidade, não notou que certo enjôo começou a lhe tomar conta do estômago. De repente, a ânsia de vômito e o saquinho salvador lembrado pelo filho a seu lado, experiente viajante do espaço aéreo. Sentiu profunda tontura e certa angústia involuntária que lhe dava desejos de saltar do avião para livrar-se do incômodo. Derreou da ansiada expectativa de se controlar e pôs-se a tremer e a chorar surdamente, disfarçando as lágrimas como se brotadas do esforço das ânsias. Por sorte sua, a preparação para a psicografia preconizava almoço bem leve com base nas frutas, de modo que todo o enjôo resultava em inúteis tentativas de pôr para fora algo que não lhe repousava no estômago. Após longa hora de sofrimento, abateu-se na poltrona, esquecido do compromisso, trêmulo e assustado com a inusitada reação orgânica. Sempre controlara as reações fisiológicas e mentais com seriedade; via-se agora sob domínio de forças que lhe eram absolutamente estranhas. Como por encanto, ao pisar o solo, todo mal-estar desapareceu. Sentia certa fraqueza e só. O cérebro voltou a funcionar como sempre e reassumiu inteiro domínio sobre si.

Lembrou-se, então, que deixara de apanhar o respectivo ditado, mas colocou a conta no passivo, uma vez que lhe fora impossível dedicar qualquer atenção aos amigos da espiritualidade. É verdade que orou muito para sua salvação, do filho, da nora e do neto, mas foi prece muito confusa e entrecortada por inúmeras alucinações que seu estado mental lhe prodigalizara.

No hotel, já instalados em dois quartos, coube-lhe ficar em companhia do neto, querido e amável pimpolho de dez anos de idade.

Era a hora da refeição, que, por força da necessidade, teve de ser farta e substanciosa. Acompanhou generoso vinho tinto a que se desacostumara Antunes desde há tempos, quando do falecimento da esposa, com a qual partilhara de agradável convívio, inclusive de mesa alegre e festiva, principalmente porque o casal era amigo de um bom copo de vinho, que achavam iria ajudar na digestão. O almoço fora frugal; o jantar, lauto e feliz.

Assim, após a refeição, rejeitou o convite para passeio noturno e pôs-se sob as cobertas para a primeira noite de sono fora de seus lençóis. A aventura do dia absorvia-lhe os pensamentos mas o vinho fê-lo cambalear e dormiu sem perceber que deixara de pronunciar as preces noturnas. Pela madrugada, acordou alagado em suor, após rápido desmaio sonambúlico, em que figuras estranhas de homens encarnados vinham resgatar destroços de avião e pedaços de cadáveres. Não bastava o desassossego do dia; tinha de enfrentar os fantasmas da noite.

Pensou que o jantar lhe pesara no estômago, intentou vomitar mas não conseguiu. Os eflúvios alcoólicos pesavam-lhe na cabeça e não conseguia atinar com o que se passava consigo. Aos poucos, foi sentindo calafrios, apesar de a temperatura estar elevada, e necessitou de mais cobertas, nada encontrando no armário. Não queria acordar o neto mas foi compelido a isso pela insegurança do momento. A pobre criança assustou-se muito e foi chamar o pai. Em suma, terminou aquela noite no hospital, tomando soro e lutando para serenar a taquicardia.

O dia seguinte estava arruinado para a excursão. Mesmo assim, ao meio-dia, aprestou-se para o almoço, no intuito de superar o fiasco da véspera. Na mesa, imensa macarronada fartamente acompanhada de vários tipos de carne e de molhos. Poderia acondimentar da forma que melhor lhe apetecesse. Perguntou pelas frutas e estas vieram em grande quantidade. O filho conhecia os deveres do pai e não fez importunação alguma quanto a forçá-lo a provar os famosos pratos italianos. O garçom é que não compreendeu como é que alguém, indo à Itália, não comesse e não bebesse. Preciso foi dizer-lhe que o velho estava sob cuidados médicos.

Às duas da tarde, partida de futebol entre as duas mais importantes esquadras da cidade. Os ingressos, previamente comprados pelo agente de viagem, precisavam ser honrados. Antunes preparava-se para o ditado mediúnico, mas foi instado para não perder a peleja ou ficaria sem nada saber a respeito da cultura do local. Outras pessoas da excursão insistiram e ele precisou obtemperar que o dia era um domingo e que deixaria reservado para a segunda horário dobrado para a missão espiritual.

Se fôssemos narrar dia a dia de todo aquele sofrido mês, iríamos desgastar o caro leitor. A verdade é que o horário não coincidia, o ônibus se atrasava, a alimentação não era conveniente, o passeio, irrecusável, o desejo do neto, irreprimível, a praia, imperdível, e o nosso Antunes não se colocou à disposição dos amigos senão uma única vez, isolada tarde de descanso de toda a comitiva, após manhã passada em vários museus. Na verdade, deveria ter saído para compras, mas julgou melhor liberar os familiares, para ficar a sós com seus amigos.

No quarto, sobre modesta mesa de canto, dispôs os livros que trouxera e que até então não abrira e se concentrou para possível ditado. Preocupava-se seriamente por ter fraquejado tanto, ele, que, durante vinte anos, não arredara pé da mesa da confraternização evangélica. Estava na França e temia, ainda, ter de receber a visita de algum espírito que intentasse transmitir-lhe alguma mensagem naquela língua, que lhe era tão estranha quando falada pelo povo. Recitou as preces habituais, leu dois trechos de cada obra, preparou papel e lápis e se dispôs a escrever. A mensagem foi curta e séria. Dizia simplesmente que seus passos haviam sido seguidos um a um, que se livrara de vários desastres aéreos e outros tantos terrestres, mas que ficasse tranqüilo, pois, se peregrinasse pela sua cidade, teria corrido os mesmos riscos. Lamentava-se que tivesse mal aproveitado a viagem, tendo em vista ter ficado preocupado com o fato de não ter podido oferecer-se para a psicografia, e que se preparasse para novas aventuras, assim que chegasse a casa, de volta.

De fato, ao regressar com a família, instalou-se-lhe no pulmão insidioso vírus que, célere, lhe provocou irreversível lesão que o levou à morte. O ditado na França fora o último da vida.

Ao despertar do nosso lado, Antunes chegava absolutamente intrigado. Preparara-se durante a vida toda para não ser surpreendido pelo fatal instante da transmigração. De repente, se vê do lado de cá sem prévio aviso. Ao contrário, parecera-lhe ter entendido que o aguardariam novas aventuras quando retornasse à pátria. Meditou muito e pôde perceber que estava na hora de prosseguir trabalhando, pois a pátria a que se referia a curta mensagem era a espiritual. Quis, então, saber dos amigos por que razão havia participado daquele desconjuntado passeio pela Europa. Obteve como resposta que era o merecido prêmio por ter tanto batalhado pela causa espírita.

— Por que, então, fiquei tão pressionado pelo compromisso assumido? Isso, para mim, foi verdadeiro inferno. Não terá havido aí algo como que falta de consideração?!

— Não se apoquente, bom amigo. Você estava livre de aceitar ou não a oferta. Se aceitou, foi por razões suas, próprias. Não teria sido o desejo de continuar amarrando o seu destino ao nosso, na íntima desconfiança de que tudo se pudesse perder por simples afastamento de tão-só um mês? A sua insatisfação crescia à medida em que você se julgava em falta para conosco. Mas isso não seria considerar extremamente valioso o seu próprio serviço? Por que não propôs em troca que tomássemos outro médium para substituí-lo durante a viagem de recreio? Os males que você enfrentou foram tão-só suave lição para que compreendesse que nem tudo pode estar sob nosso inteiro domínio. Se tivesse prestado atenção no que lhe ocorreu ao início da viagem no avião, teria percebido que a hora havia chegado de sujeitar-se às contingências das leis naturais. Eis a tarefa imediata: trabalhar em prol do semelhante, sem temer pelo sucesso da empresa. Deixe um pouco também para a responsabilidade dos amigos espirituais.

Tendo bem compreendido sua necessidade, Antunes buscou a esposa dentre os presentes, deu-lhe profundo e emocionado abraço e propôs-lhe futuro regresso à Terra, para mais vinte, trinta ou mesmo cinqüenta anos de companheirismo e de mediunidade. Prometeu-lhe que todo ano iriam, se possível, tomar ares no campo ou banho na praia.

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