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Contos-->A VIAGEM -- 30/04/2002 - 21:26 (Paulo de Goes Andrade) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A VIAGEM

Paulo de Góes Andrade

“Atenção, senhores passageiros, para a última chamada do vôo 513, com destino a Manaus! Queiram se dirigir ao portão “A” para o embarque. E boa viagem!” Anunciou a bonita voz feminina pelos alto-falantes do Aeroporto de Brasília.
Um calafrio percorreu todo corpo de Francisvaldo, que, desde que chegara ali para viajar, amassava um lenço cinza na mão direita molhada de suor. A cor do lenço combinava com a gravata. Na mão esquerda segurava uma pasta preta, vistosa, tipo 007. Mesmo com todo o pavor que o tomava, estava impecável no conjunto da sua indumentária, formada de um blazer marrom-claro e calça cinza, que se completava com um par esportivo de sapatos, último modelo. Ele era o novo funcionário de uma importante firma da Capital, ligada a grandes negócios em Manaus. Fora designado pela diretoria, pelos seus méritos funcionais, para fechar uma transação comercial no ramo de informática: aquisição de computadores, impressoras, scanners etc.
Era a primeira vez que ia enfrentar uma viagem de avião. E bem longa.
Admirava demais aquele meio de transporte. Muitas vezes, com a mulher e os filhos, sempre aos domingos, ia ao Aeroporto só para assistir ao movimento das aeronaves taxiando pelo pátio, quando chegavam ou saíam para a decolagem. E Marinalva, a esposa, sempre o interrogava:
- Franci, como o tratava, tu tem coragem de andar num bicho daquele? Apontava para os aviões.
- Quem? Eu? Deus que me livre! Só se fosse morto. Tu sabe que eu acho o avião a maior invenção do mundo! É bonito demais. Agora, ele que fique lá nas nuvens e eu aqui no chão, aqui na terra firme dirigindo o meu táxi. Sem essa!
E naquele dia estava Francisvaldo ali, obrigado pelas circunstâncias do emprego arranjado através de um amigo, deputado do partido que apoiava o governador, em quem também tinha votado; ali, na expectativa de entrar naquele bicho que tanto admirava, mas que lhe causava pavor. Supersticioso como ele só, a dezena 13, final do número do seu vôo, deixava-o ainda mais aterrorizado.
- Você viu, Marinalva? 513 é o número do meu vôo! E 13 não é número de azar? Murmurou com a voz trêmula.
A mulher o encorajava, enquanto os filhos, indiferentes, pediam para que não esquecesse as encomendinhas solicitadas.
Antes de embarcar, por algumas vezes, foi ao W.C. atendendo, não só a cólicas intestinais, como a hiperplasia da próstata, que, felizmente, não lhe representava um problema mais sério, como ficou constatado em exame a que se submetera meses atrás. Parecia, na verdade, um cadáver ambulante, impaciente, e já bem vestido, não para aquela viagem, mas pronto para o seu próprio enterro. Só faltava o caixão. Sem outra alternativa, abraçou e beijou a mulher e os filhos.
Com a voz embargada, murmurou ao ouvido da companheira:
- Querida, seja o que Deus quiser... Reze por mim! E se dirigiu para o portão de embarque, acenando com o lenço molhado de suor. Logo o “boeing” taxiou, deixando o estacionamento em busca da pista de decolagem. Em seguida, aos olhos atentos de Marivalda e dos filhos, correu no retão de asfalto e alçou vôo e desapareceu entre nuvens escuras que cobriam boa parte do céu de Brasília.
O tempo de viagem, anunciado, seria de três horas. As demonstrações rotineiras de emergência, feitas por duas comissárias, gelaram Franscisvaldo. “Os assentos das poltronas são flutuantes e podem ser levados para fora da aeronave, em caso de um pouso forçado na água”. Transmitiu a comissária.
- Meu Deus! Estou perdido! Falou consigo. Aquilo não salvaria a sua vida. Se, pelo menos, soubesse nadar. Interrogou-se.
Ereto em seu lugar, não se desfez, em nenhum momento, do cinto-de-segurança. E as mãos suadas e geladas não se desgarravam dos braços da poltrona. Recusou tudo que lhe foi oferecido. Enquanto isso, o seu companheiro, ao lado, um padre, idoso, que ia a Belém para as festividades do Círio de Nazaré, notando a angústia por que passava Francisvaldo, procurou demovê-lo daquele estado desesperador.
- Filho, tenha calma. Esteja certo de que o avião é o transporte mais seguro que eu conheço. Veja as estatísticas. O número de desastres em veículos que correm em terra firme é muitas vezes maior do que nesses aparelhos voadores.
- É mesmo, padre?
- Não tenha dúvida.
- Tudo bem, padre. Mas, eu queria me confessar...
- Confessar? Por quê, filho?
- Porque sim, padre. Minha hora é chegada e eu quero morrer sem pecados.
Francisvaldo fez um retrospecto de sua vida; um verdadeiro inventário dos seus atos, destacando os deslizes que, muitas vezes, cometera. Alguns adultérios inconseqüentes, traindo a passividade e a ingenuidade da fiel e dedicada esposa Marinalva. O arrependimento tocava-lhe profundamente. Pediu mil perdões a Deus, porque estava convicto da sua morte. O avião cairia num daqueles rios enormes da nossa Amazônia. Talvez no Solimões ou no Rio Negro.
O religioso acabava de ouvir, pacientemente, as palavras de arrependimento do desesperado companheiro quando os sinais luminosos advertiam os passageiros para que usassem os cintos-de-segurança. A pesada máquina voadora, naquele instante, penetrava numa violentíssima zona de turbulência. Toda a fuselagem estremeceu. E Francisvaldo mais ainda.
- Eu não falei, padre! Olhe aí! Estamos perdidos. Exclamou, apavorado.
O bondoso padre, paciente, chamou pela campainha a comissária, que logo providenciou um tranqüilizante, que Francisvaldo deglutiu num só gole. Mas não lhe causando nenhum efeito. Ao contrário, seu nervosismo aumentou. Outros passageiros, principalmente as mulheres, também entravam em desespero. Ele as acompanhou no assomo de choro.
E os letreiros luminosos insistiam mandando “usar cinto”, enquanto o gigantesto “boeing” perdia altura, baixando lentamente em estranhas evoluções, ora para a direita, ora para a esquerda. Tinha-se a impressão que voava desgovernado, sem comando, divisando-se embaixo a extensão de um imenso rio de águas barrentas, como observou Francisvaldo pela janelinha ao lado do padre, quando a aeronave tombou para o lado direito da posição da sua poltrona. Ele já se considerava um defunto. Não sabia nadar. De nada lhe valeram as instruções da comissária sobre os assentos, que serviriam de bóias. Do livro de recomendações, enfiado no bolso do encosto da poltrona à sua frente, nem tomou conhecimento.
Os comissários movimentavam-se apressados pelo corredor do avião. Uns pedindo calma às mulheres e às crianças. Essas choravam vendo a angústia das mães; outros pediam que todos permanecessem em seus respectivos lugares até que o comandante lhes transmitisse outras instruções. O pânico geral só pioraria a situação. Calma! Calma, pessoal! Era o que se ouvia daqueles funcionários.
Francisvaldo ainda se declarou um miserável ao padre por não ter deixado um seguro de vida significativo para a mulher e os filhos.
- O que será, seu padre, da minha Marinalva com os meus dois meninos para acabar de criar?
- Deus proverá! Deus proverá, meu filho! Consolava.
A iluminação interna foi desligada, vendo-se assim, num vermelho nítido, a recomendação: Não fumar. Usar cinto.
E a voz do comandante encheu todo o compartimento de bordo:
- Atenção, senhores passageiros! Quem lhes fala é o comandante Portela. Mantenham-se, por favor, em seus lugares. Cumpram à risca o que os nossos comissários estão recomendando! Neste momento estamos tentando uma amerissagem. O rio, que estão vendo lá embaixo, é o Solimões! Agora eu sou o comandante de todos vocês. Tenham fé!
Quando a fuselagem do avião tocou a superfície das águas, o desespero generalizou-se. A porta de emergência logo se abriu dando lugar a água que cobria o chão acarpetado da aeronave, em toda a sua extensão. Francisvaldo logo teve o seu terno novo molhado com o volume maior de água que chegava à cintura de todos.
Naquele momento Francisvaldo foi acordado pela esposa, como fazia costumeiramente todas as noites. Era hora de atender à sua necessidade fisiológica, relativa à sua micção.
E assim ele não “morreu”, como narrou para os colegas do ponto de táxi.

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