Usina de Letras
Usina de Letras
279 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62176 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22532)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50582)

Humor (20028)

Infantil (5424)

Infanto Juvenil (4757)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6183)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->26. O QUADRO-NEGRO -- 30/04/2002 - 07:02 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando Valdemar se sentou à escrivaninha para a dissertação mediúnica do dia, já assonorentado e meio macambúzio, solicitou das entidades que o amparavam que lhe facilitassem o ditado, oferecendo-lhe quadro-negro em que os dizeres pudessem ser impressos, para mera cópia. Em sua semiconsciência, foi capaz de imaginar quadros de fundos brancos com escritas azuis, vermelhas, verdes e amarelas, ou vice-versa. Supôs que, necessariamente, o quadro poderia não ser negro nem a escrita branca.

Assim que terminou as preces, pondo-se à disposição de seu povo, começou a redigir mensagem parecida a esta, sem que nada do que se passara pela mente tivesse sido atendido; mas a mensagem em si fazia-lhe evidente referência aos sentimentos.

Preocupou-se com o transcorrer da narrativa, pois achava que o fato fora extraordinariamente simples, revelando mero desejo de ser atendido em pedido que lhe parecia absolutamente coerente e tranqüilo. Talvez pudesse imaginar que, no fundo, tal solicitação enveredasse por ínvios caminhos conscienciais de alguém que não estivesse inteiramente satisfeito com sua missão, já que tudo que transcrevia tinha o cunho característico de sua personalidade. Certamente, poderia também entrever que tivesse havido na manifestação do desejo algo insuflado por espíritos impuros, principalmente porque o fato ocorrera imediatamente antes das preces, em momento em que lhe parecia estar evidente a possibilidade de os mentores não terem assumido completamente o domínio da imantação.

Assustou-se ainda mais, ao verificar que o desenvolvimento da mensagem, tal como esta, infiltrava-se-lhe pela alma e revolvia certos problemas mui íntimos que desejaria não ver revelados através de sua pena, para não dar a impressão de animismo ou mistificação. Empolgar-se-ia até, se outro médium lhe apresentasse tal mensagem, uma vez que, decididamente, ficaria totalmente evidenciada, da maneira mais categórica e sublime, a honestidade de sua mediunidade e a verdadeira fonte espiritual das mensagens que traduzia.

De repente, eis que a pena permanece suspensa no ar por alguns instantes. Não chegou a um minuto, mas pareceu-lhe evidente ter sido interrompido o fluxo mediúnico. Isso o assustou deveras pois, diante do papel, por mais que vasculhasse a mente, não conseguia a palavra ou expressão mais correta para dar seqüência ao pensamento. Descansou da preocupação ao perceber que novamente as idéias lhe surgiam perfeitamente adequadas ao teor da mensagem. Para melhor compreensão, suponha o leitor que, mais acima, nosso escrevente se visse em apuros para continuar a frase a partir de mediunidade.

Se Valdemar tivesse tido oportunidade de meditar a respeito do texto, teria verificado de pronto que o termo que melhor se encaixava no contexto talvez pudesse até não ser aquele que lhe foi proposto em seguida, mas, mergulhado no trabalho, não teve oportunidade de tal discernimento, mesmo porque as frases começaram a acotovelá-lo e a terminologia se complicou, apressando-lhe o passo à escrita. Sentindo a tendência à pressa, considerou mentalmente a respeito da perfeição e pediu aos amigos que moderassem o influxo, de sorte a possibilitar-lhe apanhado condigno, de modo a não tornar a mensagem capenga. Sabia que as idéias eram elevadas, que o sentimento era puro, que o tema era interessante, mas temia pela precisão, clareza e elegância dos vocábulos.

Convenceu os amigos a argumentação, mas de tal modo diminuiu a magnetização que, aos poucos, Valdemar se viu em palpos de aranha para prosseguir intimorato a registrar os termos. Agora tinha tempo para escolher, para avaliar, para decidir-se, mas faltava-lhe o ponto de apoio espiritual que lhe daria integral certeza de que o caminho para a pena era exatamente aquele. Antes que duvidasse da veracidade da atual conjuntura mediúnica, sofreu novo impulso energético e a velocidade retomou o antigo ritmo, serenando-o inteiramente.

Vendo a celeridade e a presteza com que lhe acorriam à mente as palavras, desafogou o espírito e liberou-se das preocupações. Nesse momento, ocorreu-lhe o quadro-negro inicialmente proposto como solução para a fidedignidade do ditado, mas rejeitou totalmente a pretensão como inócua diante da facilidade com que tomava cada uma das palavras e expressões, em sua avaliação, as mais próximas possíveis daquilo que qualquer escritor mediano poderia consignar. Pensou em que o escrito copiado do écran talvez pudesse representar obra mais literária, mais precisa e, certamente, mais digna da elevação moral dos comunicantes, mas reconheceu que, talvez, fosse necessário que os espíritos buscassem os termos em seu acervo, uma vez que, lembrava-se, a comunicação espiritual sempre se dava por meio dos pensamentos, que só ganhavam forma verbal por intermédio do denso veículo de carne do instrumento mediúnico.

Ficou, assim, contristado, pois descobria, finalmente, que tudo o que poderia oferecer aos amigos do plano espiritual era acanhado poder de linguagem, fruto, é verdade, de longas horas de estudo, decalcado em parca inteligência e em desconhecido aparato carreado de encarnes anteriores. Aliás, tal influenciação pretérita parecia-lhe muito insignificante pois, médium há bastante tempo, jamais lobrigou qualquer expressão ou palavra que lhe não fosse conhecida desta presente encarnação. Às vezes, surtia-lhe da pena algum vocábulo estranho à primeira vista, que lhe rebuliçava os sentimentos, por julgar que o novo finalmente estava presente. Mas não demorava, percebia que a formação vocabular poderia ter-lhe sido sugerida pelas palavras do quotidiano ou que fosse tíbia recordação de alguma leitura antiga, feita ao acaso dos seus variados interesses.

Eis que Valdemar, sem que se apercebesse, terminava a terceira folha do manuscrito, do palimpsesto, se esse nome podemos dar ao primeiro autógrafo — fique o escrevente encarregado de verificar e anotar -, em letra miúda e apertada. Surpreendia-se de novo por ter seguido desconhecido roteiro que, como poderia avaliar mais tarde, continha diretriz absolutamente coerente com as normas estabelecidas para as narrativas de cunho psicológico, ou seja, após a apresentação de determinado problema, a personagem vai conduzindo o pensamento, complicando a situação através de acrescentamentos de diversas conjunturas que irão determinar certo momento em que o drama poderá resolver-se pelo pior, quer dizer, o temor de se ver desamparado ou a descoberto obriga o indivíduo a resolver o litígio de uma forma ou de outra, sendo que as perspectivas vislumbradas apontam todas para desfecho em que irá ter de admitir sua derrota, a perda de algum bem, quando não o desmoronamento completo da personalidade, arrasando-se-lhe o amor-próprio, vilipendiando-se-lhe a inteligência, destruindo-se-lhe a fé e a confiança no trabalho que vinha realizando.

Agora, decididamente, diante do último parágrafo, Valdemar parecia estar diante de escrito verdadeiramente seu, pois reproduzia muito de perto, em expressões semelhantes, quando não idênticas, alguns textos de caráter didático que publicara. Sentia-se a pique de sucumbir. Ele e o nosso escrevente.

Mas aí os bons espíritos vieram-lhe em socorro. Primeiro, sugeriram-lhe que parasse de escrever por alguns instantes e recorresse, através de prece emocionada, à assistência nunca negada dos protetores. Quando intentou fazê-lo, imediatamente fizeram com que compreendesse que aquilo não era para ele mas para a personagem do escrito, pois tudo o que ele mesmo vinha passando era mera auto-sugestão, tendo em vista estarem os comunicadores apenas utilizando-se de situação semelhante, para referirem-se a problema comum entre os médiuns semimecânicos ou mesmo conscientes. Que descansasse o coração, pois os objetivos dos espíritos guardiães dos mensageiros estavam sendo totalmente realizados, estando o trabalho em vias de chegar ao fim, faltando-lhe tão-só alguma conclusão lógica e algum pensamento decalcado nos ensinos evangélicos. Que aceitasse as desculpas pelo equívoco em que se viu metido e que pensasse mais seriamente quando fizesse seus pedidos aos amigos, no intuito de ver diminuídas as atribuições e responsabilidades. Poderia até parecer que o quadro-negro tão-só significasse certa tendência ao ócio, o que o dia-a-dia do trabalhador desmentia iniludivelmente. Se continuasse a trabalhar daquela forma, certamente teria a satisfação de ver reconhecida a sua vida como inteiramente consentânea com os propósitos e projetos com que foi planejada. Quanto à dignidade da escritura, quanto ao valor literário da obra, quanto à moralidade nela inserta, quanto à forma e à estrutura lingüísticas, que fosse o melhor juiz o público leitor, ficando o caro Valdemar restrito à condição de mero apanhador de recados. Que o serviço justificasse o servidor diante da verdade e isto certamente o apontaria como merecedor de adentrar o reino de Deus.

Naquele dia, Valdemar respirou verdadeiramente aliviado quando chegou ao fim do trabalho. Após as habituais preces, releu o texto, avaliou o nome da personagem que ali estava inscrito, apagou-o, escreveu o seu mesmo, transformando o que era Alberto em Valdemar e, agradecendo efusivamente a qualidade da manifestação, fez solene promessa de que, dali por diante, se limitaria a apanhar as comunicações com o máximo de boa vontade, tal como viessem, para não desmerecer o amparo de que se viu alvo. Reconheceu que o roteiro da mensagem deveria pressioná-lo, uma vez que fazia questão de perlustrar os mesmos caminhos trilhados pelos mensageiros, mantendo-se cônscio de tudo o que lhe passava pela pena para o papel. Queria ter sempre o domínio da veracidade e da verossimilhança em relação às teorias da doutrina que abraçava com tanto ardor e dedicação; por isso obrigara-se a suportar as investidas ao seu aparato mental e sentimental. Compreendia, finalmente, que fora objeto de muito amor dos guias e protetores e orou com extraordinária emoção, agradecendo a Deus tamanha felicidade. Sem esquecer-se dos companheiros, pediu licença para dar a conhecer aos amigos médiuns a belíssima mensagem e solicitou a Deus que o seu drama pudesse significar para todos o advento da mesma luz e da mesma benignidade.

Terminou o trabalho do dia em êxtase de amor.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui