Major Cosme de Farias
A pessoa que considero mais extraordinária na história da humanidade é Mohandas Karamchand Gandhi, conhecido por Mahatma Gandhi, o herói indiano, principal responsável pela independência de seu país, “cujas doutrinas se fundavam sobre o valor espiritual do trabalho doméstico e a não violência”.
Esse faquir seminu, como o chamava Churchil, que usava sandálias, fiava sua própria roupa e percorria longas distâncias a pé obteve resultados inacreditáveis sobre seu povo com sua pregação e exemplo pessoal, numa época em que não existia televisão e as mensagens eram transmitidas de boca a boca e através de rádios e alto-falantes de pequena potência.
Embora o mundo o tenha ainda em grande conta e sua vida registrada em muitos livros e no cinema, sua memória e ações raramente são lembradas nos dias de hoje, quando os heróis são seus antípodas, exatamente aqueles que cultuam a violência, a arrogância e a intimidação.
Faço esse preâmbulo para falar do Major Cosme de Farias, jornalista, orador, rábula, poeta, criador da Liga Baiana contra o Analfabetismo, um dos baianos mais populares de seu tempo, figura que também vive no esquecimento e que me lembra um pouco o Mahatma Gandhi.
Quando eu era menino sempre participava dos desfiles cívicos do Sete de Setembro e do Dois de Julho, ao lado de milhares de colegas de colégios públicos ou privados da Bahia e dos batalhões das Forças Armadas e Polícia Militar e do Major Cosme de Farias empunhando o pavilhão da sua Liga Bahiana contra o Analfabetismo e distribuindo cartilhas do ABC.
A presença do Major, um tipo mirrado, metido numa fatiota do século passado sempre me impressionava. Mesmo depois que deixei de desfilar, já casado, gostava de assistir às comemorações para reencontrar o Major Cosme.
Em paises de cultura diferente da nossa, como os Estados Unidos, que cultuam a heroicidade do homem comum, uma história como a do Major Cosme de Farias já teria rendido dezenas de livros, estudos acadêmicos e filmes de época, com sua vida romanceada.
Afinal, como não considerar extraordinária a existência de um mulato baixinho, nascido treze anos antes da Abolição nas camadas mais pobres de uma sociedade escravocrata que, major, nunca serviu às Forças Armadas, e advogado, não possuía diploma de bacharel em Direito e concluiu apenas o curso primário?
Idealista, o Major Cosme de Farias dedicou sua vida à defesa dos mais fracos, representando-os no Tribunal do Júri, por qualquer crime que tenham cometido, quase sempre sem receber honorários e ajudando-os com empregos e doações de dinheiro e comida.
Patriota, desambicioso de bens materiais, tudo que ganhava distribuía com os pobres. Para defender sua causa e lutar pela educação básica entrou na política e obteve quatro mandatos, sendo três de deputado estadual e um de vereador.
Poeta, foi jornalista por mais de 75 anos, tendo assinado matérias em praticamente todos os jornais de Salvador. Seus artigos sob o título de “Linhas Ligeiras” tratavam de problemas do quotidiano e defendiam suas idéias.
Foi também um homem engajado nos movimentos sociais de seu tempo, participando do Centro Operário da Bahia, do Liceu de Artes e Ofícios e da Associação Bahiana de Imprensa.
Com sua vestimenta de gola alta, peitilho e punhos engomados do século XIX, que gostava de beber cerveja quente, diz-se que era mulherengo, embora tenha permanecido casado 68 anos com a mesma mulher.
Um tipo popular como o Major Cosme de Farias, amado pelo povo, que arrastou mais de cem mil pessoas ao seu sepultamento, considerado o maior cortejo fúnebre da Bahia, ainda não foi devidamente biografado.
Tenho notícias de que Mônica Celestino, jornalista e mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia elaborou sua tese de mestrado “Réus, analfabetos, trabalhadores e um Major” sobre aspectos da vida de Cosme de Farias. Mas o trabalho ainda é inédito, o que é uma pena!
13/09/06
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