AS PROMESSAS E O MAL ESTAR EM TEMPOS MODERNOS
Luciana Marino do Nascimento
Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP
Professora Adjunta do Departamento de Letras da UFAC
Para Aline Cristina M. do Nascimento,
Vigor da juventude e dos tempos modernos.
O século XX foi atravessado pelo signo da modernidade que já vinha sendo gestada há pelo menos quatro séculos anteriores. O termo modernidade tem entrada recente no glossário historiográfico. No Brasil, por exemplo, tal ocorrência tem seu registro somente nas décadas de 70 e 80. Note-se que o termo adquiriu certa popularidade, apesar de constituir uma idéia complexa seja no campo da História, da Sociologia ou da Filosofia.Etimologicamente, o moderno tem origem na palavra modernus (modus / hodiernus) que passou a significar o estar na ordem do dia. Há duas canções de Lulu Santos, intituladas “Tempos Modernos” e “O Último Romântico” , que encerram de maneira magistral, as promessas, frustrações, conjunções, disjunções, continuidades e descontinuidades que a modernidade trouxe para os diversos campos da vida social.
As letras das músicas de Lulu Santos, aliadas às reflexões de Marshall Berman, em “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, nos trazem a oportunidade de repensar a modernidade e nos situar diante de um tempo que muitos vêm denominando, atualmente, como pós-modernidade.
Viver a modernidade, sem dúvida, é arriscar-se ao perigo de enfrentar o novo, o inseguro; é embrenhar-se por caminhos que podem levar a esfuziantes momentos de glória, mas, ao mesmo tempo, ver-se desorientado num mundo de desintegração e mudança, como nos ensina Marshal Berman, em “Tudo o que é sólido desmancha no ar- A aventura da modernidade”, ensaio, cujo título, o filósofo americano tomou de empréstimo do Manifesto Comunista de Marx e Engels:
“Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição, é sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essa forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda que quando tudo em volta se desfaz.”
Ao abrir sua canção, Lulu Santos nos mostra as expectativas que cercaram o imaginário social na modernidade com as promessas de felicidade, beleza, futuro brilhante e uma certa transparência que fomentou uma idéia de ruptura com valores passados, muitas vezes, considerados hipócritas, o que se reflete na exortação do sujeito poético para que se veja e viva o amor e a vida intensamente, exibindo o entusiasmo proposto pelo projeto de modernidade, como podemos observar nos fragmentos abaixo:
Eu vejo a vida melhor no futuro
Eu vejo tudo isso por cima de um muro
De hipocrisia, que insiste em nos rodear.
Eu vejo a vida mais clara e farta
Repleta de toda a satisfação
Do que se tem direito, do firmamento ao chão.
Eu quero ver o amor numa boa
Que isso valha para qualquer pessoa
Eu vejo um novo começo de era,
De gente fina elegante e sincera
Com habilidade pra dizer mais lindo, que não , não, não....
Hoje o tempo voa, amor,
escorre pelas mãos,
mesmo sem se sentir
que não há tempo que volte, amor
Vamos viver juntos o que há pra viver,
Vamos nos permitir.
A consciência da inexorabilidade do tempo e da mudança de paradigmas na canção de Lulu, nos mostra uma fruição das conquistas modernas, ao mesmo tempo em que exibe a perda de elos comuns que antes uniam as pessoas, mas o futuro apresenta-se como promissor, segundo os postulados da modernidade, o que encontra eco, segundo João Carlos Souza Ribeiro, no otimismo do homem moderno que, “inaugurou o século otimista, alegre como o romântico. Paradoxalmente, promove duas grandes guerras mundiais e parte para a segunda metade do século proclamando sua pseudo-liberdade pelo mundo virtual, já acentuado pelas descobertas de um eu que se divide no ambiente do psiquismo; pensa aquele, na trilha romântica, que se conhece a si mesmo.”
Tais idéias são também expostas em outra canção do músico carioca - “ O último romântico”-, na qual Lulu Santos expõe a ruptura com o pensamento da tradição, inclusive, desautorizando discursos que já haviam se tornado consenso. Marshal Berman salienta que apesar de sedutor, o grande projeto de modernidade trouxe em seu bojo idéias paradoxais, ainda que tenha tido como proposta o alargamento de fronteiras, a concepção de universalidade e a crença sem limites na ciência como solução para todos os problemas, como antes já havia aturdido, Freud em “O mal estar na civilização moderna”. O músico carioca expressa muito bem toda a experiência vital da modernidade, como se pode observar na passagem que se segue:
Faltava abandonar a velha escola,
Tomar o mundo feito coca-cola,
Fazer da minha vida sempre o meu passeio público,
E ao mesmo tempo fazer dela o meu caminho só,
O que for.
Talvez eu seja o último romântico,
dos litorais desse Oceano Atlântico,
Só falta reunir a zona norte à zona sul
Iluminar a vida,
Já que a morte cai do azul.
Só falta eu te querer, te ganhar e te perder
Ao meu amor dá aaa,
Ser gente grande pra poder chorar.
Me dá um beijo, então,
Aperta a minha mão,
Tolice é viver a vida
Assim sem aventura.
Se é loucura, então,
Melhor não ter razão.
A utopia e os ideais de liberdade, fraternidade e igualdade estão em cena em ambas as canções de Lulu Santos. Em “ Tempos Modernos”, a felicidade deve fazer parte da vida de todas as pessoas, sem exceção. Em “O último Romântico” unir as zonas Norte e Sul e viver sob o signo da aventura constituem uma ruptura radical com as convenções sociais, ratificando, de certa forma, o projeto de modernidade Iluminista que ficou devendo às suas próprias expectativas, pois, na prática, o sol acabou não reservando um lugar para todos, frustrando a muitos, sendo este um dos tópicos nos quais Freud vai insistir em suas análises em “ O mal estar na civilização moderna”.
Na expressão que fecha a última estrofe: “ melhor não ter razão”, Lulu santos nos mostra a total entrega a uma experiência que promete aventura, alegria, sem que se use demais a racionalidade, pois é o turbilhão moderno que caracteriza o fazer o novo e a liberdade das escolhas dos indivíduos, fatos estes que encontram fundamentos nas promessas do projeto de modernidade, conforme nos mostra Marshall Berman:
“ O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele: a industrialização que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo da vida, gera nova s formas de poder (...), os sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades. (...) No século XX, os processos sociais que dão forma a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se modernização. ”
Lulu Santos talvez queira nos mostrar que apesar da época em que vivíamos no Brasil - início do anos 80- década vista como “ perdida” por muitos historiadores e cientistas políticos, apesar de escassos, os sonhos, ainda não haviam acabado, a nova década eclodia sob o signo da modernização do país, com a abertura política, novos parques industriais, o surgimento do Rock Brasil, a era da disco music havia se consolidado e a realização de um grande festival de Rock: o Rock in Rio, colocava o Brasil em sintonia com o que havia de mais inovador no Rock e no Pop Rock:
(...) “Presenças como as de Arnaldo Antunes e Os Titãs, numa linha punk-minimalista, de Cazuza, misturando blues e ritmos brasileiros, e de Renato Russo e a Legião Urbana, (...) forneceram o mesmo tipo de pão essencial prodigamente distribuído vinte anos antes por Caetano e Chico.”
Cabe ressaltar que a expressão “O último romântico” foi dita, nos anos 60, por Nelson Rodrigues para Nelson Motta, produtor de Lulu Santos. Quando Motta era jornalista do Jornal “ A Última Hora”, do Rio Janeiro, o teatrólogo, lá, também trabalhava e no afã de juventude, Nelson Motta havia escrito um artigo, no qual rotulava o eminente teatrólogo de “ apolítico”. No dia seguinte, o jovem crítico musical ficou a espera de uma reação destemperada de Rodrigues, entretanto, este saiu a repetir em tom alto pelos corredores do jornal :
“ – Nelsinho, você é o último romântico”! o que divertidamente, ele denominava de “esquerda festiva” e, com isso, já nos advertia que as defesas apaixonadas ao extremo, de uma pseudo-politização não surtiam efeitos, de fato. Por outro lado, caracterizava um retorno ao exagero das expressões românticas, o que demonstra a sua atualidade.
Reler Lulu Santos e seu otimismo num tempo como o nosso em que o “eu” encontra-se fragmentado, imerso num niilismo, envolto em intensas crises políticas no país, que atingem, também, a industria cultural, tão pasteurizada, onde tudo é homogêneo, nada se cria, tudo se retoma, é. Sem dúvida, lembrarmos que não podemos perder de vista as utopias artísticas e afinal, “o sonho não acabou”.
Referências Bibliográficas
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MARINO, Luciana. O moderno. In: A cidade de papel. Varginha: Alba, 2000.
MORICONI, Ítalo.Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira. In: PEDROSA, Célia et. al . Poesia hoje. Niterói: EDUFF, 1998.
RIBEIRO, João Carlos de Souza. Sob o fio da navalha: Da modernidade Brasileira e Utopia da Pós-modernidade nacional.In: LOBO, Luiza et. al.(orgs.). A Poética das cidades. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.p.51-70
SANTOS, Lulu. De leve. Rio de Janeiro: Globo/Wea, 1996.
|