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Contos-->25. O MÉDIUM BEM FALANTE -- 29/04/2002 - 06:37 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Josias era bom amigo de todos. Possuía altamente desenvolvida a faculdade de falar, a qual, aliada a bom nível de perspicácia na observação das qualidades e defeitos dos demais, tornava-o pessoa apreciada por todos, já que jamais tecia qualquer comentário desairoso, nem nunca propunha qualquer arbitrariedade conceitual ou filosófica diante da insignificância dos companheiros. Sentia-se superior e julgava que fora apaniguado por tremenda vocação para o pensamento leve, ágil, rápido e preciso. É verdade que sabia ouvir calado as observações de todos, mesmo quando lhe pareciam sem fundamento. Pensava sempre:

“Dia virá em que o conhecimento há de chegar a cada um de nós. Se eu contestar agora, por mais delicadamente o faça, poderei manifestar interesse em prevalecer-me da situação. A palavra é de prata, o silêncio é de ouro...”

E deixava o barco correr.

À mesa da confraternização mediúnica, punha-se de sobreaviso em relação a certas manifestações mais grosseiras e impedia as comunicações que pudessem ensejar mal-estar coletivo. Domava o espírito por meio de suas ponderações, pois o que se recusava a expor aos encarnados, dizia com toda a franqueza aos sofredores. Pensava ele:

“Se os bons amigos da espiritualidade permitiram a aproximação destes irmãos e, mais ainda, estimularam que manifestassem os pensamentos, por certo estão querendo que lhes digamos, com toda a honestidade, o que pensamos a respeito de suas idéias e de suas atitudes.”

Delicadamente, é verdade, mas com muita firmeza, travava memoráveis discussões, mas tudo no âmbito da espiritualidade. Os parceiros de mesa ignoravam por completo essa faceta do bom amigo. Quando chegava a vez dos instrutores, deixava-os externar livremente os pensamentos, pinçando aqui e acolá as principais idéias para apoderar-se delas e introduzi-las em seu catálogo particular.

Certa ocasião, sem que suspeitasse, adentrou-lhe no âmbito de atuação, cercado dos devidos cuidados magnéticos, potente criatura do mundo inferior, capaz de inferir de imediato o tônus intelectual do instrumento. Viera, sem saber, para prodigalizar a Josias severa lição; se soubesse, retrair-se-ia.

Avisado de que poderia manifestar-se, disse logo que desejava externar os parabéns ao amigo que o recebia pelo tato em evitar os desassossegos naturais entre os companheiros, quando da sustação de descabidas manifestações. Pego de surpresa pela lisonja, não percebeu Josias a grave revelação que se imiscuíra na frase do recém-chegado. Só isso bastaria para atiçar a curiosidade a todos, mas a esperta entidade prosseguiu em seu ataque camuflado:

— Bons amigos, venho para vos desvendar o segredo íntimo desta criatura que me serve de instrumento.

Aguçada a curiosidade e verificada a composição lógica da frase, formulada no mais castiço vernáculo, ao tempo que perfeitamente operada dentro dos conceitos doutrinais, Josias prosseguiu a dar vazão ao discurso:

— Em encarnação precedente, este nosso bom amigo teve a coragem e o discernimento de se sacrificar pela humanidade. Acuado em séria acusação moral sem fundamento, deixou-se amargar demoradamente nas trevas de profundo cárcere, enquanto seus perseguidores se aproveitavam de sua fortuna. Na escuridão, recebia a visita constante de certo anjo de luz, por Deus enviado para lhe enxugar as lágrimas de sangue e para agradecer em nome dele as orações pela salvação das almas dos inimigos. Vós estais diante de um santo, embora não tenha sido canonizado. Para comprovar tudo o que dissemos, basta procurar nos anais da Torre do Tombo, em Portugal, pela figura de certo frade capuchinho, Manuel Raimundo, que se devotou à vida da caridade em seus últimos dias, após ter sido liberado da prisão. Não vou estender-me mais a respeito de nosso Josias, para não torná-lo ufanoso de seus méritos pessoais.

Despediu-se e retirou-se.

No plano espiritual, o confrade das profundezas foi cercado pelos guias e sofreu a desdita de ouvir solene prédica a respeito das petas que pregara ao encarnado. Como reconhecia que usara de malícia, foi-lhe confiada a missão de caminhar ao lado do irmão Josias nos próximos anos, para conhecer a repercussão de seu ato. Tudo isso, entretanto, sob estreita vigilância.

Após o término das comunicações, ligou-se o aparelho retransmissor, para que se pudesse ouvir a fita gravada. Todos se maravilharam a respeito do que Josias havia dito. Alguns teceram elogios complementares ao bom companheiro e admirados ficaram com o fato de, finalmente, conhecerem aquele aspecto inaudito de sua personalidade: a doutrinação.

Para Josias, tudo parecia um sonho: nunca suspeitara quão bom era ficar no centro das atenções. Deixou-se seu ego afagar por aquela vitória e envaideceu-se sobremodo por ter sido tratado com tanta consideração por espírito tão elevado, principalmente porque era sabido que, através de sua voz, só se ouviam graves conselhos e considerações.

Só, em casa, por sábio espírito de desconfiança, abriu ao acaso O Livro dos Espíritos e leu a respeito dos cuidados que se devem ter com espíritos enganadores. Não ficou satisfeito, tomou O Livro dos Médiuns e, buscando aleatoriamente algum texto, encontrou séria recomendação aos intermediários que se vêem na condição de alvo das atenções elogiosas dos espíritos. Refletiu bastante e, relutantemente, decidiu investigar a veracidade das informações a respeito da figura do capuchinho.

Fez os preparativos para a viagem, arrecadou os últimos centavos disponíveis, deixou a família em polvorosa com a inopinada atitude e partiu para Portugal, para esclarecer, definitivamente, sua condição de ex-santo.

Na Torre, percorreu os catálogos das obras e nada encontrou que pudesse referir-se ao Manuel Raimundo da comunicação. Soube que havia enorme quantidade de manuscritos e de pergaminhos sem catalogação e predispôs-se a vasculhar tudo, para encontrar a buscada referência. Investiga que investiga, nada encontrando, surgiu-lhe a necessidade de estudos especializados a respeito das técnicas científicas que os procedimentos exigiam. Perpassou por inúmeros cursos ministrados para os que se aventuravam na pesquisa documental. Aprofundou-se na história, na arte, na língua. Tornou-se emérito conhecedor de numismática, filatelia, filologia. Adentrou pelos caminhos da conservação e preservação dos códices. Aperfeiçoou-se em biblioteconomia, dedicando especial atenção à história da imprensa. Foi mais além, estudando as técnicas dos papiros, das inscrições em alto e baixo relevo, procurou conhecer as anotações hieroglíficas, visitou as tumbas etruscas, interessou-se pelos escritos árabes, chegando, inclusive, a entender um pouco dos caracteres cuneiformes.

Com esse largo acervo de conhecimentos, estabeleceu a história de diversos documentos importantes e escreveu várias obras, tornando-se respeitável sábio no campo da investigação documental.

Mas do Manuel Raimundo, nem sombra.

Manteve, durante certo tempo, correspondência com os companheiros do centro até descobrir que pouco relacionamento já havia entre eles, sustando o intercâmbio.

Voltou ao país depois de dezessete anos de subidos esforços para a decifração do mistério.

A medo, adentrou o antigo centro ainda com as mesmas paredes vetustas, mas com móveis novos e cadeiras mais confortáveis. De sua turma, restavam três bons amigos; os demais dispersaram-se pela vida. Durante o seu périplo investigante, esquecera-se da doutrina e agora reconhecia que isto por certo tivera sido um erro. Deixou-se envolver pelas calorosas saudações dos companheiros e aceitou o amável convite para se sentar à mesa da doutrinação.

Desabituado, estranhou o alvoroço que causara, pois viera precedido de aura de fama que, absolutamente, não suspeitava. Falavam ainda do santo Josias, que partira para Portugal, para investigar — fato grandioso — os indícios de outra encarnação.

No dia da reunião, meio sem jeito, sentou-se no antigo posto e deram início aos trabalhos. Os primeiros a se manifestarem foram os instrutores do centro, que o saudaram como a velho amigo que retorna de longa viagem. Impelido pelo frêmito conhecido da presença de espírito desejoso de comunicar-se, Josias deu curso à fala que lhe veio à consciência:

— Desculpe, caro Josias! Da última vez que, por seu intermédio, me manifestei, pensava estar induzindo-o a sério erro. Na verdade, sofrido por ter perlustrado a vida em descompasso com as virtudes evangélicas, não tivera eu condições de avaliar a situação em que fora colocado. Através dos mares e das terras do continente europeu, fui seu acompanhante de todas as horas. A princípio, diverti-me muito com o fato de tê-lo impelido à escusa aventura ao derredor de sua ambição de humildade. No entanto, o sofrimento diante das seguidas frustrações foram indicando-me a dor e o mistério dos caminhos que se tem de seguir para a compreensão de sua causa e a proposta de solução. Cada poeira que lhe penetrava nos pulmões, erguida pelo manuseio dos antigos documentos, feria-me a mim no fundo da consciência. Intentei várias vezes afastar-me ou afastá-lo das pesquisas. Irresistivelmente, sempre voltava a verificar e a avaliar os limites de sua ansiedade. Invariavelmente, frustrava-me com a firme determinação da busca da verdade evidenciada pela sua tenacidade. Certa feita, indiquei-lhe vários documentos em que se falseavam elementos e fiz-lhe ver que tudo poderia estar ali contido. Você simplesmente copilou os dados e ofereceu-os aos estudiosos da administração pública portuguesa. Esquecido de mim, vivi a sua vida intensamente, pois responsabilizava-me pelos seus infortúnios. Foi nessa altura que consegui entender o que se passava. Você estava atrás de sua identidade atual e não da personagem mística que eu lhe havia pintado. A busca maior se dava dentro da consciência, pois você queria confirmar, na realidade, que tudo fora mentira e não verdade, pois descobrira, um pouco tarde, que poderia ter sido ludibriado, para poder enxergar mais além. Acreditava-se perfeito, porque possuía em alto grau o poder da palavra. Empregava-a, contudo, para satisfazer as expectativas das pessoas, principalmente para captar-lhes as benesses e atenções, embora lhe sobejassem na mente as informações de que estavam erradas e precisavam ser esclarecidas. Achava-se tão superior que não dava azo a que os espíritos menos esclarecidos pudessem expor os vícios à doutrinação dos companheiros, o que teria auxiliado a todos em ambos os planos, mediante a indefectível avaliação e conseqüente meditação a respeito. Enfim, preocupava-se muito mais consigo mesmo do que com a necessidade de aperfeiçoamento através do trabalho. Considerou que seu aparato lhe era suficiente para a vida, esquecendo-se de que tudo é perfectível e carente de melhorar-se. Hoje volto humilde a rogar-lhe perdão e compreensão para minha malícia e desprezo pela figura humana que você era. Sei bem que se apercebeu de toda a verdade ao longo destes anos de sofrimento. Conheço sua história porque conheço a minha. Espero que possamos compartilhar, um dia, a alegria de nos congraçar no além, para rogarmos ao Senhor nova oportunidade junto aos mortais, se você estiver de acordo. Que estes anos perdidos na busca intensa de nós mesmos possam ser revertidos em favor do próximo e que as desditas que sofremos possam transformar-se em trampolins para nossa ascensão à casa do Senhor. Se cotejar a longa manifestação de hoje com a apagada lembrança que conserva da anterior, poderá avaliar a extraordinária mudança operada em minha maneira de ser. Espero que este possa ser o espelho em que passe a se mirar daqui para frente.

Despediu-se e retirou-se.

O povo na sala estava extasiado com a facilidade do discurso e a correção da exposição. Os velhos companheiros deixaram escapar algumas lágrimas por compreenderem a extraordinária transformação por que passaram os dois seres, principalmente aquele amigo tão brilhante que partira para elucidar o sonho. Josias espantara-se com a possibilidade do contacto tão familiar com a entidade cuja presença suspeitara desde há muito.

Em casa, como que engasgado diante dos familiares, alguns verdadeiros desconhecidos pelos anos de ausência, embargado pela emoção, mal pôde referir os acontecimentos da noite, encontrando tão-só algumas palavras para externar sua vergonha e o seu sentido pedido de perdão.

No leito, longamente rememorou todos os acontecimentos e verificou que merecera a lição e o castigo: lição aplicada pelos protetores e guias; castigo determinado pelos próprios defeitos, dentre os quais avultava a presunção do poder e o orgulho da superioridade. Naquela noite, dormiu tranqüilo e sonhou que percorria as estreitas vielas de certa aldeola portuguesa, pisando, com as rústicas alpercatas, as vetustas e desgastadas pedras, portando longo hábito marrom, estendendo os braços em bênçãos aos que passavam e o saudavam alegres:

— Deus te abençoe, pai Manuel Raimundo!

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