LIBERDADE E IGUALDADE
Délcio Vieira Salomon
“O sol nasceu para todos e a sombra para quem merece” gostava de repetir nosso inesquecível Rômulo Paes. Mas ninguém suporta pensar que há merecedores de sombra em detrimento da maioria a se queimar sob o sol causticante das desigualdades sociais.
No fundo, achamos que todos nascemos iguais, com os mesmos direitos ao sol e à sombra, ou seja, aos mesmos postos da vida. Tanto assim que a Declaração de Independência dos Estados Unidos, reproduzindo o fundamento dos ordenamentos da democracia moderna, lançado pela Revolução Francesa, já estabelecia: “Todos os homens são nascidos iguais”. Declaração encampada pela ONU e por todas as Constituições democráticas.
Mas o “todos somos iguais” passou a ser outro lugar comum, apesar de hipócrita. Projeção ao contrário. Racionalização invertida.
No fundo, temos consciência da desigualdade entre os homens. Basta observarmos em nosso redor, para constatarmos que os homens não são iguais. Aliás, ONU e Constituições ditas democráticas encamparam o princípio da igualdade, com a ressalva: “perante a lei”.
E como lei só existe, de fato e de direito, quando sancionada e praticada, até hoje estamos aguardando sanção e prática que nunca vieram.
O dia em que esta fantástica epifania acontecer, então sim poderemos dizer com toda a convicção: - somos todos iguais, porque somos todos livres e somos todos livres, porque somos todos iguais.
Até o pai da democracia americana, Thomas Jefferson, chegou a escrever: “Há uma aristocracia natural entre os homens. Os fundamentos desta são a virtude e o talento. Considero a aristocracia natural como a dádiva mais preciosa da natureza”.
Outro clássico da democracia americana, John Adams, indagava ironicamente: - “Mas o que entendemos nós aqui por igualdade? São os cidadãos todos da mesma idade, sexo, peso, força, estatura, atividade, coragem, firmeza, assiduidade, paciência, ingenuidade, riqueza, conhecimento, fama, habilidade, temperança, constância e sabedoria? Houve ou haverá uma nação, cujos indivíduos foram ou serão todos iguais em qualidades naturais e adquiridas, em virtudes, talentos e riquezas? A resposta de toda a humanidade haverá de ser sempre negativa”.
Dezenas de aforismos, frases de efeito ou boutades como a de Bush, ao proclamar “os USA o guardião da liberdade no mundo”, passam a engrossar o volume das sentenças que, de tanto repetidas, se tornam “verdades eternas”.
Com pouco esforço analítico verificaríamos que não passam de uso dos mecanismos de projeção e de negação. Tenho para mim que, depois de Freud e Marx, o mundo ficou desmascarado. Desmascarou-se toda a “falsa sabedoria” contida nos dogmas, provérbios, proclamações retóricas. Projeções da falsidade que existe no âmago de todos nós e só a revelamos na tela que a humanidade tem erguido sobre a face desta terra devastada por tanta hipocrisia.
Consolo resta: um dia existiu Freud, o gênio desbravador do inconsciente, para desvendar nossos segredos embutidos atrás de montanhas de cinismo. E junto com ele, seu contemporâneo e patrício, o velho e o jovem Marx, que apontou a impostura dos ricos que exploram os pobres.
Assim penso e continuarei a pensar. Tenho consciência de que não estou pensando muito diferente de Nietzsche. E isso é um bruto dum consolo. Vã é a filosofia, se perder sua missão de desmascarar a hipocrisia. Ainda que nada possa construir em seu lugar.
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