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Contos-->23. O PINHÃO -- 27/04/2002 - 06:52 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ardoroso na luta contra a ignorância dos companheiros, Jeremias opunha a mais férrea resistência a toda manifestação que envolvesse resquício sequer de algo em contradição, por mínima que fosse, com qualquer fato da natureza. Tinha a opinião de que todos deveriam esmerar-se por progredir.

Pobres de nós se se atrevesse a ler o que estamos a redigir. Discutiria cada palavra e proporia sérias alterações com o objetivo de tornar cada termo mais claro e consentâneo com as normas ajustadas entre os humanos. Amigo das convenções, antes e acima de tudo era perfeccionista.

Jeremias era tido entre os pares no centro espírita como arrogante e presunçoso, mas quem se atreveria a sequer imaginar propor-lhe tais termos com a fugidia pretensão a encaminhamento de sombra de dúvida? Ninguém. Quando Jeremias falava, todos se calavam. Aliás, incorreta observação: quando Jeremias estava presente, ninguém conseguia mais abrir a boca, com medo de ser alvo de ferina estocada do confrade.

Um dia, certo parceiro ousou dizer um para mim fazer que lhe feriu os brios do vernáculo. Na reunião seguinte, toma de Rui, de Camões e de Bernardes. Outro, esquecido da presença do amigo, disse, de passagem, que a alma do desencarnado... Tanto bastou para levar de Kardec, André Luís e demais luminares da ciência espírita. Não bastava a infortunada vítima de sua arrogância jurar de pés juntos que conhecia a regra e o conceito, mas que resvalara por pura imprevidência, que aí vinha profundo sermão a respeito da responsabilidade, da firmeza de caráter e do direito dos irmãos ao respeito de suas convicções.

O homem era duro!

Emérito médium psicofônico, suas manifestações primavam pela lógica da linguagem e pela correção da doutrina. Espírito sofredor e ignorante, pela sua voz, parecia a transubstanciação do idioma na mais elevada postura angelical. Se lhe vinham à mente conceitos errôneos, idéias perversas, intenções malignas, não deixava passar para os ouvidos dos doutrinadores; pegava a palavra a unha e tecia longos comentários a respeito da virtude e das leis, de modo que as comunicações se encerravam, invariavelmente, pela palavra do orientador da casa, manifestação inequívoca da grandiosidade da criação.

Um dia, ao ditar as instruções da semana, resumo necessário das atividades do grupo, deparou-se com insólita situação. Pequena frase fê-lo embatucar diante da confusão que se lhe estabeleceu no cérebro. Dentre outros papéis, apanhados das manifestações psicografadas que deveria organizar, corrigir e dar a conhecimento dos parceiros, estava ali registrado num deles que “O pinhão do Jeremias era sempre a mais respeitável.” Assinava em baixo, em letras bem claras, o seu guia, protetor e amigo, Luciano.

Ora, não tinha lembrança de ter constatado que este seu orientador se tivesse manifestado por meio de qualquer dos médiuns desta ou de outra casa. Sendo assim, como interpretar diferente? Por certo houvera sido ele mesmo quem devera ter registrado a ambígua frase. Tendo esgotado os recursos da compreensão que deveria ter a respeito do provável tema do escrito, julgou ter procedido a horrível defecção lingüística, verdadeiro acinte à gramática: sendo pinhão masculino, como se atrevera a escrever a mais respeitável? Certamente deveria expor à minudência as regras da concordância gramatical mais comezinha aos parceiros, pedindo escusarem-no de tão grave percalço. Mas assaltou-lhe outra dúvida: que pinhão era aquele a que se referia o instrutor? No último junho, lembrava-se bem, discursara a respeito das tradições populares, tendo-se detido especificamente nos hábitos alimentares, quando mencionou, de passagem, a paçoca de amendoim, o milho verde na brasa, a batata-doce assada e o pinhão cozido, dentre outras guloseimas. Mas não atinava por que seria o seu pinhão sempre o mais respeitável.

Aquela semana acabrunhou-o. Não conseguiu decifrar o mistério e viu-se na contingência de propor aos amigos a sua dúvida. Certamente, deveria submeter-se aos demais, mas desconfiava que ninguém pudesse vir-lhe em socorro. A situação tenderia a complicar-se, pois deveria chegar ao ponto de censurar o guia e protetor, o bom e respeitável, ele sim, Luciano.

Aberta a sessão de estudos, Jeremias efetuou a leitura acurada de todos os textos, censurando os erros ortográficos, expendendo largas opiniões a respeito dos temas morais e abonando os casos com outros exemplos elucidativos. Tão maravilhosas foram as explanações que não sofreu nenhum aparte. Tanto pior para ele, porque o tempo não passou e necessitou expor a última mensagem ao crivo da observação dos companheiros.

Iniciou solicitando a todos que conferissem a letra e a assinatura, pois poderia ter ocorrido que a mensagem tivesse sido apanhada por outro médium. Todos reconheceram ali a mão do amigo. Inconformado com a situação mas pleno do desejo de ver tudo sempre muito claro, passou aos comentários lingüísticos. Teceu longas considerações a respeito da gramática e da aplicabilidade de suas normas para a finalidade da comunicação que almeja entre os seres humanos. Censurou largamente o erro que praticara e jurou que jamais procederia contrariamente ao bom senso dos filólogos e dos dicionaristas. Na longa perlenga, demonstrou que os que procediam em erro bem poderiam estar comprovando falhas profundas de caráter, de modo que prometeu regenerar-se, a partir de sentido exame de consciência, que iria iniciar a contar daquela data.

Passaria, em seguida, à censura mais séria: a incompreensível consideração pelo seu pinhão, por ter sido apaniguado como o mais respeitável. Por mais que intentasse desviar a atenção ao protetor, por fim teve de reconhecer que a falha conceitual ali existente não se devera a qualquer participação do escrevente, uma vez que mecanicamente escrevera algo de que se não lembrava, sendo que jamais admitiria deixar passar pela pena palavras que representariam puro vitupério à vista do elogio pessoal. Se consciente estivesse, jamais permitiria que o considerassem publicamente superior em algo.

Durante mais de hora discorreu a respeito da modéstia, da humildade e da necessidade de serem preservados os médiuns pelos orientadores e instrutores espirituais. Em suma, deu severo puxão de orelhas no amigo, exortando-o a que se restringisse às ordens emanadas dos círculos superiores, as quais, evidentemente, estava a burlar.

Os amigos tremeram na base diante de tão forte arrogância, mas tiveram de concordar mentalmente com a solene postura moral assumida pelo confrade, principalmente porque sua voz modulava acentos frásicos pungentes e ardorosos, ao tempo que os gestos percorriam o espaço descrevendo incríveis figuras que imitavam a súplica do infeliz, o acerto do justo, a rogativa do crente, a ponderação do sábio.

Jeremias extrapolou a si mesmo e, no auge da manifestação, acabou increpando o amigo da espiritualidade por ter-lhe permitido errar no conceito e na concordância nominal. Lavou a alma.

Em casa, aquela noite passou insone, tremelicando da indignação que demonstrara e do medo de ter excedido, de forma que pudesse vir a perder a nunca negada ajuda do protetor. Aliás, esse medo é que o fez manter-se acordado, para não dar azo a nenhum contacto sonambúlico com aquele que suspeitava ter, ao menos, magoado.

Mas os dias passaram e chegou a hora de novo encontro espiritual.

Pontualidade britânica, ao início dos trabalhos, lá estava Jeremias, devidamente instalado em seu lugar à mesa da confraternização.

Feitas as leituras e ditas as preces, eis que se dão as primeiras manifestações. Jeremias permaneceu calado o tempo todo e não ousou sequer tomar do lápis para qualquer anotação. Fechou-se em copas e não permitiu nenhuma manifestação espiritual. Estranhou, contudo, que todo seu esforço em impedir a aproximação de quem quer que fosse não repercutisse no plano espiritual, pois não sentiu estremecimento algum, como costumeiramente, sempre que se aproximava alguma entidade interessada em manifestar-se.

À última hora, deu-se oportunidade às entidades doutrinadoras e assumiu a palavra, na voz de determinado companheiro, espírito que disse ser Luciano, protetor e amigo de Jeremias. Fez as recomendações de praxe a respeito dos trabalhos da noite, indicando várias soluções para os problemas levantados e pediu licença para dirigir-se, especialmente, ao pupilo, tendo em vista a necessidade de esclarecimentos em conseqüência da ardorosa perlenga da outra noite.

Ousamos reproduzir a fala do amigo para deixar-lhe bem clara a ponderação. Disse ele:

— Caro Jeremias. Devo solicitar-lhe desculpas por ter-me aproveitado de seu estado de meia catalepsia, para passar-lhe séria lição. Evidentemente, não era desejo meu deixar-lhe expresso nenhum enaltecimento da personalidade. Sei que não devemos bajular o instrumento, favorecendo-lhe crescimento ao amor-próprio, o que o afastaria do reto caminho das conquistas evangélicas das virtudes. O que quisera estabelecer como princípio para reflexão é o fato de que suas atitudes têm provocado séria tensão no ambiente, não sendo poucos os companheiros que se vêem na desagradável condição de ter de aturar-lhe a arrogância e a pompa. É preciso que a pessoa seja simples e pura e que a simplicidade e a pureza transpareçam em todo os atos. Não leve a mal a pregação. O que objetivava com a frase do outro dia era fazê-lo meditar a respeito de si mesmo e não que lançasse a severa diatribe contra a minha pessoa. Tão leve foi a repreensão que julgara até de bom alvitre estimulá-lo através de brincadeira conseqüente, mas absolutamente inocente. Queira, pois, corrigir a frase que tão severamente criticou, lendo, simplesmente: Opinião do Jeremias era sempre a mais respeitável. Espero sinceramente que volte a ser. Fiquem todos sob o amparo do Senhor!

Nem é preciso dizer que Jeremias ouviu tudo com a viola devidamente guardada, não ousando sequer imaginar em ir cantar em outra freguesia.

Os companheiros, de início, livres da opressão intelectual do parceiro, terminaram por condoer-se da situação, de modo que foi terminantemente proibido no centro o consumo do pinhão em quaisquer oportunidades.

Quanto a Jeremias, aplicou o rigor da formação intelectual na investigação das verdades contidas nas palavras e na atitude do amigo da espiritualidade e fez voto de silêncio, que manteve durante vários anos, até que...

Bem, isto já é outra história, que fica para outra vez...




Comentário


Queremos agradecer ao escrevente a boa vontade de sempre e dizer-lhe que este conto pode considerar-se como culminante, no que se refere às apreciações de caráter moral íntimo.

No que respeita às referências às pessoas, tomamos sempre o cuidado de evitar a possibilidade de reconhecimento das que serviram de modelo às personagens, embora tenham tido todas existência na carne bem próxima das em que foram mergulhadas nos contos. Fizemos este parêntese para elucidar possíveis dúvidas relativamente ao emprego da fantasia. Evidentemente, a narrativa de hoje mereceu de nossa parte certa atenção para o absurdo do raciocínio, pois ninguém que tenha projeção no meio espírita se deixa inflamar ao ponto da irreflexão, como o fez a figura do texto. Para o enredo, era preciso esse inchaço, que seria inconsistente se se pretendesse narrar caso verídico. De qualquer forma, compreenda-se o entrecho na justa medida da lição que Luciano passou a Jeremias.
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