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Contos-->20. O BODE EXPIATÓRIO -- 24/04/2002 - 05:25 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Enovelado por pensamentos muito feios a respeito dos colegas de grupo, Horácio torcia-se e retorcia-se mentalmente para escapar às influenciações de que se considerava estar sendo vítima, muito embora admitisse que, se o coração não fosse tão imperfeito, não seria acuado de tal maneira. E sofria a desdita de não conseguir afastar as más intuições.

Espírita ferrenho, compareceu ao centro pela primeira vez para ver se conseguia paz de espírito, cansado que estava de orar inutilmente pelo soerguimento moral da família. Surpreendera a esposa em flagrante delito de adultério e se calara, envergonhado, acoimando-se intimamente de corno manso, expressão aviltante que temia ver ressaltada por outros lábios. Não desfez a família, não afastou o amante da esposa, mas encobriu o quanto pôde a vergonha. Não queria macular-se diante da sociedade.

No primeiro encontro com as entidades do centro, temeu que o problema íntimo fosse revelado por algum espírito menos condescendente com as tragédias humanas. Mas serenou-se e cresceu em conhecimentos em virtude de expressiva fala do doutrinador espiritual, que, veladamente, fez referência ao drama implícito na situação do infeliz, sem, contudo, conturbar a assembléia nem ofender o suspeitoso.

Tranqüilo por saber-se compreendido, passou a freqüentar as sessões de estudos, começando a entender os meios de que dispõem os amigos da espiritualidade para sofrear os ímpetos sarcásticos dos que se arvoram em fornecedores do inferno, ou seja, daqueles sofredores que instam por desequilibrar as pessoas que se sentem fracas e tendentes ao desespero e à autopunição. Nesse ponto das reflexões é que o surpreendemos ao início da narrativa.

Um belo dia, ao retornar a casa, encontrou lacônico bilhete da mulher, que o deixava definitivamente, levando os filhos, que dizia não serem dele. Última ofensa, derradeiro balde de água fria no ânimo do apaixonado e infeliz consorte.

Quinze anos depois, iremos encontrá-lo conformado e cônscio de que fora levado ao espiritismo para não sucumbir à tentação do suicídio. Naquele momento, porém, a única idéia que lhe passava pela cabeça era o drama particular de abandonado e obsidiado. Da esposa infiel, livrara-se sem crime; da obsessão, procuraria fazê-lo igualmente. No íntimo, sentia vontade de penetrar na primeira igreja, aproximar-se do primeiro confessionário e contar ao padre os infortúnios. No fundo da consciência, porém, sabia que as conseqüências de tal ato não repercutiriam no mundo espiritual inferior a não ser como uma vitória. No auge da desesperação, tomou o Evangelho e leu, ao acaso, o trecho da mulher adúltera que Jesus salvou da lapidação. Sentiu-se, então, aliviado e protegido e se dispôs a ouvir os mentores do centro relativamente aos espíritos que o faziam imaginar impuros e desonestos todos os que se assentavam à mesa das comunicações.

Naquela noite, não dormiu, mas poucas foram as lágrimas que enxugou. Faltava-lhe o ar toda vez que se lembrava das crianças. Chegou a pensar que a mulher mentira a respeito dos filhos, para que se sentisse impedido de procurá-los. Rejeitou a idéia, entretanto, ao relembrar os feitos de sua vida.

De manhã, colocou o macacão e saiu para o trabalho, olhos injetados e face descorada. Macambúzio e calado por natureza, não chamou mais a atenção dos colegas que nos outros dias e seu drama se escondeu por mais algumas horas, até que a vizinhança descobriu a casa deserta. A maledicência correu solta, mas Horácio estava vacinado pelo sofrimento íntimo, de modo que deu tempo ao tempo e, isolando-se como sempre fizera, superou as dificuldades.

No centro, contudo, enfrentaria longos anos de lutas, de incompreensões e de desilusões, pois a sua sina estava, ao que lhe parecia, sendo ditada por inimigos desconhecidos de outros encarnes.

Se a preocupação era grande, não demonstrava; antes, aplicava-se ao socorrismo com imensa dedicação. A sobriedade que lhe era característica atraiu diversas senhoras solteiras, viúvas ou descasadas, mas manteve-se só, com medo de nova derrocada sentimental.

Enquanto se dedicava ao trabalho, estudava com afinco. As letras, de início embaralhadas, iam fundindo-se aos poucos, compondo os textos, de forma que a inteligência ia despertando-se para a compreensão da teoria, tanto pode a dedicação e o esforço produzidos por sólida vontade de crescer e de aperfeiçoar-se. De qualquer modo, era seguro meio de não descair para as viciações tão promissoras de rápidos esquecimentos. Ao contrário, quanto mais se dedicava ao estudo, mais aplicava os novos conhecimentos à compreensão dos problemas e atribulações.



Decorridos aqueles quinze anos a que acima nos referimos, ei-lo bem consciente das leis de causa e efeito, da reencarnação, da expiação necessária e da vida futura. Sabia discernir com propriedade a responsabilidade de cada qual à vista das provações e podia, com desassombro, dirigir a sessão de desobsessão, onde ministrava sábios e prudentes conselhos aos amigos que compareciam para a doutrinação.

Quanto à desconfiança de que os males lhe jaziam no fundo da consciência mais do que por influenciação de inimigos invisíveis, pôde comprovar a verdade, no decorrer de várias sessões em que reconheceu os obsessores e nas quais obteve perdão para as faltas de antanho, mediante a promessa de justo ressarcimento das dívidas em provação a ser estabelecida futuramente. Mesmo com o afastamento dos diretos perseguidores, durante largo tempo, o pensamento lhe vagou solto na direção dos companheiros, sempre no sentido de ver neles imperfeições, defeitos e vícios que absolutamente não possuíam.

Resolveu entrar em contacto direto com os guias e protetores para pedir o sagrado direito à orientação eficaz para superação das dificuldades, já que se considerava merecedor de certa atenção devido aos trabalhos jamais negados. Não obtendo qualquer resposta direta e positiva, não desanimou e quadruplicou as atividades que exercia, principalmente porque lhe chegara o momento da aposentadoria e temia que o ócio poderia ser-lhe fatal no incremento dos defeitos, os quais, por conhecimento, sabia concentrarem-se em profundo egoísmo e em inatacável amor-próprio. Desconfiava, ainda, que sua imersão nos trabalhos socorristas eram a contraprova necessária de que fugia do enfrentamento da verdadeira feição moral.

Chegado a esse ponto das considerações, não obtendo auxílio dos amigos da espiritualidade, procedeu ao desenvolvimento de qualidade que mantivera em estado de suspensão germinativa até aquela data, tendo em vista a dedicação ao mundo da exploração cármica das tendências, ou seja, deu início ao aperfeiçoamento dos sentimentos expressos através de pungentes orações.

De pronto, sentiu notável melhora em relação aos companheiros, desafogando em muito a pressão que sentia por ocasião de suas presenças físicas. Entretanto, o peito ainda se lhe confrangia ao relembrar os velhos tempos de inquietação, crente de que o mal estava instalado na consciência, profundamente arraigado por presilhas soldadas através das vidas que julgara ter desperdiçado. Mas não desanimou de pesquisar fundo no coração para avaliar, com extremo cuidado, o valor de cada palavra e a correspondência que poderia ter com os diversos sentimentos e estremecimentos da sensibilidade.

Já não mais era o rústico operário abandonado pela esposa. Era o homem equilibrado e sábio que buscava compenetrar-se da verdade da existência e de seu papel, em função do equilíbrio da sociedade em que vivia.

Ao cabo de mais alguns anos, era capaz de dizer as preces mais emotivas, nas palavras mais adequadas, com o sentimento mais compungido, pleno de verdadeira fé na misericórdia divina. Havia realizado a perfeição moral e intelectual que lhe era possível.

Procurou saber da ex-esposa e dos falsos filhos. A bem da verdade, durante todos esses largos anos, não despendera muito esforço para encontrá-los, mas era chegado o momento da reconciliação, para que pudesse abandonar a liça de coração realmente puro.

Encontrou-os bem instalados na vida e, sem ter entrado em contacto com eles, perdoou-os de longe, sentindo-se satisfeito com as reações controladas e justas das emoções.

Partiu em cinzenta tarde de outono, encontrando enternecedora paz junto aos amigos que fizera em sua peregrinação. Hoje, busca estender protetor manto para a família desertora, assediada por alguns elementos perniciosos que desde há muito exerciam deletéria influenciação sobre a esposa e seu atual marido. Nos filhos, pôde reconhecer antigos laços familiares estreitos, de sorte que sua dedicação, longe de ter o cunho da necessidade cármica, apresenta as facetas do amor e da amizade. Quanto aos compromissos estabelecidos com os antigos desafetos, estão todos sublimados, constituindo eles unido grupo de trabalho no campo do socorrismo.

Horácio soube sobreviver à dor e à tentação, mercê de seu trabalho, de seu esforço em prol dos irmãos. Se um dia pôde acusar-se de egoísta e de orgulhoso, soube operar com discernimento e boa vontade, suplantando de muito as más tendências. Oxalá pudéssemos nós todos conseguir tão elevada vitória de amor!
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