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Contos-->Eu, José e Jorge -- 17/04/2002 - 20:20 (Federico Espanha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A televisão prostrada no centro da imensa sala, sintonizada na rede Globo, é olho, espelho, bola de cristal, informa e diverte, faz chorar. A vinheta toca, o apresentador, voz e terno elegantes, cabelo dividido à esquerda, anuncia: “morreu, na Bahia, o escritor brasileiro Jorge Amado”. A repórter da sucursal soteropolitana, plantada à porta do hospital, passa a mão no telefone celular e liga para o editor de cultura do jornal.

– Ta sabendo? O Homem morreu. Vamos ter bastante trabalho essa noite.
– Sim, estou sabendo – responde a voz masculina do outro lado da linha. O cara poderia ao menos ter escolhido morrer às três da tarde, não é não? Morrer às sete e meia é sacanagem.

Durante alguns minutos paro para refletir sobre o que está ocorrendo. Não me deixo envolver pela falta de humanidade generalizada, pungente e estúpida de meus companheiros de profissão. Vou ao fumódromo, espaço reservado aos viciados em alcatrão e nicotina, e sorvo, inspirando e aspirando rapidamente a fumaça mortífera, um cigarro. Volto para a mesa, abro uma das gavetas da escrivaninha, retiro minha agenda, e fico a procurar pelo telefone de personalidades, celebridades, cantores e escritores que conheciam Jorge Amado. Viro, durante alguns minutos, aleatoriamente, as páginas da caderneta. Paro somente na letra s, de Saramago.
A morte de Jorge Amado nos uniu, de alguma maneira, ainda que secretamente, ainda que ele não se lembre de um dia ter ouvido a minha voz, trôpega, suplicar-lhe por um comentário sobre o fim da existência. A morte de um escritor uniu um aspirante à poeta e um nome consagrado das letras portuguesas, brasileiras. Tive vontade de dizer-lhe que abandonaria minha vida em nome da possibilidade de vencer a morte. Não disse. Tive vontade de contar-lhe que por mais que o tempo insista em desfolhear livros, a sua obra permanecerá intacta, e necessária para a compreensão da história da humanidade. Sempre haverá um menino, uma menina, um adolescente centrado – não importa a era geológica, o dia, o ano, a localização dos astros – disposto a abrir um livro do escritor português, calhamaço de papel e palavra, em busca de conhecimento, prazer, literatura.
Passo a mão no telefone, disco o número da telefonista, pessoa autorizada a liberar ligações internacionais aos jornalistas, e peço uma conexão com Portugal, código tal, número tal. Prontamente sou atendido. Percebo que não tenho certeza se o número que consta em minha agenda é o correto. Havia-o conseguido com um colega, cerca de dois anos antes. Ligo, esperando não obter resposta, não ouvir palavra, dormir em paz.
Nosso encontro foi sincero. As palavras, no entanto, prenderam-se em minha laringe, e no céu da boca transformaram-se em tremor. Conversamos, quiçá, no máximo, por cinco minutos. Perguntei-lhe, ganindo, o que achava da morte de Jorge Amado. Quis lhe dizer que também sou comunista. Temos a mesma idade, de alguma maneira. Quis lhe contar que crescemos juntos num plano intermediário da existência no qual o sonho se impõe à realidade. Fizemos, inclusive, história juntos, nas madrugadas intermináveis em que contei com sua companhia, esperando pelo entristecer da noite, o momento no qual surge o sol, raia o dia. Saramago apenas falou de Jorge Amado. Não falou de mim, de nosso passado em conjunto, esqueceu-se de que nos conhecemos há tempos, e temos muito em comum. Tentei lhe dizer que a chaga aberta por Portugal no coração do Brasil, da qual escorrem gotas de lágrima adocicada, nunca irá deixar de verter pus e sangue.

Sobre a morte de Jorge Amado – José Saramago, escritor português, vencedor do prêmio Nobel de literatura. Ninguém tem dúvida do significado desta perda para vocês brasileiros, que se estende para nós portugueses e para todos os países da comunidade que fala o português. Uma perda que será sentida em toda parte, pois como é do conhecimento geral, a obra de Jorge Amado foi publicada em inúmeros países do mundo, e se já não o temos entre nós, vamos continuar a tê-la. É natural que o Brasil chore sua perda. Não me surpreenderia se o governo brasileiro determinasse luto nacional, um luto que eu penso que deveria ser estendido a todos os países de língua portuguesa. A morte de Jorge Amado é a morte de um grande escritor e de um grande homem. Uma pessoa de uma grande generosidade, com um cuidado para o trabalho, que assim conheci.”

Ao desligar o telefone, minha voz ainda se faz trêmula. Levanto-me, comunico ao Editor que consegui falar com o Homem, e que vou fumar um cigarro. Entre o primeiro e o segundo Marlboro, quinze minutos se passaram, quinze minutos que se bastam. O Editor me congratula, dá um tapinha nas costas. Uma sinfonia dura de parabéns e rangeres de dentes pode ser ouvida nos cinco minutos seguintes, na bancada em que se sentam os jornalistas culturais. O meu momento dura apenas dois minutos. Basta a Jornalista da Bahia, que acompanha a movimentação da família, ligar anunciando uma exclusiva com a Mulher do Homem. Os holofotes e rangeres de dentes transferem-se, rapidamente, para ela.
Mas porque não voltamos a nos falar, se a morte de Jorge Amado nos uniu para sempre? Se no momento em que nossas vozes se cruzaram, auxiliadas pelos cabos ultramarinos espalhados ao redor da Terra, algo em nossas vidas mudou? Se nos tornamos mais próximos e de alguma maneira cúmplices, posto fui responsável por redigir, para um jornal brasileiro, uma frase por ele proferida? O que pensar dessa responsabilidade? O que dizer depois de tudo já ter sido dito? Tive apenas vontade de abraçá-lo, de dizer algo sensato, útil, revolucionário. Fui incapaz de dar continuidade à nossa conversa, que acabou de forma abrupta, após a voz ter-se aprisionado nas cavernas obscuras de meu pulmão.
Demoro dois dias para digerir o fato, deixar de ouvir a voz de Saramago falando em meu ouvido. No entanto, todos os dias, religiosamente às nove da manhã, durante dois longos meses, ligo para a casa do escritor português. Passo exatamente 58 dias telefonando, apenas para ouvi-lo dizer “alô”, ou algo que o valha. Dessas 58 vezes, o próprio atende ao telefone apenas quatro vezes. Ao qüinquagésimo nono dia, telefono, e percebo que aquela voz que se dirige a mim não era a dele, não era a de Pilar, sua esposa. Venço o silêncio:

– Por favor, eu gostaria de falar com José Saramago.
– Este telefone não é mais dele, quem gostaria de falar?
– Um amigo. Quem está falando?
– Jorge Amado.

Janeiro de 2002
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