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Contos-->Coração Rubro-Negro -- 11/04/2002 - 21:58 (Rutinaldo Miranda Batista Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Coração Rubro-Negro



Ontem,o Flamengo perdeu.Todo mundo da rua sabe,mesmo quem não tem televisão.
Basta dar uma olhada na carranca do José.Nesses dias,o José não fala com ninguém,
não dá bom-dia,nem mesmo um oi.Passa como uma locomotiva sem olhar para os
lados.No dia em que o Flamengo ganha,há outra transformação.Para melhor.O José
abre um sorriso que vai de uma orelha a outra.Abraça todo mundo:o carteiro,o gari,
toda vizinhança,...Nas crianças,passa a mão na cabeça,pisca o olho.Até com um
transeunte desavisado,passando na Rua dos Tamarineiros por acaso,o José toma ou-
sadia.Estende o braço e um sorriso.O sujeito,sem entender nada,mas por educação,
retribui a cortesia.Aperta a mão do José,que já se sente à vontade para contar as fa-
çanhas do seu time.
_ Jogão,hem?Três a um pro Fla.E,olha que poderia ser mais.Se não fosse aquele ju-
iz ladrão!Tava na cara que é vascaíno.O Julinho também não jogou bem.Virou um
perna-de-pau depois que machucou o joelho.Tá bichado,ninguém me engana.Se eu
fosse o treinador,aquele burro,tirava o Julinho e faria as coisas do meu jeito.Pra co-
meçar...
É preciso inventar uma desculpa urgente,fugir daquela xaropada,ou José aluga o in- feliz o dia inteiro.Bem que ele pode,não trabalha.Está aposentado e tem só trinta e
dois anos.Nenhum acidente de trabalho,uma garrafa voadora interrompeu sua nada
promissora carreira de assistente de borracheiro.A autora da agressão,sua ex-mulher
Rosinha,tinha perdido a cabeça.O motivo foi uma promessa secreta endereçada a
Santo Expedito.Apenas O Santo das Causa Impossíveis conseguiria fazer o Flamen-
go vencer o Vasco por uma diferença de quatro gols,saldo necessário para livrá-lo
do rebaixamento.O Fla venceu por seis a um e o José ficou tão empolgado que,além
da casa,pintou a fifi,cadelinha de estimação da Rosinha,de vermelho e preto.A coi-
tada nem suspeitava das intenções do marido.Passou toda a semana na casa da mãe,
cuidando do reumatismo da velha.Já ao pisar na rua,notou o ambiente estranho.Os
cochichos e risadinhas dos vizinhos iam angustiando seu coração.Ensandeceu de
vez quando viu a casa listrada e a fifi de cabeça preta e corpo pintado de vermelho.
Entrou em casa sem dizer uma palavra,tomada de uma raiva silenciosa,daquelas de
cobra antes de dar o bote.A vizinhança aguardava ansiosa o José chegar pro almo-
ço.Seria um bafafá daqueles.A velha Gertrudes,fofoqueira de plantão que morava
em frente,colocou uma cadeira na varanda para assistir melhor ao espetáculo.Rosi-
nhá não perdeu tempo,arrumou os trapos,fez as malas.Mas,não partiria pro Pernam-
buco sem antes cobrir o José de porrada.Aquilo foi a gota d’água.A maluquice-mor
de todas que já tinha aprontado.Estava tão envergonhada que nem conseguia colo-
car a cabeça na janela.Procurou um cassetete.Encontrou um cabo velho de vassoura.
Não servia,era leve,fino demais.O José merecia coisa melhor.Se tivesse sobrado um
daqueles porretes da fogueira de São João!Nada.Olhou,enfeitando a parede,uma
uma peixeira reluzente.Presente do pai que ganhara do amigo Lampião.Teve,por um
um instante,medo que sua raiva a levasse a cometer um gesto homicida.Queria lar-
gar o estrupício do marido,não ficar viúva.Nesse momento,o portão rangeu vagaro-
samente.Era o José.Ainda não tinha encontrado nada para “recepcioná-lo”.Na falta
de algo mais apropriado,pegou uma garrafa de conhaque quase vazia sobre a gela-
deira.O José nem precisou abrir a porta,estava encostada.Também não precisou di-
zer meu benzinho.Não deu tempo.O mundo escureceu e ele caiu no chão vendo es-
trelas.Rosinha tinha feito um lançamento perfeito,direto na testa.Agora já podia par-
tir.Chamou a fifi.E,até a fifi se vingou do José.Antes de pular no colo da dona,apro-
veitou o coitado estendido no chão e fez pipi no seu rosto.Partiu latindo,feliz da vi-
da.
Quando acordou no hospital,mal conseguia levantar a cabeça.Tinha um galo enor-
me,do tamanho de uma laranja,no meio da testa.Estava deitado numa maca.Ao seu
lado,o marido de Gertrudes mascava chiclete sorridente.
-Escapou dessa,hem,companheiro!
O José não tinha muita intimidade com ele.Achava estranho um sujeito não gostar
de futebol.Ficar lendo livros,recitando poesias.Impossível conversarem muito tem-
pó.Entretanto,nenhum tinha o outro como desafeto.Cumprimentavam-se,trocavam
acenos de mão(quando o Flamengo ganhava,é claro).Apareceu uma enfermeira,per-
guntou se conseguia ficar em pé.José sentou com dificuldade,tudo girava ao seu re-
dor.Colocou os pés no chão,até lentamente passar a vertigem.Então,recebeu um ca-
misolão.Tinha que tomar um banho,tirar aquela inhaca de xixi de cachorro,antes de
ser atendido pelo médico.
O galo estava roxo pelo sangue retido.Milagrosamente sem corte no lugar da pan-
cada.O médico examinava com atenção.Pedia que girasse a cabeça,dissesse onde
doía.Estranho,doía mais na nuca.Uma dor fina,insistente.Depois,tirou uma caneta
do bolso,pediu que acompanhasse o movimento com os olhos.Foi moleza,mas uma
coisa intrigou o José.A caneta era metade preta,metade vermelha.E,na sua mente
crescia a suspeita de que estava diante de um flamenguista convicto como ele.Pre-
cisava ter certeza,puxar um dedo de prosa.O médico apalpava a nuca.
-Acho que é nada grave.Talvez,uma luxação.
-Posso ir pra casa?
-Pode e,quando chegar lá,coloque uma compressa de água quente nesse pescoço.
Estava liberado.Era o momento oportuno.O médico já estava preparando as fichas
para outro paciente.
-Jogão aquele do flamengo,não foi,doutor?
O médico,antes de falar,esboçou um leve sorriso.
-Pois é,mas poderia ser melhor.O Julinho não jogou nada,o técnico é um burro.Se
fosse eu,faria algumas modificações.Pra começar...
José estava impressionado como as opiniões do médico eram iguais às suas.Concor-
davam em tudo.As melhores escalações,a mudança sumária do treinador e,nas con-
tratações,quem devia entrar ou sair.A conversa começou a deslanchar,veio a memó-
ria dos bons tempos.Suspiros ao lembrarem da época de ouro do Zico,do futebol-
arte que lotava os estádios.À medida que crescia a simpatia entre os dois,aumenta-
va a preocupação do médico com o estado do paciente.Podia ser mais que uma lu-
xação.Uma complicação mais séria na vértebra do pescoço.Devia examinar melhor
e,enquanto examinava,discutia fervorosamente futebol com seu novo amigo.A em-
fermeira bateu na porta.Incomum uma consulta,principalmente em hospital públi-
co,demorar tanto.Os outros pacientes estavam reclamando.O médico os indicou
para seus demais colegas de plantão.Dispensou a enfermeira .O argumento foi de
que a lesão daquele paciente se tratava de um caso excepcional.Como daquela vira-
da histórica sobre o Fluminense por cinco a três.Esse,ele desconhecia.O papo esta-
va tão bom,que o José nem se lembrava mais que estava machucado.O médico,pó-
rém,ao saber como sobrevivia,carregando pilhas de pneus todos os dias,dava mais
importância ao seu problema.Não podia deixá-lo voltar ao batente.Era um traba-
lho duro,podia agravar seu estado.Se o aparelho de raio-X estivesse funcionando
(o Estado,nas últimas eleições,prometeu enviar o dinheiro pro conserto fazia dois
anos)teria um diagnóstico preciso.Achava uma injustiça tanta gente completamen-
te desassistida,enquanto algumas passavam a vida nadando em mar de rosas.Tinha
como exemplo o sogro.Desconhecia como bater um prego numa barra de sabão.De-
putado federal,seu ofício consistia em ficar estirado numa poltrona.Elegia-se na pe-
riferia distribuindo chinelos e dentaduras.Achava que podia comprar tudo.Podia
mesmo.Sua conversa íntima,com o reitor de uma conceituada universidade particu-
lar,escancarou para o genro as portas da Medicina.Uma forma de dar à filha,repen-
tinamente grávida,um marido com profissão respeitável.Mesmo contra sua vontade,
o futuro doutor abandonou o Curso de Belas Artes.Sonho cultivado desde menino.
Tudo para agradar o sogro.Arrogância de pessoa,empanturrando os bolsos com ver-
bas de pontes,estradas,...que nunca foram construídas.Mundo injusto!Ao questionar
a realidade,que comodamente fingia desconhecer,sentia nascer dentro de si uma re-
volta crescente.Podia,pelo menos uma vez,opor-se a tudo isso.E,a maneira que en-
controu foi aposentar o José.Seria uma rasteira nos políticos parasitas.Dinheiro que
não desapareceria na construção de açudes imaginários.Iria parar nas mãos de quem
nunca soube o que era boa vida.Melhor ainda,um camarada flamenguista.Seria ba-
tata.O complicado mesmo era encontrar pro José “a doença ideal”.Uma trombose ou
cirrose.Quem sabe,uma artrose viria a calhar.Nada,porém,igualava-se ao coração.
Enfim,pensou na enfermidade.Uma desvio na parafuseta direita da rebimboca do
ventrículo supra-axial.Pronto,três meses depois o José estava aposentado.Tinha uma
boa aparência,estava corado.Ninguém dizia que seu coração doente.O que todos
concordavam era que não era apenas vermelho.Era rubro-negro.Rubro-negro roxo.
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