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Contos-->7. O ACUSADOR DE DEUS -- 11/04/2002 - 07:43 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ovídio era o nome do indivíduo que desejava interrogar a Divindade. Achava-se no direito, à vista de sua sempre crescente miserabilidade material, de argüir Deus a respeito dos objetivos que tinha para com ele e toda a família. Era de espantar a suprema audácia do perquiridor, que, não obtendo respostas para as interrogações íntimas, principiou a fazer escândalo com invectivas furiosas. Acabou louco, internado em hospício.

Antes disso, é preciso retratar-lhe a vida pregressa, em encarne de totais alegrias. Como mulher, nasceu de pai pastor protestante e de mãe lúcida no trato com as coisas divinas. Teve de tudo que alguém possa jamais ter almejado: família equilibrada, inteligência e responsabilidade de acordo com as regalias obtidas, preciosos bens materiais, como beleza, dinheiro, categoria social. Seu casamento foi o ideal, pois namorou, casou e viveu apaixonada por solícito e íntegro marido. Criou os filhos saudáveis e felizes e tudo fez por eles, de modo que, ao abandonar a vestimenta física, em idade provecta, sem jamais se ter contorcido nos braços da dor, incólume relativamente às moléstias, se poderá dizer que sua peregrinação pela carne transcorreu em meio a total felicidade.

Mas ignorou o próximo, muitas vezes na figura de criaturas que vinham bater-lhe à porta. As amigas menos afortunadas recebiam desprezo, sempre que se aprestavam para narrar seus infortúnios. Jamais sorriu para quem lhe rogasse simples sorriso. Ria, sim, intimamente, por sua condição de completa alienação dos problemas. De volta ao plano espiritual, foi-lhe exposta à minúcia sua passagem pela Terra, onde deveria ter feito mais pelos outros. Considerou desarrazoadas as apreciações, mas, obediente às diretrizes dos superiores, aceitou o retorno dificultoso.

As causas, portanto, da rebelião contra Deus, longe de se situarem na indiferença deste para com sua criatura, advinham da lembrança inata da anterior passagem pelo orbe.

Oportunidades de esclarecimento teve o nosso Ovídio e muitas, pois conseguiu de pequeno alfabetizar-se, sendo capaz de efetuar diversas leituras. Freqüentou a escola dominical da paróquia, onde noviças da Ordem Terceira de Maria vinham administrar as noções do catecismo. Integrou a Mocidade Mariana até que, descontente com a vida, pôs-se a lamentar as injustiças sociais, como sói ocorrer com os jovens às vésperas de adentrar a idade adulta. Mas a sua rebeldia foi bem mais acentuada, crente de que mereceria melhor sorte na vida, sem, contudo, conhecer a origem da ansiedade. Por mais que pelejasse por se manter fiel à religião católica, acabou abandonando a igreja para cair no mundo.

Ao saber dos mistérios e das revelações espiritistas, ingressou em séria organização de estudos, agora casado e pai de diversos filhos, que muito trabalho lhe davam na vida escolar. Por mais que forçasse sua ida à escola, não logravam êxito algum. Ao contrário, punham em polvorosa professoras, funcionários, orientadores e até os próprios diretores. Procedeu, sem sucesso, a várias transferências, até que teve de se curvar à evidência da falta de talento de todos eles. Aos poucos, foram acatando a ordem paterna e retirando-se do convívio do lar à procura de levar vida própria. Dos seis, ficou-lhe na companhia mirrada figura de criança, menina raquítica e asmática, que não servia sequer para ajudar a mãe a cuidar dos poucos utensílios que o magro salário lhe permitiu adquirir. De resto, os cuidados médicos levavam os recursos que poderiam significar comida mais farta e agasalho mais adequado. Não teve necessidade de pedir, embora aceitasse contristado todos os oferecimentos. Aliás, foi o que o manteve junto aos companheiros do centro espírita por mais de um ano.

Ali, com a ajuda dos amigos, compreendeu a necessidade da evolução mas não atinou com a justiça da dor e do sofrimento. Atribuiu ao Senhor a maldade das pessoas e viu na crucificação do Cristo a culminância de sua teoria de filho perdido e relegado ao esquecimento. Se Deus permitira que o excelso espírito de luz do Salvador terminasse estertorando dependurado no madeiro ignóbil, que não faria com ele, mísero e insignificante espírito das trevas?!

Abandonou o espiritismo como deixara o catolicismo, prometendo jamais entrar em qualquer outra instituição religiosa. Inutilmente, a esposa tentou arrastá-lo para a seita de seu coração, o protestantismo evangélico, principalmente pelo temor de ter de pagar o dízimo de sua parca remuneração. Desconfiava das palavras da mulher que lhe prometiam, em nome de Deus, assistência integral, caso testemunhasse sua fé no Jesus da redenção.

Ficou solto no mundo no dia do falecimento da esposa. Procurou alguém do centro espírita, anunciou que iria correr mundo e que fossem à sua casa para resgatar a pequena vítima do destino. Entregou a outrem a responsabilidade de pai e, desarvorado, pediu as contas ao patrão e foi-se à cata de aventuras.

Homem vistoso quanto à aparência, forte no que respeitava à constituição física, não lhe foi difícil arranjar guarida em construções de prédios, onde se empregava na qualidade de vigilante noturno. O fato de poder portar arma dava-lhe segurança, acabando por integrar-se a firma de caráter nacional, que lhe proporcionou a oportunidade de viajar da forma que pretendia. Foi a melhor fase da vida: a comida era farta, a segurança da hospedagem estava garantida e os sentimentos puderam distrair-se com o conhecimento de plagas novas. Mas o descrédito pela divina justiça se ampliou com seus horizontes, pois pôde perceber que, por toda parte, o homem era lobo do homem, havendo aqueles que serviam, em grande número, para uns poucos que senhoreavam.

Seu discurso foi tornando-se violento e, aos cinqüenta e oito anos de vida, ingressou nas fileiras de partido político então na clandestinidade, cujas manifestações eram fundamentadas na derrogação da ordem social vigente. Ali ficou certo tempo, prestando serviços humildes mas relevantes, até que acabou preso, por ter forçado a população ao saque de certo supermercado. Na prisão, verberou os policiais que se encontravam a serviço do regime político, mas conheceu mais uma profunda decepção. Em meio aos presos, estava um dos líderes do partido, o qual se fez liberar da cadeia por pertencer aos quadros da alta sociedade. Disse estar participando da agitação social por ideologia, mas safou-se ao castigo por influenciação socioeconômica.

Livre das grades, ao voltar para o emprego, estando fichado na polícia, foi-lhe comunicado que não mais poderia usar arma, sendo impedido, portanto, de manter o serviço. Devido à idade, bem pouca coisa poderia fazer, por isso, procurou os órgãos públicos, munido dos necessários documentos para pleitear aposentadoria. Passando necessidades, após longos meses de espera, conseguiu magra pensão do estado, que mal dava para a alimentação. Morar, deveria fazê-lo na casa de algum dos filhos, mas sua superior e orgulhosa postura moral impediu-o de reconhecer a necessidade da subserviência ao Senhor, acatando o destino. Foi residir de empréstimo em instituição pública para alienados mentais, para o que precisou forjar diversas situações de desequilíbrio.

Ali pretendia passar o restante dos dias, mas a argúcia médica foi sendo alertada para sua lucidez em realizar os atos comezinhos da vida, de modo que, aos poucos, os médicos foram desconfiando de que estavam sendo ludibriados. Certo dia de triste memória, ingressou no anfiteatro das visitas certa pessoa conhecida, que muito se espantou com a presença ali de alguém que, sabidamente, tinha a mente saudável e os argumentos sempre muito poderosos contra Deus. Por força da necessidade consciencial, revelou aos médicos o que já haviam intuído e o indigitado revolucionário foi posto do lado de fora, incontinênti.

Eis que vamos surpreendê-lo, dez anos depois, em asilo para velhinhos desamparados. O amigo que o denunciara às autoridades era antigo conhecido dos tempos do centro espírita, dentre cujas atividades pontificava a assistência aos necessitados idosos, o apelidado Lar dos Velhos. Não vendo alternativa para a condição de miserabilidade, pois perdera inclusive os magros proventos da aposentadoria, aceitou ficar entre os amparados, de modo que obrigado foi a conviver com a desgraça humana mais absoluta. Acostumado a verberar contra a justiça de Deus, precisou ir habituando-se com a assistência dos homens.

A princípio, intentou fazer ver aos demais a injustiça de suas situações diante das indiscutíveis regalias até mesmo dos que prestavam auxílio à instituição. Mas foi repelido pelos demais, que acreditavam estar recebendo ajuda diretamente da misericórdia divina, sendo para eles aquelas pessoas verdadeiros anjos enviados pelo Senhor. Não contente com essas respostas, insistiu em sua verberação até que terminou sendo afastado do grupo, tendo de curtir isolamento silencioso por mais de sete anos.

Quando o surpreendemos naquele dia ensolarado, no canto mais obscuro do pátio, encostado ao muro para não receber a dádiva do sol, condoemo-nos do pobre coitado. Fomos acordá-lo para a vida e recebemos inesquecível apelo de solidariedade.

— Digam ao Senhor que estou de volta, pronto para o serviço, pelo amor de Deus! Façam por mim o apelo que sufoquei no coração nestes últimos anos. Enquanto houve quem prestasse atenção às minhas palavras, investi contra o Pai, de todas as maneiras. Mas quando apenas eu era o ouvinte das reclamações, cansei-me de mim mesmo e compenetrei-me de quanto injusto fora para com o Senhor. Em minha perturbação, recebi a notícia da vida anterior. Calei-me, para não dar aos outros a impressão de estar realmente louco. Mas fui inteirando-me do valor do trabalho socorrista e vi, finalmente, anjos de amor naquelas criaturas que cuidavam de mim, que me traziam o alimento, o agasalho e o remédio, que me amparavam a caminhada e que liam para mim as divinas lições que meus cansados olhos já não me permitiam enxergar. Fugi de mim mesmo e me refugiei na esperança desta sublime hora do reencontro. Façam por mim o que eu mesmo fui incapaz de fazer: agradeçam ao Pai a sublimidade de sua justiça. Graças a Deus!



Hoje Ovídio participa dos trabalhos desta equipe de socorristas, tendo permitido o relato de sua epopéia. Trata-se, portanto, de história absolutamente real, com alguma intervenção da fantasia, para dar clima ao enredo. No entanto, se a narrativa puder convencer o amigo leitor de que é sempre possível vencer na vida, ficaremos imensamente felizes.

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