Maria Emília cobriu o rosto, tentando compreender o que pensava a amiga a respeito dos monstros apresentados às crianças como inofensivos brinquedos. E concluiu: “Não existe monstro bonzinho. Monstros se apresentam como justiceiros, fazem o bem a uma pessoa e o mal a outra em nome da justiça.” Descobriu o rosto e pediu a Ravenala que contasse uma estória que lhe fizesse dormir. — Conte carneirinhos. Conte assim: “Um carneirinho pulou a cerca; dois carneirinhos, três carneirinhos pularam a cerca...” — Jácute; contei 99 e ainda não consegui dormir. — É porque uma desgarrou-se! Não dormirácute;s, enquanto não encontrares a ovelha perdida. A boneca andou por prados e campinas, cidades, mares e vilarejos. Viu o paraíso perdido. E lamentou: “O mundo encantado estácute; em processo de desconstrução. Muitas bonecas foram jogadas no lixo, porque lhes faltavam braço ou pernas; outras agonizam arrastadas por ácute;guas turbulentas da liberdade descontrolada.”
Dormiu
Sonhou com uma fera que tinha dez chifres e sete cabeças, e nas suas cabeças, nomes blasfematórios.
Ouviu um estrondo como o ribombar de mil trovões, e o anjo das trevas cobriu a terra com sua sentença de morte: “Tudo estácute; perdido. Apagado. A Verdade e princípio de fé; tudo estácute; perdido. Deus estácute; morto.” Ouviu ainda o tropel de muitos cavalos, e o tinir de espadas da corte celeste em luta contra as forças do mal. —Nietzsche estácute; morto — disse o anjo que atende pelo nome de Miguel. Acordou. Emília estava fria. — Vovó, vovó!... — Que houve, minha filha? — Emília morreu! — Bonecas não morrem. As meninas crescem, e guardam suas bonecas no armácute;rio. — Emília morreu. Quero um velório com todas as honrarias que ela merece. A avó entendeu que era preciso penetrar no mundo das crianças, para compreender o recado que elas mandam aos adultos nas falas e diácute;logos estabelecidos com as bonecas. Era hora de guardar a boneca de Ravenala, como ela, Corina, guardara a sua quando ficara mocinha. — Podes fazer tua Emília voltar a viver outra vez. — Ela estácute; velhinha demais, vovó. Não pode nascer de novo. — Pode, minha filha! A ficção é uma realidade que ainda não aconteceu. No fantácute;stico mundo da imaginação tudo pode acontecer. Nele, o intangível torna-se palpácute;vel. São tantos mistérios... — Por que hácute; sempre um tesouro escondido atrácute;s da porta? — Para ser descoberto. Tesouro atrácute;s da porta ou obra inacabada? — Retrucou Emília com voz de quem estácute; dentro de uma caixa de sapatos. — Ora, Maria Emília! Toda obra humana é imperfeita e inacabada. Devemos levantar hipóteses, sem afirmar, ou afirmar e depois negar. Por exemplo: as ondas atlânticas que sepultaram Escobar podem ser as mesmas que engoliram Fernão. — Nunca me falaste de Fernão! — Ainda não é hora de conheceres Fernão. Ele foi levado em espírito ao dia de seu batismo, e no mergulho ao sobrenatural, viu seu corpo assim que plasmado no ventre da mãe, curvado como beato em genuflexão. Sentiu muita angústia porque não era desejado. O sentimento de rejeição provocou nele um bloqueio do desenvolvimento cognitivo. O menino cresceu, mas nunca quis ser adulto. Nunca quis. — Que é desenvolvimento cognitivo — quis saber a boneca. — É o processo de passar por estácute;gios como o que estácute;s nele agora: Eu falo, tu ouves; tu falas, eu escuto. Toco flauta e danças minha música, mas quando te tornares adulta, a música que toco jácute; não serácute; mais agradácute;vel aos teus ouvidos, porque os ouvidos perderam a sintonia com o Tocador de Flauta. E dirácute;s que a música que toco é lavagem cerebral. Depois, na velhice, recobrarácute;s a harmonia, e outra vez, ouvirácute;s a voz do vento.
