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Contos-->1. O CACHORRINHO VIRA-LATA -- 05/04/2002 - 06:22 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

I


Bidu é o seu nome. Hoje pertence ao mundo dos mortos, pobre cachorro pulguento, atropelado por doido veículo na via pública.

Em sua curta vida de sofrimento, nunca, realmente, chegou a conhecer o afeto de qualquer criança. Pobre pária de enorme cria, foi, desde logo, abandonado à própria sorte, pois não houve quem se condoesse do pobrezinho, desprovido de encantos, furta-cor e inexpressivo. Demorou para desmamar e foi essa a condição de sua sobrevivência.

Quando se viu perdido no meio da cidade, sem teto sob que se abrigar, passou a invadir as praças públicas, terminando por freqüentar as rodas que se formavam à volta de certo monturo de lixo, no quintal da grande cidade.

Fuça que fuça, ia conseguindo parca alimentação, mas segura e constante. A cidade estava abastecida e os tempos não eram difíceis.

Conheceu vários companheiros em suas andanças, mas jamais teve oportunidade de se engraçar por nenhuma moçoila cadela que lhe abanasse o rabo.

Viveu pouco, muitas vezes escorraçado de um lado outro pelas pedras dos petizes e engraçados malandrinhos das vizinhanças.

Um dia, ao atravessar a rua, morreu esmagado pelas ferozes rodas de possante máquina automobilística. Foi o único momento da curta existência em que logrou cometer de estremecida sensibilidade o pobre motorista desatento. Após o susto do impacto e o excessivo calor que lhe perpassou pelo cérebro e pela face, estrebuchou, enviando a alma para o etéreo.

Fim


Teria sido essa realmente a história de um simples vira-lata? Não seria preferível ver na figura do cachorro sem nome alguma personagem da humanidade transvestida em cachorro? Teria sido exatamente esse o final da narrativa? Terão os cães mundo etéreo, para onde seus espíritos peregrinam após a morte?


II


Aqui chegando, o ignorante cachorrinho passou a conviver com outros da espécie que foi encontrando. Reconheceu uns poucos que vira partir antes, enviados para cá por outros tantos encontrões nas vias públicas, nenhum, entretanto, de seu particular relacionamento.

Preciso foi, por conseguinte, estabelecer novos vínculos de amizades. No entanto, percebeu logo que encontraria resistências para o livre contacto com todos, pois, embora não se fizesse acompanhar por nenhuma das pulgas — o que lhe foi alívio de grande expressão e desafogo de grave preocupação — se viu relegado a segundo plano no relacionamento entre os cães, dado sua postura diante da sociedade canina do etéreo ser da mais absoluta rusticidade.

Lembrava-se, vagamente, de que um dia passeara por aquelas bandas, mas a memória lhe estava inquestionavelmente prejudicada por não se ter exercitado na vida, a não ser pela luta de resistência à fraqueza e pela tenaz procura dos alimentos. Convivera, é verdade, com outros da espécie, mas tão ou mais broncos do que ele.

Ao tentar aproximar-se de certo grupo, foi rechaçado com delicadeza, é bem certo, mas de modo a não deixar qualquer vestígio de dúvida:

— O senhor não nos acrescenta qualquer conhecimento ao largo acervo. Passar bem!

Compenetrou-se, então, de que algo não lhe saíra bem na programação do encarne. Meditou profundamente a respeito de sua ignorância e mais não pôde ver além de algumas idéias fugidias de força e poder. Precisaria educar-se, concluiu, se quisesse fazer jus a parceiros que pudessem acrescentar-lhe algo.

Aliás, foi assim que ganhou o apelido, ao informar as idéias a um dos poucos que o ouviam.

— É isso mesmo, bidu!

De bidu para Bidu foi pequeno passo. Descobriu aí a importância de se ter um nome e iniciou com ele sua integração na sociedade, ganhando foros de individualidade no seio da cachorrada.

Instado por dois ou três amigos que se iniciavam nos estudos dos fatos caninos mais relevantes, resolveu freqüentar a escola de primeiras letras, crente de que os professores saberiam descobrir nele alguma oculta qualidade que fosse aproveitável.

Foi real sucesso na escola. Surpreendente. Extraordinário. Descobriu-se, finalmente, que um aluno havia em estado de integral virgindade moral. Desconhecia o mal, não arreliava, não provocava os demais, não arrefecia o ânimo, mercê do único objetivo realmente conquistado em seu curto encarne: a luta pela sobrevivência. Em suma, um perfeito caipirão bem intencionado.

Foi guindado a exemplo para os demais, mas não atinou logo com a razão de semelhante notoriedade.

Precisavam recriminar alguém?

— Por que você não fica quieto, como o Bidu?

Alguém abocanhou o naco do outro?

— Por que você não se resigna a comer, como o Bidu?

E assim por diante.

Ao perceber a razão de tão repetidamente ouvir o nome, ficou cheio de si, mas tristonho por não se ter apercebido logo do que se tratava. Além de ignorante, começou a desconfiar que fosse pouco esperto, atilado, inteligente. Nós é que fornecemos as palavras, porque, na verdade, o que sentia não conseguia exprimir por meio delas. Mas fechou o semblante e deixou descair o rabinho, antes tão solícito.

Uma ocorrência, no entanto, restituiu-lhe o antigo bom humor: a notícia de que iria voltar à face da terra, em novo encarne, com o notável objetivo de integrar-se à família de jovem cego que necessitaria de um cão para ajudá-lo na dolorosa travessia da vida. A sua sisudez, o seu nunca desmentido vigor físico, a sua bonomia e senso de responsabilidade apontaram-no para os instrutores como o ideal para a tarefa.


III


Ao retornar à carne, viu-se, de repente, em condições bem diferentes. Desde logo, recebeu os melhores cuidados, mas frios e distantes. Nascera de ninhada em casa de criação de animais para o destino referido. Havia, no entanto, a par da severidade no tratamento, a felicidade do adestramento e a possibilidade do companheirismo humano. Afastado desde cedo das preocupações da reprodução, castrado que foi por operação indolor, passou a realizar as tarefas que lhe pediam com o máximo de dedicação. Após período de juventude entregue aos afazeres do aprendizado, foi exposto à visitação pública para a devida transferência de lar.

Por estranha coincidência, o apelido continuava sendo Bidu, em virtude de certa brincadeira entre os adestradores, que, ao observarem-lhe o balançar da cauda, pensaram ter ele adivinhado o seu destino, no meio de todos os irmãozinhos.

— Aquele ali é um bidu.

E lá ficou, com seu nome predestinado.

Como por encanto, a determinada família designada para recebê-lo, a qual tivera oportunidade de conhecer previamente, para que desde logo lhe ficassem impressas na mente as figuras dos vários componentes, compareceu à loja e de pronto desejou ficar com o cão.

Entre os que o foram buscar no canil não se encontrava o seu verdadeiro dono, por expressa recomendação do adestrador, que precisava estabelecer para o ceguinho alguns preceitos de como deveria proceder para obter do cão os melhores resultados. Mas não demorou para que se unissem os dois, em estreita e legítima amizade. Afeiçoou-se logo ao rapaz, na época com seus dezenove anos de idade.

Descobriu que iria substituir outro cão, afastado do serviço por não se ter acostumado ao patrão, terminando por recusar-se terminantemente a oferecer-lhe os seus préstimos. A história desse relacionamento ser-lhe-ia passada ao longo da existência. O que de mais importante podemos dizer a respeito do guia anterior é que não fora adestrado convenientemente, cria que fora de cachorra da família, sem preparo adequado para a tarefa grandiosa de guia de cego.


IV


Passemos rapidamente por sobre essa existência frutífera em que, da cooperação e do amor entre as criaturas, nasceu profundo relacionamento. Bem velhinho e aposentado das tarefas, um belo dia, recebeu certeira agulhada que lhe pôs fim à longa agonia de insidiosa moléstia que o acometera. A família do cego condoera-se de seu sofrimento e praticou-lhe ato de misericórdia.

Chegado de volta, encontrou-se com os velhos amigos do outro tempo. Pergunta daqui e dali, soube da partida de alguns para novo encarne, enquanto a maioria havia regressado antes dele de encarnações mais ou menos proveitosas.


Aqui termina a história do Bidu. Como se diz nas histórias infantis, entrou por uma porta, saiu por outra, quem quiser que conte outra.

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