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Contos-->Construção -- 26/03/2002 - 02:27 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“Amou sua mulher como se fosse a última...”

A bunda e as pernas de Lourdes não eram mais as mesmas. Ela deitada naquela cama, vestida com uma camisola cor-de-rosa de cetim barato, muito surrada, cobertor fugindo, hospedando-se na lateral do corpo imenso da mulher. Estava muito diferente, a Lourdes. Quando a conheceu, em Biritiba, na festa da padroeira da cidade, perdeu o rumo. Deixou os amigos a ver navios. Perseguiu-a durante toda a caminhada entre a colina de onde saía a imagem da santa até a igreja matriz. Toda cidade tem uma igreja matriz, uma praça, um coreto, e rapazes apaixonados pelas moçoilas desimpedidas. Não foi o caso dele, porque Lourdes estava casada há dois anos com Irineu. Naquela tarde ensolarada de novembro ela estava vestida de branco. O então marido não pôde acompanhá-la, pois tinha de cuidar da fazenda do patrão. As vezes ele a confundia com a santa, ambas tão alvas, tão melancólicas, tão cheias de mistério. Levou meia hora para chegarem em frente à Igreja Santa Rita. Enquanto o padre abençoava a multidão ele olhava para Lourdes discretamente. Desde a metade do caminho a jovem esposa do Irineu reparou a perseguição do agricultor desengonçado. João Pedro usava cavanhaque, à época. E um chapéu de palha horroroso. De tempos em tempos acendia um cigarro. João tinha menos de vinte anos no dia em que a conheceu. Ela não deu bola, a cunhada estava ao seu lado, mas aquele rapaz ficou registrado em sua mente. Enviuvou dois anos depois. João estava lá, à sua espera. Não teve filhos com o primeiro marido, isto facilitou as coisas. Vieram para São Paulo em 1978. Lourdes ainda preservara a pele lisa, os seios fartos e a boca mais linda de Biritiba.

A imagem do dia em que conheceu Lourdes se esvaiu quando percebeu um tímido raio de luz invadir o pequeno quarto da casa alugada. Vivia ali há quase dez anos, nunca dera trabalho ao proprietário – exceto uma briga ou outra dos seus filhos com os netos do seu Amadeu. Bunda, pernas e peitos. Nada mais era igual na esposa. Mas ele não reclamava. Grande companheira, ele reconhecia. Faltavam dez minutos para as seis da manhã. Sempre deixava o despertador alguns minutos adiantado, na esperança de usufruir mais alguns momentos de sono. Na noite anterior, uma sexta-feira, chegara em casa embriagado mais de meia-noite. Tinha recebido o ordenado. Pagou o fiado do seu Manel, comprou umas coisas no mercadinho da avenida, colocou as parcas notas de 10 sob um vaso que descansava em cima da geladeira velha. Deitou-se como veio, sem tomar banho, vestido, bafo de onça incendiando o ar do ambiente fechado. Lourdes ainda se dispôs a colocar a “janta”. Ele resmungou, não entendeu. Desabou no sofá, sob o pretexto de assistir o Jornal da TV. Seis e meia estava na parada de ônibus. Chegaria rapidamente à obra, porque era sábado e as ruas estavam vazias.

Naquela manhã de sábado fizera um gesto inédito: beijara o primogênito, Rodrigo Augusto, pele e osso, um ronco tremendo por causa de uma doença respiratória mal curada, dormia enrolado com o do meio, Marcelo Ricardo. Não sabia bem por que, mas resolvera beijar o mais velho dos filhos.

Chegou em cima da hora. Orgulhava-se de nunca ter se atrasado em tantos anos de trabalho. Picou o cartão. Dali a pouco estaria no vigésimo andar daquele que seria um dos mais modernos prédios da Augusta. Não levara marmita, era um bom sinal. Um picadinho de carne de vaca, uma caipirinha, batatas cozidas, outra caipirinha, talvez um Dreher, talvez uma outra bebida quente. Cinco ou seis cervejas com Amendoim e Rivaldo, quem sabe passar na Padaria e levar sonho (Lourdes adorava sonho). Guardou a marmita em seu armário de aço. Pegou o capacete. Um capacete de um amarelo muito vivo, que parecia ter sido esculpido para sua cabeça pequena. Guardou suas roupas também. Uma calça jeans surrada, uma camisa listrada – azul e branco – eram as cores que gostava tanto. Mais um dia de batente, mais um dia a vislumbrar a São Paulo querida e amaldiçoada a dezenas de metros de altura. Ernesto, o chefe de obras, o chamou para uma prosa. “Olha, sabe como estão as coisas, esse negócio de crise das bolsas, sei lá o quê...” A vista do operário escureceu. Veio-lhe à mente os carnês, as prestações, os fiados nos bares da Augusta, no Bairro (seu Manel aceitava o pagamento de metade da conta no dia combinado), os cadernos e lápis pretos dos meninos, a pia que tinha que consertar, o remédio da menina – que custava os olhos da cara -, a aposta que perdera para o Zé Ramalho no domingo que antecedera aquele terrível fim-de-semana. Sonhava em comprar o último CD do Amado Batista, pirata, com a música que o fazia lembrar de Das Dores, a faxineira que limpava o escritório da firma. Não transava com Lourdes há muito tempo. Em compensação, levou Das Dores ao cinema no mês anterior. Pegou na mão e a beijou. Levou-a até a Vila Formosa. Voltou cantarolando umas músicas no Metrô. Na segunda vez que saíram apalpou o peito murcho da amante. Desceram na Estação Tatuapé e se dirigiram a um hotel de pouca categoria. Esbaldou-se. Lambeu-a da testa ao dedão do pé. Gastou o que podia e o que não podia. O que não devia. Foi quando a menina, Rita de Cássia, adoeceu e precisou dos remédios. Foi despedido.

* * *

Tinha tomado um café preto na padaria próxima à sua casa. O ônibus demorou e deu tempo de ele parar, queimar a língua e botar para dentro o precioso líquido preto. Jogou o cigarro pela metade quando o ônibus chegou. Nada comeu durante o dia.

- Me dá uma pura, Sovaco!

Tomou três puras e viu o Lapa passar vagarosamente pela Paulista. O movimento aumentara muito. Senhoras elegantes, jovens, ambulantes, carros importados, polícia, todo mundo parecia transitar por ali. Perdeu o primeiro, o segundo e o terceiro coletivo. Um bêbado entrou no bar. João Pedro pagou uma branquinha. Duas. O resquício de seu pagamento repousava em sua carteira marrom de napa. Pediu um maço de cigarros. Depois de dois meses resolveu deixar de lado a idéia de largar o tabaco. O mundo começou a girar. Um homem branco muito alto se sentiu incomodado com a fumaça do cigarro. “Fumo aonde eu quiser, caralho!” Tomou uns tabefes e só não apanhou mais porque a turma do “deixa disso” chegou para protegê-lo. João saiu com um hematoma no rosto. O Hospital das Clínicas estava muito perto, mas ele não sabia a direção. Carlinhos – um dos balconistas – se prontificou a levá-lo até à parada de ônibus, mas ele não aceitou. “Então foda-se, veado!” Saiu caminhando pela Paulista sem rumo, sem horário para cumprir, sem ter que carregar saco de cimento nas costas, sem ter que pagar os credores, livre, desimpedido. Encostou-se num poste. Os carros circulavam. Adorava o Vectra, era louco para ter um e jogar sua velha Brasília numa das ribanceiras da Serra da Cantareira. Mais de uma vez imaginou-se levando Lourdes e os meninos para Buriti em seu Vectra preto. Nessas suas divagações, parava num posto de estrada e pedia um almoço monumental, regado a cerveja e refrigerantes para a molecada e a mulher. Imaginava também ir ao banheiro e encontrar Das Dores pelada, cheirosa, batom vermelho na boca, sedenta, incontrolável, rebolando seu traseiro imenso e liso. O sinal o habilitou a atravessar – ainda conseguia distinguir as cores. Verde. O mesmo verde de sua amada Buriti. Um passo. Dois. Acompanhou os outros transeuntes. Oito passos, alguns recuaram. Um Vectra preto vinha em alta velocidade. Era uma mulher. O impacto o lançou a vinte metros. A camisa listrada que tanto gostava foi manchada pelo vermelho inigualável do sangue humano. Estava acostumado a ver São Paulo de cima para baixo. Tudo se inverteu. Enxergou os arranha-céus desde o térreo até o topo inalcansável para a maioria dos mortais.

“Morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego....”

Leia também: “Minha História”, em Contos.


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