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Contos-->A TROCA -- 24/03/2002 - 21:16 (Djalma Monteiro Pinto Filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A TROCA
Djalma Filho

Repartição Pública. Meia hora antes do início do expediente, Antenor Domingos da Silva chega em passos lentos. A pressa nunca foi a sua companheira. Metódico e burocrático, tal qual seu emprego, a rotina fazia parte do seu cotidiano inquestionável. Chegava sempre meia hora antes e saía meia hora depois, com seu terno azul-escuro ou com outro cinza. Ele se dirige imediatamente à copa, onde bebe um copo de água, voltando a enchê-lo novamente e colocando-o sobre sua mesa de trabalho. Retira cuidadosamente o paletó sem vinco algum, mas como a tonalidade é escura, impossível é disfarçar a caspa em volta da gola. Senta-se em sua mesa e, lentamente, começa a conferir as datas dos carimbos de maneira não muito prática: estende uma folha de papel em branco por sobre a mesa e vai experimentando, carimbada a carimbada, com uma paciência de deixar Jó com inveja.
Tédio?... Não, de modo algum! Apesar de sua lentidão costumeira, da sua apatia pelas coisas vivas e da sua imobilidade facial no momento de reagir a um estímulo, não há como se negar que o Antenor faz tudo aquilo com muito prazer. Afinal de contas, seu mundo é uma grande Repartição Pública!
Seus colegas de trabalho passam por ele como se fosse um vaso ou um objeto qualquer daquela repartição. Chegam trocando experiências, contando casos, falando da vida alheia ou rindo de piadas repetidamente já sem graça. Ao passar por Antenor, param e lhe dão um monossilábico: "Bom dia". E seguem conversando animadamente.
Todos?... Não, quase todos. O Joca Guedes, apesar de imaturo e brincalhão, deixa escapar, sempre nas entrelinhas, uma observação a mais ao comportamento de Antenor.
- Eu disse ao pessoal que o guarda-chuva é sua marca registrada.
- É, responde Antenor.
- Chova ou faça sol, ele tá sempre ali, dependurado no cabideiro.
- Sou prevenido. Eis que o Antenor diz uma frase com sujeito e predicado!
- Só fiz uma observação, colega.
O relacionamento entre Joca e Antenor, desde o início, começara tumultuado. Joca, um desavisado estreante no serviço público, ficou cara a cara com a figura grave do Antenor e começou a fazer brincadeiras com o antigo funcionário, inadvertidamente. Vocês podem imaginar o Antenor saindo do sério pela primeira vez na vida?... Mas o Joca não fazia por mal, ele apenas tentava descontrair o colega, sem o menor tato, de maneira desastrosa. Antenor se sentiu como se sua privacidade estivesse sendo devassada.
- Antenor Domingos da Silva?... (rindo)
- Qual é a graça?
- Seu nome. É a cara cuspida e escarrada do dono.
- Tenho orgulho dele. Foram os meus pais quem me deram.
- Há muito tempo eu não conhecia um Antenor Domingos!
- Antenor é o nome do meu pai.
- E o Domingos?
- É uma homenagem ao dia em que nasci.
- Estou no lugar certo. Onde já se viu? Há coisa mais burocrática do que nascer em pleno domingo?
A partir daquele dia, Antenor passou a evitar Joca. O ambiente de trabalho permanecia o mesmo, Joca Guedes continuava esperto e brincalhão. No entanto, reservado e grave, Antenor prevenido estava preservando o direito de não ver a sua úlcera exposta por causa de uma brincadeira tão banal. E prosseguia na sua rotina. Continuava saindo meia hora mais tarde da repartição, andando lentamente até o ponto de ônibus e aguardando o lento circular com a mesma paciência. Alguns conhecidos até diziam que o Circular nº173 era tão lerdo quanto o Antenor.
Eis que um dia, em plena repartição, Joca faz uma revelação tão pública e tão íntima, que chegou a tirar do Antenor aquela expressão pálida, fazendo com que, pela primeira vez, uma certa coloração rósea ganhasse vida nas faces do antigo funcionário público.
- Sou cercado de amigos por todos os lados. No entanto, vocês nem imaginam o quanto me sinto só!
Aquilo soou como um eco de uma porrada na boca do seu estômago. "Como?... Não, não acredito! Impossível! Mas até que faz algum sentido. Ele vive cercado de amigos, mas mora só. Ninguém vem procurá-lo na repartição. Dos raros telefonemas que recebe, em sua maioria, são de garotas marcando encontros. É... faz sentido. Coitado do Joca, tão jovem e já tão só. Se, pelo menos, ele tivesse a minha idade...".
Fim da linha do Circular nº173. De guarda-chuva pendurado no antebraço, andar mais lento que o de costume, o terno azul ou o cinza já maculados por algumas dobras e com a expressão de um nada absoluto, Antenor salta no ponto final, anda na direção de um prédio sombrio e some pelas escadas, deixando no térreo o barulho do seu guarda-chuva capengando ao subir os degraus.
Antenor era um péssimo interlocutor, no entanto era um observador nato. Depois daquela frase do Joca Guedes, ele passou a ficar atento a cada gesto e atitude do (até então) desafeto da primeira brincadeira. Lembra-se bem de alguns outros telefonemas recebidos pelo Joca e, como as suas escrivaninhas eram bastante próximas, ficava impossível deixar de ouvir o companheiro falando bravo e baixo ao telefone.
- Já te disse para não me procurar aqui!... Não importa, a vida é minha e faço dela o que quiser. Vou passar o Natal sozinho, entende? E me esqueça!!! Joca bate o telefone irritado.
Quarto sombrio de um apartamento. A porta se abre. Ouve-se um barulho de um guarda-chuva capenga tateando os rodapés até parar em um canto. A luz se acende. Antenor está em seu apartamento ao fim da linha do Circular nº 173. No banheiro, ele dá uma longa mijada e tenta dar a descarga em vão.
- Sem água!... A Etelvina não tem culpa.
Tentando realinhar o vinco do paletó no espaldar da cadeira, Antenor aproveita, tira um lenço do bolso, tapa o nariz e vai fechar a porta do banheiro. Põe um robe sobre o que resta de sua farda de funcionário público, vai até à minúscula cozinha e coloca o que restou de ontem para esquentar no forno. Dirige-se para um birô, que mais parece ter saído de um antiquário, seleciona alguns livros e estuda a próxima jogada para seu xadrez amador e solitário.
- O cavalo ameaça o bispo. A minha torre pode salvá-lo.
Ergue-se, vai até a cozinha e retira o prato feito do forno. Abre um bom vinho tinto da safra de quarenta e quatro e despeja-o em um copo barato de mercearia. Comendo, bebendo e lendo, vem-lhe à lembrança aquela frase dita pelo Joca em plena repartição:
- Vou passar o Natal só, tá me entendendo? Esqueça-me!!!
Antenor sorri amarelo, tirando um pouco de alegria na luta contra si mesmo: O xadrez!
- Rainha livre e... xeque-mate! Vou convidar o Joca para passar a noite de Natal comigo.
Véspera de Natal. O 173 chegou atrasado no ponto próximo à repartição. Não parecia ser um dia comum, pois, a cidade estava quase parada, às vésperas do grande feriado de fim de ano. Enquanto nos magazines e no mercado informal ocorre a grande demanda dos consumidores, as traças fazem a festa nas Repartições Públicas.
O que poderia parecer um dia comum, não fosse o atraso do 173, para Antenor se tornaria inesquecível. Ao sair do circular lerdo, ele procura com uma certa ansiedade algo que lhe faz falta em sua mão direita. Já com o 173 em movimento, ele percebe o objeto da sua ansiedade: O meu guarda-chuva!!! Ele faz ainda a menção de seguir o ônibus. Tarde demais. Como ele iria alcançar o coletivo com aqueles seus passos lentos?
- E logo hoje! É... tenho que ser tolerante.
Seria a primeira vez, em vinte e sete anos, que ele chegaria atrasado ao serviço.
Repartição Pública. Como de costume, Antenor chega em passos lentos, e, como se o ato fosse já condicionado, vai até ao cabideiro e desiste, visivelmente frustrado ao perceber que já não carrega mais o seu guarda-chuva. Depois de encher o copo de água na cozinha e levá-lo até à sua mesa, ele tira o paletó e coloca-o no espaldar da cadeira, para não perder o vinco. Senta-se e espalha as folhas de papel em branco sobre a mesa, começando a testar pacientemente os carimbos com a data do dia.
De sua mesa, ele ouve um estranho barulho vindo do fundo da repartição. "É... hoje não é o meu dia. Perdi o meu guarda-chuva e agora essa chiadeira atrapalhando a minha concentração!".
Antes de se levantar para investigar os sussurros, Joca e Mariita - uma colega de repartição - aparecem em raro estado de êxtase. Eles ficam sem graça ao ver o Antenor na repartição e se esforçam ao máximo para manter a sobriedade.
- Onde anda a sua marca registrada, Antenor?
- É... o seu guarda-chuva, Mariita fala enxugando os cabelos.
- Perdi.
- Você não vai perguntar o que nós estamos fazendo aqui?
- Pra quê?
Mariita senta-se sensualmente sobre a mesa de Antenor, num ato de visível provocação e doação em troca da discrição do velho funcionário. Mas Antenor fica impassível, mesmo diante de joelhos tão bem torneados quanto os de Mariita.
- Cheguei cedo para comprar a carne do churrasco, diz ela.
- Churrasco?
- Você não soube, Antenor? Hoje vamos ter trocas de presentes entre os funcionários, fala animado Joca Guedes.
- Não me incluam nisso.
Joca se interpõe entre as pernas de Mariita e o olhar morno de Antenor.
- Você não vai comprar a carne para o churrasco não, Mariita?
- É pra já.
Mariita sai. Antenor e Joca ficam a sós.
- Você não vai ligar para isso não, Antenor?
- Isso o quê?
- Ora, não se faça de ingênuo. Eu e a Mariita...
- Você joga xadrez, Joca?
- Por que isso agora?
- Pensei te chamar para passar a noite de Natal comigo. Mas, pelo visto você estará muito bem acompanhado.
- Ah, a Mariita? Ela é coisa sem importância.
Não mais que de repente vozes de pessoas falando alto, gargalhadas histriônicas, barulho de cadeiras sendo arrastadas e tilintar de garrafas de cervejas a se tocarem. Tudo isso invadiu o ambiente simultaneamente, sem sequer pedir licença nem a Joca ou ao Antenor.
- Cuidado para não quebrar as garrafas, gente!
- Vamos criar um espaço novo aqui.
Joca faz uma expressão de alívio, mas Antenor, com uma certa ingenuidade, pergunta:
- Aqui?... Bem no meio da repartição?!! E o expediente?
- Mas quem é que vem aqui hoje? Se esqueceu que estamos em plena véspera de Natal?
Antenor se calou e voltou para sua mesa. Começaria então uma obsessiva entrega ao trabalho. "Festa? Para quê?... Nunca vi coisa mais sem graça. Tem coisa mais cacete do que rir sem vontade? Agüentar aqueles tampinhas de mão de gato alisando as minhas costas, suportar aqueles beijinhos babados de canto de boca. Tem coisa mais anti-higiênica?".
Não dava mais para ouvir o bater de carimbos do Antenor. O tumulto era intenso. "Antes eu tivesse ficado em casa. Mas... fazer o que em casa?" Propositadamente, Antenor derramou o copo de água sobre os papéis, simulando um acidente. Apesar de indiferente a tudo, ele precisava recorrer a estes subterfúgios para ter coragem de tomar uma atitude. Talvez no seu inconsciente morassem mil olhos para espreitá-lo as vinte e quatro horas do dia. Manias de solitários!... Ele sai e volta com um livro de bolso nas mãos.
- A carne do churrasco chegou!!!, berra Mariita na porta da repartição.
Antenor se tranca no banheiro e começa a ler o livro de bolso. Infeliz idéia! À medida que o tempo passava e a cerveja era fartamente consumida, homens e mulheres começavam a fazer fila na porta do único banheiro da repartição. "Nem mais aqui a gente pode ler sossegado!!! Vou voltar à minha mesa de trabalho. É... vou ter que aturar isso até o fim..." A única coisa com que ele não contava era com a chegada do Joca, já meio alcoolizado, a lhe esperar para continuar a conversa bruscamente interrompida.
- Do que nós estávamos mesmo falando?... Ah, me lembrei: Mariita!
Joca Guedes olha para todos os lados, como se preparasse para contar um segredo de estado.
- Ela não é a única!! Esboça um sorriso bêbado. Ela pensa que é, mas eu engano a todas!... Todas mesmo!!
- É mesmo?
- Juliana, por exemplo, é uma tetéia! Uma menininha ainda... Seios pequenos e duros, biquinhos pontudos e lindos... Você precisa vê-los excitados. Crescem tanto que eu fico louco! Vez em quando eu driblo a vigilância dos seus pais e a levo para o meu apartamento. São horas e horas de loucuras, excitando e sendo excitado por aquele bibelô. Olha, cá entre nós, amigo Antenor, dá até pena manter relações com a Juliana. Mas... fazer o quê? Se não for comigo, tenho certeza de que outro gavião irá abater a minha franga!
- É... fala Antenor.
- E a Jurema! Eu ainda não te falei da Jurema!! Um pedaço e tanto de pecado. Uma mulher casada, e muito bem casada, que sente um prazer incontrolável em trair. Quanto a mim, não me faço de rogado e nem penso duas vezes, vou sempre que ela pede para fazer amor comigo. Ah, a Jurema!!!... Que pernas, que trançada, quanta tática... quanto gozo. Fêmea rara. Seu único defeito é dizer-se apaixonada por mim. Grande potoca!!! Só porque eu lhe ensinei uma meia dúzia de perversões?..., Joca bebe o copo cheio de cerveja. Você deve saber como são essas coisas... Ela nunca teve daquilo em casa.
Mariita se aproxima de Antenor. Joca Guedes disfarça.
- Do que estávamos mesmo falando?
- O churrasco tá no ponto. Vem comer um pouquinho...
- De solidão.
- Trás pra cá. Não vê que eu estou conversando?
Mariita se afasta com cara de poucos amigos. Joca, no entanto, fica tão sério e grave, como jamais tivesse bebido um só copo de chope. Parecia até que o porre tinha passado instantaneamente.
- É verdade: Solidão!...
- É...
- É triste dizer, mas eu me sinto estupidamente só.
- Não parece.
- Mas sou!!!, fala alto. Passo noites e noites pensando em sexo. Às vezes fico até pensando que estou ficando tarado. Parece até compulsão. Tenho amigos, as mulheres que eu quiser, no entanto, me sinto estupidamente só!!!
- Porque você quer.
- Eu??!!!, Joca hesita e se prepara para contar a Antenor um segredo cabeludo. Toda mulher é uma adúltera. Sou inseguro... Tenho medo de ser traído!!
Mariita retorna empunhando um espeto com carne do churrasco ainda em tempo de ouvir a última frase de Joca. Corta um belo pedaço e lhe serve na boca.
- Come que teu mal é fome.
- Eu não estou bêbado, Mariita!
- Come, bem!, insiste.
"Quanta insistência! Será que convivência é ter que aturar estas frescurinhas? Olha lá a cara do Joca, tão idiota quanto o tamanho do mundo. Mais parece um retardado, deixando-se dar de comer na boca como se fosse uma criança. Idiota para ele é pouco! Mas, pensando bem, até que não. Ele representa, faz teatrinho, encara qualquer personagem para se sair bem de qualquer situação. E, com certeza, essa de homem apaixonado deve ser mais uma delas...".
- Por acaso, você falou em traição?
- Falei sim, olhando sério para Antenor. Mas não é dessa traição banal à qual vocês se referem convencionalmente...
"Não seria melhor se ele falasse sem meias palavras, sem subterfúgios... falar a palavra rasgada, abrir o verbo sem pudor e sem temer as conseqüências? Quem sou eu para falar da palavra desassombrada? Eu, um homem com medo de mimificar os seus próprios gestos".
- Existe a traição meramente filosófica. A grande troca de símbolos durante uma convivência. Como é que eu posso explicar?... A mulher, por exemplo, nunca vai ser propriedade exclusiva do marido. Ela vai sempre precisar de amigas, confidentes, filhos, amantes imaginários... É a partir daí que se configura a grande traição. Enquanto isso nós, os homens, passamos a viver fazendo pano de fundo, objetos que integram o enredo de uma história. Será que fui claro, Antenor?
- É... você bebeu demais. Coma mais um pouco. Mariita empurra mais um pedaço de carne goela abaixo do Joca.
"O Joca ainda vai morrer engasgado. Como é fácil simplificar as coisas. Às vezes as pessoas banalizam o simples só por não fazer parte da lógica do raciocínio. E aí vem o dia a dia, a inconformação, a rotina, a aspiração do algo mais e a certeza de que no futuro tudo poderia ser bem melhor. Seria ridículo ver o Joca Guedes morrendo engasgado! Ah ah ah!!!".
Joca estica as pernas, sem elegância alguma sobre a mesa de Antenor e pede como um paxá: "Me veja outra cerveja, Mariita!".
- Casco verde, não?
"O Joca é um solitário, sim. Mas é um solitário por opção. Ele quer evitar que o teatro vazio do amanhã seja fruto de uma produção mal feita de sua peça. É uma pessoa extremamente cautelosa. Eu invejo o Joca. Trocaria toda a minha vida por cinco minutos bem vividos da dele, sabem?!".
O dia escorregou pelas mãos, assim como as palavras ébrias do Joca hesitando entre os parâmetros da solidão e da tristeza. Os colegas de repartição, cheios de bebida e comida, distribuíram aleatoriamente os presentes e foram se dispersando. A noite chegava como de costume: o pouco sol do lado esquerdo da vidraça, sombras na frente do prédio e um ruído de apito de fábrica no ar.
Na repartição tudo respirava calmaria. Se não fosse pela imagem tragicômica de Mariita amparando a bebedeira do Joca Guedes no amplo sentido do verbo, tudo estaria como se fosse um final de expediente. Sim, pois o Antenor, com seu cuidado milimétrico, já dera uma de faxineiro e passara a limpo a repartição para uma outra semana. Será uma segunda-feira?... Lento, calmo e irritantemente impassível, ele deixa um copo em cima de sua mesa e passa uma escova sobre o seu terno azul ou cinza para espantar as caspas. Foi até o cabideiro para voltar frustrado, pois ali não mais estava o seu velho guarda-chuva. Antenor sai e apaga a luz.
Chove. Em frente à repartição, Antenor vê o Circular nº 173 passando estranhamente apressado. Ele tenta apressar o passo, interrompido bruscamente por um baque surdo, caos, confusão, gritos e gemidos. Um acidente!... Os gritos de mulher continuam mais fortes. "Espera aí, eu conheço essa voz!..." Um barulho de trovão ecoa no céu. Visivelmente perturbado, ele segue tropeçando nas próprias pernas até chegar ao ponto do Circular. Meu Deus!!.
O Circular nº173 não pode mais seguir viagem. Em baixo dele, está o corpo ensangüentado e esmagado do Joca Guedes. Antenor apressa o passo na chuva até chegar perto do corpo do "quase" amigo, que ainda respira.
- Esse camarada é um louco!.., defende-se o motorista.
- Meu Joca!... Você matou o meu amigo Joca!
- Eu não tive culpa alguma, senhor. Esse camarada se jogou embaixo da condução!
Antenor se aproxima mais da dantesca cena. Tira Mariita de perto do corpo semivivo de Joca, acalma-a e deixa-a junto aos populares. Aos poucos e irritantemente lento, ele se aproxima da roda do 173, que acabara de esmagar alguns dos ossos da face do Joca. Junto ao corpo do já amigo, fala alguma coisa bem baixa em seus ouvidos.
- Eu trocaria cinco minutos da tua vida pela minha vida inteira!... Vamos fazer uma troca? Você ainda tá vivo, Joca? Dá tempo!
Em vão. Joca está morto. O rabecão aparece na avenida, coloca o corpo de Joca no seu interior e libera a pista para que o Circular nº 173 possa seguir o seu percurso.
No meio da pista e abraçado à Mariita, Antenor, pela primeira vez em sua vida, deixa escapar uma indisfarçável lágrima no canto direito do seu olho. Sem saber o que dizer, pergunta à amiga do Joca: "Você quer passar o Natal comigo?".
Sem que Mariita tivesse tempo para responder, Antenor ergue a mão, pára um carro de aluguel e entra nele levando sua primeira amiga. Debaixo de uma chuva intermitente, o carro de aluguel segue a linha do Circular nº 173. Da janela que se abre, vê-se o paletó, de um terno azul ou cinza, sendo jogado para fora do carro. Era o início de uma longa noite de chuva tropical.



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