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Contos-->A briga -- 15/05/2000 - 16:10 (Manoel Carlos Pinheiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sigilosa, quase clandestina. Recebi o aviso um dia antes. Não podia contar para ninguém. Pouco a pouco fomos nos encontrando. Era uma quinta-feira. Logo ao cair da tarde, a ansiedade tomou conta de mim. Eu tinha 15 anos e estava de férias. Desde o lendário Pé-de-Ferro que não havia surgido algo tão especial. E agora se enfrentariam.

Em rodas de discussão, os ânimos se exaltavam sempre que alguém dizia qual o melhor. Uma vez houve peixeirada. Não era para menos, chamar Caiado de mestiço, foi demais. - Só tem força, não agüenta dois barrufos apanhando. Foi um deus-nos-acuda. Não houve turma do deixa-disso. Tudo muito rápido. A 14 polegadas rasgou o bucho do falastrão. Sangue pra todo lado. Sobreviveu. Um mês depois voltou a freqüentar a rinha. O ex-amigo fugiu pra São Paulo.

A outra peixeirada foi por motivo ético. Perdeu a briga e maltratou sua própria criação. A culpa é sempre de quem emparelha. Emparelhou mal ou não preparou direito o seu galo. Um galista mais zeloso não resistiu ao ver o capãozeiro dar um safanão no galo caído. Depois do grito de advertência, partiu pra cima e sangrou quem não deveria meter-se em coisa de homem. Não teve escapatória. Na hora, ninguém lamentou. Quem já viu maltratar um galo?!

Caiado e Tesourão. Sabia que assistiria a um confronto histórico. Contaria para os meus netos. Quase todos os presentes já eram avós. Ninguém falava. O clima festivo de brincadeiras e de apostas não existia naquela noite. As apostas foram proibidas. Havia muito mais que dinheiro em jogo.

Talvez eu fosse o único a freqüentar os dois terreiros. Conhecia de perto a ambos. Não conseguia torcer por qualquer dos lados. Dois monstros sagrados. Mais de seis quilos cada um. De puro músculo.

Caiado batia forte demais. Quantos pescoços já quebrara? As estatísticas não eram confiáveis. Bico na crista ou na barbela, puxão pra baixo, subida fulminante: só se ouvia o estrondo. O sangue respingava, não havia pescoço à prova de tal pancada. Se o adversário brigasse na solta, mantendo distância, durava um pouco mais. Se fizesse briga, até dava pra endurecer, senão, era só apostar se passaria do primeiro barrufo.

Tesourão fazia briga e era rei da rebatida. Seu filho Sapinho matou três numa manhã. Vinte três minutos o primeiro, dezenove minutos o segundo e quinze minutos o terceiro. Mas não chegava aos pés do pai. O único capaz de derrotar Caiado, todos sabiam.

Seria a luta entre a técnica e raça de Tesourão contra a força e rapidez de Caiado. Ainda bem que, para evitar brigas, as apostas estavam proibidas. Ninguém sabia o que aconteceria. Tesourão conseguiria evitar a queda? Caiado conseguiria brigar os dez barrufos?

No caminho, tremia. Um pouco de frio, um pouco de nervosismo. Lá dentro, até calor fazia. Os olhos pulando das órbitas eram visíveis até sob a cortina de fumaça de cigarros. Os nervos pareciam a corda do berimbau de bacia. Recinto totalmente fechado, cheiro desagradável: mistura dos odores dos garajaus, cigarro e suor.

Além de selecionadíssimo, o grupo foi advertido para manter o evento em segredo e não levar arma ao local. Ou, no caso de ir armado, entregá-la ao dono da casa logo à chegada. Todos concordaram e seguiram as normas estabelecidas. Zé Fraga, claro, foi o árbitro. Nem precisava tanto.

Começou o confronto. Silêncio absoluto. A partir daquele momento, ninguém mais fumou. Talvez para não fazer barulho ao riscar o fósforo ou ao aspirar o cigarro. Olhos vidrados, respiração contida, faces empalidecidas e contraídas. Mesma altura, mesmo peso. Plumagem diferente. Tesourão, vermelho acastanhado misturado com algumas penas pretas. Caiado, uma mistura de tons de amarelo salpicado no preto.

Mais parecia um balé. Giravam, pescoço com pescoço. Ameaçavam o golpe, chegando mesmo a suspender um pouco as asas, mas no meio da ação, parecendo prever um contragolpe, desistiam. Fossem humanos, poderíamos dizer que os dois primeiros barrufos foram de estudos.

A partir do terceiro, Tesourão começou a levar alguma vantagem. Fazia a briga como nenhum. Giros rápidos para ambos os lados. Beliscões disparados como jabs. Duas vezes, como se fosse uma rebatida, aproveitou o puxão na barbela iniciado por Caiado e bateu muito forte. Lábios mordidos denunciaram os gritos mudos.

A partir do quinto barrufo, briga franca. Inimaginável a resistência de ambos. Ninguém jamais vira golpes tão duros não resultarem em quedas. Um torrão ficou entre os dedos de Caiado na hora de um golpe, voou sobre a cabeça de Giva e espatifou-se, ruidosamente, na parede a uns três metros de distância.

No sétimo barrufo, parecia que a coisa se decidiria em favor de Caiado. Começou a soltar-se mais. Bateu três vezes seguidas, o sangue espirrou, a vida de Tesourão estava por um fio, mas ele não demonstrava o abatimento.

No oitavo, a surpresa. Tesourão bateu tão forte que Caiado bambeou, deu dois passos trôpegos para um lado, outro para frente, o pescoço apoiado no de Tesourão impediu a queda. Tesourão nem precisaria bater, apenas afastar-se ou beliscar. Entretanto, pareceu sentir o golpe tanto quanto Caiado, buscara forças e energias onde já não havia. Faltavam ainda trinta segundos para o final do barrufo e nenhum conseguiu mais dar qualquer golpe.

Os dois últimos barrufos duraram um século. O desespero estampou-se em todos os rostos. Golpes secos e alternados evocavam os sons de tambores mágicos, de pisadas fortes do samba-de=coco em dia de mutirão, da zabumba de Norato. Se alguém tivesse ousado propor, a luta terminaria. Só havia motivos para ter vencedores. O empate foi a consagração de ambos.

Entre os humanos, apenas os passadores se movimentavam. Mesmo ao final da luta, demorou um pouco a alguém fazer um movimento, provavelmente um suspiro. Em silêncio o grupo começou a dispersar-se. Éramos, no máximo, trinta pessoas. Parecíamos sonâmbulos ou autômatos. Já longe dali, uma meia hora depois, consegui falar. - Está frio, vou pra casa. - Eu também, disseram os demais.

Uma semana depois, a notícia começou a se espalhar. As pessoas vinham me perguntar, pedir detalhes. Eu emudecia. Parece que todos os presentes agiam assim. Não sei porque. Só sei que, ao lembrar do confronto, voltava a sensação esquisita dos últimos dois barrufos. Pela primeira vez, eu vira os limites de uma criatura serem completamente ultrapassados.

Manoel Carlos Pinheiro
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