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Contos-->O homem que bebia cerveja -- 10/03/2002 - 13:20 (Marcelo Rodrigues de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O homem que bebia cerveja

Marcelo Rodrigues de Lima


Todas as crianças depois que crescem têm lembranças sobre seu passado. As que hoje são médicas lembram de como brincavam de médicos com os amiguinhos ou com bonecas. Os que hoje são arquitetos lembram de como iam à praia e construíam castelos de areia. Os que hoje são bem casados lembram de como pensavam nos príncipes e princesas que conheceriam e conheceram, comparando com seus maridos e esposas.
Mas não tenho esse tipo de lembrança. Talvez por não ter realizado nada do que queria quando era criança. Quis tantas coisas e hoje não posso dizer que as consegui. Para não ser tão duro comigo mesmo, posso dizer que consegui alugar uma casa de dois cômodos, e que felizmente estou conseguindo pagar.
E tudo isso não faz me lembrar de nada que queria ser, mas sim de uma pessoa.
Lembro, que quando era criança, minha mãe, já viúva, vivia da renda de casas de aluguel que tínhamos no mesmo terreno que morávamos. Era a nossa casa na frente e mais duas atrás. Menores, é claro e por coincidência, de dois cômodos.
Na casa da direita, para quem entrava, morava um casal religioso recém casado. Eles, que por sinal, acabaram por levar minha mãe para a igreja. Todas as terças, quintas, sábados e domingos, e eu como filho único, tinha que acompanha-la.
Na casa da esquerda morava um homem sozinho. Devia ter por volta de 50 anos. Podemos dizer que ele não ligava para a aparência, já que andava com a mesma roupa durante toda a semana e vivia sempre com uma garrafa de bebida nas mãos. Não trabalhava, mas todo começo de mês tinha o dinheiro para pagar o aluguel.
Às vezes quando saíamos para a igreja ele estava em frente de casa, na calçada, bebendo alguma coisa. O casal sempre fazia um sinal do Pai Nosso e diziam que iriam rezar para ele. Chegaram até a dizer para a minha mãe para que ela o tirasse de casa, que eles poderiam arrumar outra pessoa para alugar. Minha mãe nunca dizia nada, nem que iria rezar por ele e nem que iria tira-lo de lá.
Dificilmente ela comentava sobre ele. Mas às vezes quando eu perguntava o que acontecia, o por que dele nunca fazer nada e viver bebendo, minha mãe sempre respondia que não era da nossa conta, que enquanto ele pagasse o aluguel, estaria tudo bem.
É claro que de tanto eu perguntar e por ela temer que aquele homem me influenciasse de alguma maneira, já que quando eu não ia para a escola de manhã ou a igreja dia sim, dia não, vivia perto dele, resolveu responder as minhas perguntas. Disse para mim que ele era um perdedor, que se escondia de si mesmo bebendo e que se não mudasse logo de vida, morreria. Ela chegou a dizer que talvez ele quisesse isso mesmo, por isso bebia tão compulsivamente.
O casal tentou leva-lo para a igreja, o que fez com que se arrependessem depois, pois um dia ele apareceu lá completamente bêbedo chamando por eles. Queria por que queria ser apresentado a Deus, coisa que lhe haviam prometido.
Minha mãe nunca lhe convidou para nada. Mas uma vez, quando cheguei da escola, ele estava sentado em uns blocos no canto do quintal, me convidou para jogarmos bola. Estava com minha bola perto de si. É claro que não disse não. Jogamos a tarde todo. Ele, para mim, não parecia bêbado, parecia feliz por estar ali jogando. Ria muito e sempre deixava que eu passasse com a bola por entre suas pernas. Minha mãe que via tudo da janela e como já iria me chamar para tomar café não teve outro jeito senão convida-lo também para que nos acompanhasse. Mas por uma estranha razão, ao menos para mim, ele não aceitou. Disse que precisava se arrumar para sair. Tomei meu café rápido, e pela janela da sala, que dava de frente para os dois cômodos que morava, pude reparar que ele não havia nem trocado de roupa, muito menos saído.
Depois desse dia, quando via-o, ele apenas dava um sorriso e dizia que depois, se ele tivesse tempo, que brincaríamos. Minha mãe apenas sorria e apertava o passo para a igreja, em companhia do casal que nem boa noite lhe dizia.
Ela continuou me dizendo as mesmas coisas que me dizia antes. Que ele era um perdedor. Só que agora com um fato novo; que se eu não me dedicasse na vida acabaria como ele, isto é, sozinho e caindo pelos cantos.
Moramos mais alguns meses naquele lugar. Minha mãe decidiu vender tudo e ir para o interior para ficar próximo a família.
O casal acabou por encontrar um lugar rápido. Logo, a pequena família iria ficar maior. Quanto ao homem que morava na casa da esquerda, minha mãe lhe contou da decisão logo de imediato. Não queria que ele ficasse na nossa porta pedindo mais tempo, por não ter encontrado um novo lugar. Ele não fez isso e até mesmo para surpresa da minha mãe e para o do casal, que intimamente queriam vê-lo implorando, o velho disse que tudo bem e que no final do mês mudaria-se sem problema. Foi o que aconteceu.
No seu último dia, notei que ele tinha poucas coisas dentro da sua pequena casa. Fretou uma Kombi, que deu apenas uma viagem a sua nova casa. Ele, depois de ter fechado a porta, foi até a nossa casa e entregou a chave a minha mãe. Disseram obrigado. O homem virou as costas e foi embora. Nunca mais o vimos.
O tempo passou. Tive minhas pequenas conquistas e minhas grandes decepções
Lembro de tudo isso por me ver agora como esse homem. Posso entende-lo mais do que nunca. Vivo como ele, bebo como ele e sei, como sem trabalhar, consigo pagar o aluguel. Sei como uma pessoa desiste. Posso explicar o que é realmente isso, coisa que a minha mãe deveria saber mas não quis me explicar.
Se ela tinha medo do filho se tornar perdedor, me proteger não adiantou muito. O certo seria que ela me contasse que se eu quisesse ser um dentista, possivelmente eu conseguiria, mas também existiria uma grande possibilidade de eu não conseguir.
Hoje sei que a minha mãe não sabia de tudo. Tinha tantas dúvidas e medos quanto nosso antigo inquilino e quanto eu tenho. Tanto que procurou respostas em uma religião que não era realmente a sua e vendeu as casas para ir se esconder em uma cidade de interior.
Pareço estar vivendo tudo novamente, depois de tantos anos. Só que eu sou o ator principal.
No final de tudo, sou isso que as pessoas podem ver e que eu não consigo esconder ao me ver no espelho todos os dias.
Notícia nova? Não para mim.

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