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Contos-->Caneta Tinteiro -- 28/02/2002 - 19:32 (Paulo Da Loia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Melíades trancou a porta. Não queria ser perturbado por ninguém.
Com o ato, quis deixar toda a pressão - suposta ou não – no lado de fora do seu quarto. Fez que ia sentar na cama, mas puxou a banqueta à sua direita e ajeitou-se colocando os cotovelos na escrivaninha. Com o seu corpanzil a madeira do assento rangeu e um calafrio tomou sua espinha. Agora foi a vez de apoiar a cabeça na mesa.
Começou a chorar. Um choro fino, como que tentando impedir, a propagação do som. Era um choro tímido, mas que vinha no fundo de seu âmago, dolorido, rancoroso, deprimido. Não durou muito, logo ergueu o tronco e enxugou as lágrimas, passando toda a extensão do antebraço na boca, numa estranha superstição, adquirida sabe-se lá como, talvez num momento em que vivia qualquer dificuldade psicológica.
A noite era fria, ventava muito e o pouco movimento que se podia ver na avenida próxima criava um desalento e o mínimo desejo de dar um passeio. O céu estava limpo, podia-se ver as estrelas... era uma bela noite de inverno.
Melíades notou no canto da escrivaninha, embaixo do compartimento de gavetas, que repousava ali sua caneta tinteiro, que ganhou de presente de aniversário dos colegas de escritório. Era uma caneta elegante, metálica em cima e, embaixo, de um azul bem forte. Tinha que apertar um pequeno botão no meio do seu corpo para que a tampa desprendesse do conjunto. Melíades pegou um bloco de papel e abriu a caneta, repousando-a naquele. Fixou seu olhar no tinteiro como que evocando uma entidade. Minutos após, a caneta colocou-se de pé!
A caneta movimentou-se por suas próprias forças, rabiscando o bloco com desenvoltura. Era assim que manteria a comunicação com Melíades, que nenhuma expressão de horror ou de surpresa esboçou ao ver a tinteiro dançando livremente sobra o papel, como se algum espírito invisível a tivesse manejado:
"Por quê você chorou, seu idiota?”
Essa foi a pergunta inicial que a caneta fez a Melíades.
- Não... não sei, sinceramente, não sei. O quê se passa comigo? o quê há de errado em mim? Por quê sou tão evitado pelos outros? Por quê sou gordo?!
"Você tem que entender algumas cosas, meu filho. Acontece que há pessoas que nasceram para criarem às outra um espelho edificante, para que estas possam ver refletidas todo o seu imaginário a respeito do que é bom, motivo de orgulho, de humanidade, de beleza, harmonia e tudo mais que encha nossos corações. Entretanto, há outras que vieram ao mundo apenas para agradar a gente mais próxima, há quem se tem contato mais direto. Ao contrário da primeira, essas pessoas são os tipos mais comuns. Agora, existem também figuras patéticas como você, que nada acrescentam, que só vieram para criar dissabores para os outros, atrapalharem os outros, para serem estorvo para tudo. Tipos como você não devem existir. Aliás, só existem para chatear... quando não passam despercebidos por todos.”
Melíades sentiu o impacto das palavras, e buscou a prospeção através de uma respiração profunda. Consentiu com a idéia da caneta, achava-se deveras um empecilho para os seus amigos e sua família. Mas, pretendia alcançar uma solução que pudesse tirá-lo daquela frustração permanente de ser um incomodo.
- Pensei em emagrecer. Fui até a uma academia de um amigo de um rapaz que trabalha comigo, para começar o meu regime...
"Você acha que um regime vai adiantar alguma coisa? Não seja ridículo! É disso que se dá raiva. Você é um verme, não apercebeu disso ainda?"
- Eu sei, é que eu pensei que talvez eu melhorando o meu aspecto físico, talvez fosse possível arrumar alguma garota para sair, até mesmo gostar de mim, quem sabe? Eu conheço tanto cara feio que arruma uma namorada... quem sabe?
"Você se acha feio?"
- Ah ... não sei ... acho que sim.
"Deixa de achar, você é feio! Que garota se atreverá a sair com você, só se for louca. Nem cega! ... você é ridículo! Não compreendeu até agora? Outra coisa: as outras pessoas, mesmo que feias, tem uma luz própria. Você não. Você é apagado, sem graça, sem vida."
Melíades quedou-se diante das críticas. Realmente sentia--se sem vida, sem brilho, talvez intimidado com seu excesso de Peso, Melíades não saía de casa - as raras vezes, saía só ou com familiares. Os amigos tentaram chamá-lo para alguns programas, mas ele sempre recusava com alguma desculpa, porque o seu complexo falava mais alto. Cansados dos insistentes convites, tais amigos pararam de convidá-lo e Melíades colocou na mente que eles não gostavam dele, que era incapaz de manter uma amizade por muito tempo.
Tratando-se de garotas, era aí que se complicava muito mais. Melíades era apaixonado por uma garota loira, baixa, de olhos verdes e de nome Regina, que trabalhava no mesmo setor. Em princípio, tornaram-se amigos, confidentes, até que houve um desentendimento e o vínculo foi desfeito. Os dois não se falavam mais, mal se olhavam e a dor no coração de Melíades era intenso. Talvez por ser imensamente carente, Melíades misturou as estações e apaixonou-se por aquela garota bonita e atenciosa. Por causa do rompimento, ele nunca teve a coragem de declarar o seu amor a ela, e isso era terrível para sua pouca auto-estima.
"Com quantas mulheres você já transou?"
- Com duas... uma.
"Prostituta?"
- É.
"Você sabe beijar, pelo menos?"
- Mais ou menos. Só beijei a prostituta e uma menina do primário, faz uns dez anos; nunca tive oportunidade de praticar.
"E você acha que tem alguma chance de conquistar aquela beldade da Regina?"
- Ela não é nenhuma beldade!
"Mas, para você qualquer mulher é uma beldade. Até uma horrorosa e banguela é um mulherão para você."
- Eu amo tanto a Regina. Como queria tê-la em meus braços. Beijá-la com todo amor do mundo e fazê-la feliz ... sorrir, do jeito que ela sorria antes para mim... Ah, meu Deus!
"Acho que vou te matar."
- Ela anda se engraçando com o Henrique, só porque ele é boa pinta e é mergulhador. Hoje ela olhou para mim de um modo um tanto carinhoso... Oh, meu Deus, ela não pode me odiar! Não pode!
Talvez Regina fosse uma forma inconsciente de canalizar todas as suas carências. Talvez ele não fosse tão apaixonado assim pela garota, contudo, servia como pretexto para atrair outros problemas mal resolvidos de sua vida. Era membro de uma família modesta, que lutava com dificuldade para sobreviver e que não dispunha de tempo de incentivá-lo naquilo que ele achava-se dotado, a arte plástica. Seu pai trabalhava em dois empregos, e não chegava antes da meia-noite em casa. Era uma pessoa bondosa, honesta, mas que não teve muita oportunidade de estudar e seria pedir muito que entendesse a sua vocação. Sua mãe trabalhava o dia inteiro e ao chegar tinha que cumprir as obrigações domésticas. Era muito sensível e procurava incentivá-lo dentro de suas possibilidades. Melíades achava que os dois não sentiam orgulho por ele, pois tinha um emprego de baixo salário e estudava na faculdade um curso que não foi de o agrado dos seus genitores, Melíades amava os pais, embora, não suportava o eterno sermão referente ao seu rumo profissional, sobre o que queria da vida, sabendo que não agradava-os, preferiu não dar-lhes mais aborrecimentos...
- Eu queria mudar de emprego. Ganho pouco, não sou reconhecido. Tem a Regina... Queria partir daqui, ir para um outro lugar, um lugar por onde ninguém me conhecesse, onde não travaria nenhuma amizade, onde seria eu por mim mesmo. Um lugar bonito, de preferência onde houvesse praia, assim sairia do trabalho e iria caminhar na areia, sentindo a brisa chocar em meu rosto, a minha camisa tremular em meu corpo, um tímido suor escorrer em minha testa e um sorriso brotar em meu coração. Haveria de ser um local distante, longe de tudo, onde ninguém conseguiria achar-me, se é que alguém iria procurar-me. Não iria ver mais Regina, seu rosto se perderia na confusão de minha mente, seu nome não encontraria tanta facilidade de ser pronunciado em minha boca, seus olhos já não povoariam minhas emoções. Sentaria num bar de frente à praia, beberia minha cerveja e iria recordar apenas sobre aquele dia ou sobre as contas a pagar naquele mês, sobre o supermercado ou a feira. Iria viver sozinho, ter meu apartamento, pequeno, limpo, mobiliado o suficiente para o meu conforto. Talvez fosse comprar dois televisores, um à sala e outro na cozinha, quando eu tiver preparando o jantar. Cozinharei os meus pratos preferidos, comerei aquilo que tiver vontade de comer. Não medirei esforços em dar-me aquilo que quero e mereço, pois, também não sou de pedir muito. Farei minhas viagens tão sonhadas em minhas férias, pintarei os meus quadros, porque terei o material que for necessário. Esculpirei minhas estátuas, assistirei os meus filmes, visitarei meus museus, meus teatros, meus circos, minhas praças, meus... Pode ser um sonho idiota, mas não é fruto de um exercício despretensioso, em que sabemos que não moveremos nenhuma palha para realizá-lo. Tudo que disse será buscado com todas as minhas forças, não medirei esforços para chegar ao ponto almejado, não terei escrúpulos, nem medo, nem vergonha. Acabarei com todos os sentimentos que me fazem infeliz e, consequentemente, enterrarei esta maldita infelicidade. Dentro de mim sei que isso não é um sonho, e sim a única forma de manter-me vivo.
"Manter-se vivo?! Já pensou em se matar?"
- Já, muitas vezes.
"E por quê não o fez ainda? medo?"
- Não, não tenho medo de morrer ... é estranho. A morte não me põe medo.
"Covardia. Além de tudo, covarde."
Melíades abaixou a cabeça com a peso da verdade. Sim, teve covardia para o suicídio.
"Você tem que pedir para alguém te matar."
- Não sei ... Não sei se quero morrer.
"Mas você tem que morrer!"
Melíades levantou-se. Andou pelo quarto, nervoso, ansioso, suas mãos suavam, seus olhos não se fixavam em nada. Circulava por sua alcova, fria naquela noite, pensando naquela hipótese que se abria a ele com renovada energia. Sentou novamente à frente da escrivaninha e da caneta tinteiro que postava como o seu carrasco:
- Não, não quero me matar!
Foi a vez da caneta agora rolar de um lado a outro em sinal de protesto. Melíades procurou não sofrer sua terrível influência:
"O que você tem contra a morte"
A caneta voltou a escrever no bloco com a tinta mudando de cor, de um azul claro para um vermelho intenso, semelhante a sangue.
Melíades começou a responder ainda cabisbaixo:
- Não tenho nada contra a morte. Também tenho que afirmar que não consigo entendê-la muito bem. Seu significado está além de minhas possibilidades.
"A morte não tem nada de tão estranho assim. Ela marca o fim de um ciclo e um início de um outro. Quanto mais rápido você acabar com um, mais rápido começará o outro.
- E qual a vantagem disso?
"O ciclo que se convencionou a chamar de morte - odeio esse modo pejorativo - é o melhor estágio de nossa alma. Onde ficamos numa condição de extrema felicidade e de plena realização. Ficamos mais próximos do criador, igualmente."
- E depois? E depois da morte, o que vêm? Existe reencarnação?
"Para alguns. Depende de cada caso."
- Não sei, acho que não quero morrer agora. Quero tentar realizar aquilo que aspiro imensamente. Se eu for incapaz de atingir meu objetivo, aí sim, a morte pode ser o caminho.
"Não! Tem que ser agora!"
- Mas, por quê? Eu não quero. Acho que tenho mais uma oportunidade. Está certo, é a última, por isso, não posso deixá-la passar.
"Você tem que morrer agora! Não pode fugir disso..."
- Mas, por quê?
"Não me pergunte por quê e sim, para quem. Para seus pais, para Regina, para tudo!"
- Não. Não quero morrer ... por Deus! ...
"Você tem que morrer! Vai morrer! Morrer!"

* * * * *

Meia noite e trinta. A mãe de Melíades queixou-se ao esposo da estranheza do filho, dizendo que ele não havia saído do quarto desde a hora que chegou do trabalho, nem mesmo para jantar. Contou, também, que bateu várias vezes na porta do quarto do filho, chamando pelo seu nome, mas em vão, ele não respondia. O pai de Melíades, intrigado com a história foi conferir o caso.
Chegou até o quarto e bateu na porta, com força. Nada. Gritou por Melíades. Pôs a olhar através da fechadura, contudo não viu nem ouviu absolutamente nada, apenas percebeu que a luz do quarto estava acesa. Disse à mulher que iria arrombar a porta e, após várias tentativas, colocou-a no chão.
A cena que presenciaram era do mais terrível horror. Melíades estava debruçado sobre a escrivaninha, com o braço direito caído, a cabeça curvada, os olhos abertos, a boca semicerrada que escorria sangue. Com sua mão esquerda, cravara no ouvido mais que a metade do corpo da caneta tinteiro. Embaixo da cabeça ferida, repousava na mesa, respingado de sangue, um bloco de papel em branco.
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