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Infanto_Juvenil-->O Idealista -- 10/05/2011 - 02:32 (Berenaldo Ferreira e Séia Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



















O IDEALISTA

















Berenaldo Ferreira





17/01/06 a 02/04/06



PARTE 1 -



L

etícia era matreira, muito esperta. Até bonita ela era. Sabia se manter como nenhuma outra. Todos os dias, nos mesmos horários, ela aparecia determinada e exigente. Infalivelmente, chegava procurando o já conhecido atendente daquele bar, sempre às oito e onze horas da manhã. Pela tarde, eram às três e quatro e, pela noite, às nove e quinze. Erguia o focinho com uma autoridade enfática e com as orelhas em sinal de sempre alerta como quisesse dizer, ‘já cheguei’. Seus movimentos eram simultâneos, em sincronia com um olhar estático, ameaçador e ao mesmo tempo inofensivo. Aliado a eles, sacudia o longo e felpudo rabo somente para espantar alguma furtiva mosca, levemente. E, mesmo com movimentos saracoteados, demonstrava, ainda assim, certa tranqüilidade. Disposta, esperava por alguns pedaços de carne, pão e outro alimento qualquer, porque nunca se dava ao luxo de desprezar comida alguma. Um dos poucos lugares dos quais lhe serviam de amparo, sabia que era mais ali, naquele pequeno bar onde a maioria de seus freqüentadores era formada por funcionários públicos daquela repartição que ficava bem em frente, do outro lado da rua. Eles eram atraídos para aquele local, como se uma poderosa força de um ímã os arrastasse para lá todos os dias. Ora iam para tomar o habitual café da manhã, o qual era sempre composto por um ‘pingado’ e um pedaço de pão com manteiga, ora para almoçar ou jantar, quase sempre servidos pelo ‘seu’ Jacinto. Quando não, pelo seu sobrinho Peleco.

O bar era pequeno. Havia apenas umas oito ou nove mesinhas com cadeiras ao seu redor, cujas principais funções básicas eram servir os fregueses para se alimentarem



ou somente para conversar e beber entre si. Sendo que, na maioria das vezes, eles as ocupavam com muita cerveja e pequenas porções de variados pratos de salgados. Em alguma mesa qualquer, sempre tinha um, dois ou três que gritava - após duas ou até três rodadas de cerveja - para aquele senhor que atendia ao balcão, cujas feições eram severas e as mãos extremamente grossas, ásperas, além de possuir um vocabulário próprio daqueles que não gostariam que fossem muito compreendidos:

- Manda um picado com salada, ‘seu’ Jacinto! Não esquece da ‘caipirinha’, hein!

E, um outro, parecendo ser mais íntimo, gritava, precipitado, dispensando aquele pronome de tratamento formal, ‘senhor’. Pois, seria formal demais para quem já se conheciam há anos, um ao outro:

- Hei, Jacinto! Picado hoje não! Faz favor, manda um frango frito com arroz e

batatinha frita.- E sem esperar que Jacinto perguntasse, já ia logo antecipando sua suposta e padronizada pergunta, se iria tomar o ... ‘birinaite’. Era como sempre perguntava:

- Claro! Não esquece minha pinga, falô?

Invariavelmente, a rotina de quase todos aqueles homens - que trabalhavam naquele Instituto público de Medicina Legal - ficava restrita entre as saídas para a captura de um defunto em um lugar qualquer e o bar do seu Jacinto. Sempre que chegavam dessa insípida missão, a parada no bar tinha de acontecer. Assim, freqüentemente, além de comerem qualquer coisa, bebiam antes e depois da tarefa cumprida. Achavam que se assim não fizessem, não suportariam trabalhar naquele ramo tão ingrato. Pois, na maioria das vezes em que recolhiam um cadáver soturno das ruas, dos rios, dos variados lugares sombrios da cidade - além de ser defunto - encontrava-se em estado de total putrefação. Repetidas vezes,





o mau estado em que aqueles cadáveres se encontravam era de causar tamanha náusea, a ponto de, às vezes, alguns daqueles homens ter de pedir a outros colegas que os substituíssem.

Pelo simples fato de aqueles homens saber que estão em missão afim, é que o seu reconhecimento de valor sempre esteve intrínseco. Somente por terem essa consciência é que os fazia fortes a fim de continuarem naquela missão. Assim, lhes vinha em pensamento a mais cruel dentre todas as lembranças dos mortais: um dia... um defunto eles também iriam ser. Quer sejam das formas horríveis em que freqüentemente se encontravam, quer não. Não importava, sabiam que a coisa certa era que um dia, eles, todos eles, também teriam o mesmo fim; sabiam que, um dia, eles seriam um deles também. Somados a esses pensamentos macabros, suas mentes projetavam instantaneamente as imagens imóveis e frias de uma enormidade de cadáveres nus deitados em cima de mesas gélidas de concreto, a suas frentes. Muitos dos quais sequer possuíam identificações. Eram cadáveres anônimos, muitos deles, jogados, esquecidos ali. Dessa forma, justificavam a bebida dizendo que verdadeiramente precisavam de um bom ‘trago’ para poder suportar... ‘encarar os defuntos de frente, sem medo e sem hesitar’.

Inegavelmente, quase todos aqueles funcionários precisavam utilizar qualquer droga lícita para que lhes permitisse possuir, ainda que momentaneamente, um estado emocional de fuga, de certo alívio da realidade. E, para isso, a droga mais próxima e mais acessível a eles era a bebida alcoólica. Assim, antes e depois do trabalho, passaram a fazer o uso do álcool de forma habitual, chegando a consumi-lo em alguns momentos até durante o expediente. Gradativamente, esse contínuo uso ia os aprisionando cada vez mais para dentro de suas próprias inseguranças sem se darem conta. E, aos poucos, ia transformando-





os em seres debilitados, dependentes de um vício que os segurava com a mesma potência dos grilhões de ferro.





* * *



PARTE 2 –





E

m meio a essa turma, se destacava uma figura peculiar, o senhor Álvaro da Silva Gomes, mais conhecido como, ‘seu’ Gomes. Mas, na maioria das vezes era simplesmente Gomes. Era um sonhador-ideológico. Vivia sonhando em viver num país onde todos tivessem as mesmas oportunidades de acesso aos bancos universitários e que as oportunidades de emprego fossem oferecidas a todos, sem discriminação, diminuindo, assim, o grande abismo que separava ricos de pobres. Apesar de não ser muito de falar e tampouco ficar envolvido com política, defendia com certa veemência suas ideologias com sustentação na transformação da sociedade, com radicalismo. Nas raras vezes que falava sobre o assunto, usava as palavras certas, fazendo com todos lhe prestassem atenção. Quando ele falava, eles ficavam tão empolgados e estimulados que os fazia despertar, em





si, momentaneamente, um forte desejo de fazer alguma coisa que pudesse mudar a situação do país.

Era um homem de caráter apurado. Era um homem respeitado pelo simples fato de querer defender-se, a si, aos familiares e aos injustiçados como um todo. Tentara, quando mais jovem, concluir o curso de Direito, mas por razões financeiras e inadvertidas da vida - como acontece com a maioria daqueles que ainda são jovens - nem sequer chegou à metade do caminho. Enfrentara muitas dificuldades financeiras na vida, pois viera de família de pais pobres e, além do que, eram propensos a adquirir vícios. A princípio, a falta de oportunidade ou de sorte em arranjar um serviço fixo o tornara angustiado e inseguro. A seguir, a desilusão no amor também viera com força bater em seu ego de forma destruidora. Sabia que não tinha o tipo físico tão atraente quanto a alguns de seus colegas, mas, por outro lado, também tinha a consciência que não era de ficar muito para trás. A primeira tentativa de namorar uma garota aconteceu de forma desastrosa. Ao aproximar-se da mesma, ela lhe disse sem vacilar - com todas as letras - que estava namorando seu melhor amigo Carlão. Ela estava blefando, pois sabia que o amigo não estava namorando ninguém e nem tampouco a conhecia direito. Além do mais, ele sabia que o mesmo estava passando por crise familiar e sempre quis deixar claro a todos que não queria se envolver com ninguém, pelo menos naqueles momentos difíceis em que estava se encontrando. Portanto, dizendo tais coisas, ficara claro que a garota não queria nada consigo, mas encontrara a forma mais cruel e vil de lhe dizer. Todos esses fatores iriam ser incorporados em si durante a longa e dolorosa trajetória de vida que ele ainda teria pela frente.

Conseguira aquele cargo de ‘papa-defuntos’ - como eles mesmos diziam - através de um concurso público que fizera há muitos anos. Pois, naquela época, somente havia



concurso para prover aquele cargo e, além do mais, precisava satisfazer o insistente pedido de sua mulher dona Mercedes. Fora um concurso feito sem ter muito interesse em ser ou não aprovado. Mas, por pura ironia - o que na vida parece ser sempre dessa forma - para sua surpresa, seu nome constava nas listas dos aprovados. Pois, nunca conseguia passar em qualquer outro concurso que prestava. Assim, ingressara naquele cargo que menos lhe interessava.

Parece que na vida as coisas são sempre assim. Estão sempre andando de forma antagônica. Quando algo não é desejado, ele sempre chega às pessoas de forma inesperada. Seu nome não estivera na primeira lista dos chamados, mas na segunda e, somente seis meses após a divulgação da primeira. Pois, em se tratando de concurso público do Estado, a morosidade ficava como marca registrada.

Apesar do pouco entusiasmo, havia certo misto de surpresa e contentamento no jovem. A princípio, o desinteresse que sentia aos poucos ia desaparecendo e, quando se dava conta, não existia mais e até sentia certo alívio de ter conseguido um emprego fixo. Pois, sabia que tal emprego lhe chegara assim como quem ganha um prêmio na loteria, porque ele estava demais endividado e desempregado. Antes, trabalhava de vez em quando. Ora pintava casas dos amigos, ora vendia livros ou estantes moduladas de vidro. Alguns eram ‘bicos’ que fazia, outros, eram empregos que sempre tinham o caráter temporário. Quando achava estar trabalhando de verdade, logo descobria que não passavam de empregos empíricos, de pequenas empresas recém-inauguradas no mercado e que faziam apenas tentativas de se estabelecer em seus ramos. Mas, como a situação econômica do país não andava, ou nunca andava muito bem - graças aos maus políticos que o país sempre tivera - muitas delas se quebravam na primeira dificuldade que lhes era imposta.



Com o novo emprego, aos poucos, o senhor Gomes passou a fazer parte daquele grupo que freqüentava o bar do senhor Jacinto e aquela repartição pública onde trabalhava. O tempo ia passando velozmente e quase não se podia dar conta do tamanho que o seu poder era capaz de transformar as coisas, as pessoas. Não fosse a perspicácia de Gomes, não o teria visto passar tão rápido. Já fazia mais de vinte anos que lá estava trabalhando e não via a hora de se aposentar, ainda que fossem por motivos de saúde. Freqüentemente, andava trôpego dado ao vício alcoólico que já estava incutido, bem como aos tantos anos trabalhados naquele serviço insalubre. Pois, em uma de suas missões de resgate, há alguns anos, dera uma forte torção em um dos joelhos quando pegava de um riacho três cadáveres, que estavam dentro de um saco de lixo. Como se não bastassem, para somar a isso, os trinta e poucos cigarros que fumava por dia - contrariando as recomendações médicas - lhe faziam tossir intermitente. De hora em hora, lhe davam ataques incontrolados de tosse e às vezes seguidos de náusea e convulsão.

Talvez pelo fato de estar tão exposto às fatalidades, as quais já faziam parte corriqueira de sua vida, o homem parecia ter algum tipo de predisposição para atrair enfermidades. Por conseguinte, notadamente, entre o conhecimento dos médicos, o que fazia o senhor Gomes ainda a se manter vivo eram as longas caminhadas que esporadicamente fazia.





* * *





PARTE 3 -



A

cadela Letícia não podia ver o homem chegar, quer seja no Instituto Médico onde trabalhava, quer seja no bar no Jacinto que logo se aproximava de si com muita euforia. Ele era quem mais atraía sua atenção. Talvez fosse pelo fato de sempre lhe oferecer algo para comer. A todo instante lhe dava um petisco salgado e, freqüentemente, a bajulava com carícias e até beijos quando estava um pouco mais alegre, mais falante, sob o efeito de uma dose mais acentuada de álcool. Reciprocidade existia entre os dois. Um oferecia, o outro correspondia. E, a cadela já se sentia e era respeitada por todos dali como se fizesse parte integrante daquele quadro de funcionários. Pois, tanto ela estava presente no bar, quanto na repartição onde trabalhavam e, em algumas vezes, até mesmo saía com eles dentro do carro de resgate. Letícia tinha sido literalmente adotada por todos. Provavelmente, pelo fato de verem tantos corpos mutilados, alguns praticamente irreconhecíveis, fizeram com que a cadela passasse a ser vista - que ali trafegava e convivia com os vivos - como sendo igual a eles, pois ela sempre estava em torno deles. Todo dia, às dezenove e quinze horas, além dos outros horários britanicamente obedecidos por ela, a cadela ficava de prontidão, assim como quem aguarda ansioso a chegada do amor. Olhava de um lado para o outro na expectativa da chegada de seu companheiro. Os homens - escreveram Engels e Marx certa vez - se distinguem dos animais não porque tenham consciência (como diziam os ideólogos burgueses), mas porque produzem as condições de sua própria existência material e espiritual. São o que produzem e são como produzem.





Gomes tinha de cumprir apenas um horário fixo no serviço, diferente de alguns colegas seu, os quais faziam turnos diferentes. Tamanha era a amizade daqueles dois que, vez ou outra, seus colegas brincavam consigo dizendo que, ainda que ele estivesse em outros turnos, a cadela saberia seus horários e o esperaria. Era um animal muito admirado por todos, principalmente por ele, que - ao mesmo tempo em que a respeitava - ficava curioso em saber como era possível um animal possuir tanta inteligência e lealdade, já que todas suas qualidades pareciam estar muito acima das que eram consideradas comuns entre os caninos. Quando ele faltava no trabalho para ir ao médico ortopedista, o que invariavelmente fazia uma vez por mês, todas as quintas-feiras, Letícia simplesmente não aparecia no bar. Esse incompreensível comportamento já havia virado rotina. Todos percebiam sua ausência naqueles dias e nem mais se preocupavam - como faziam no início de suas primeiras aparições - em saber do paradeiro da cadela. Pois, sabiam que no dia seguinte ela apareceria juntamente com o colega Gomes, porém no princípio não era bem assim. Pois, logo que perceberam aquele estranho episódio, ele passara a ser alvo de diferentes pilhérias dos colegas, como:

- Olha lá o Gomes chegando com a amada!

- Hei, Gomes! Desgruda um pouco. Não vê que ela precisa respirar?

- Olha, Gomes! Ela está ti olhando. Agora, agora. Olha, ela está piscando pra

você.

Eram apenas piadas e Gomes sabia que não devesse se importar com elas. Não deixaria transpor qualquer indignação. Pelo contrário, entrava na brincadeira rindo e, em tom irônico, lhes respondia:

- Não se preocupem, colegas! Ela é toda de vocês. Aproveitem! Mas não vão



molestar a bichinha, hein!

De fato, ele sabia ser simpático e agradável! Entretanto, a sociedade lhe impunha determinados conceitos e regras que ele não conseguia entender e nem podia aceitar. Apesar de todos os esforços que fazia em ter uma vida saudável - como todas as outras pessoas consideradas normais geralmente fazem - perante os colegas e à família, esporadicamente lhe sobressaltavam delírios de indignação e rebeldia. Quando surgiam oportunidades, dizia a todos, em tom grave e ameaçador, àquilo que pensava do atual regime capitalista e político do país. Muitas vezes chegava a propor até mesmo a anarquia popular, a fim de derrubar o governo e seus agentes dominadores. Tais discursos eram frenéticos e impetuosos a ponto de deixar a todos que ouviam uma sensação de que aquele instigante orador não era o mesmo pacato Gomes que conheciam. Duvidavam ser ele a mesma pessoa. Não podia ser. Por quais razões aquele afável colega se transtornava daquela maneira quando falava da questão social e política e, em alguns momentos, até mesmo das igrejas do Brasil? O que acontecia consigo? Seria ele a mesma pessoa ou teria uma dupla personalidade? Comentavam alguns conhecidos mais próximos de si e, até relatavam já terem assistido a um documentário jornalístico que enfocava esse mesmo aspecto, ou seja, as pessoas terem dupla personalidade.

No entanto, eram apenas momentos súbitos e passageiros de alucinações que o deixavam completamente entorpecido. Após terminá-las, vagamente lembrava algo que dissera. Ficava em tamanho estado febril que parecia estar em transe psíquico ou algo parecido. Quem o ouvia nesses momentos e não o conhecesse, juraria que estivesse bêbado, fora de si. Mas, a verdade era que esses sobressaltos somente lhe vinham - apesar de acontecer em momentos raros - em circunstâncias em que ele estava completamente



lúcido, sem ter ingerido qualquer gole de álcool. E, realmente, ele tinha de estar alcoolizado para que não lhe acontecesse tal duplicidade de comportamento. O senhor Gomes gentil, pacato, colega de todos, era o senhor Gomes sob o efeito do álcool. O senhor Gomes audaz, valente e destemido, era o Gomes sem o efeito do álcool. Duas personalidades antagônicas em uma só pessoa. E, para embaraçar qualquer estudioso, qualquer psiquiatra, tal antagonismo deturpado lhe é apresentado. Enquanto a velha e estudada teoria psicanalítica pode dizer que o álcool normalmente traz força e coragem para o seu usuário - ainda que em momentos instantâneos - subvertendo ou iludindo-o a uma determinada realidade, o homem aparece no cenário da vida para dizer o oposto. Pois, sem o efeito das drogas, o mesmo é corajoso, audaz, enquanto que sob seu efeito é pacato e gentil.

Este subterfúgio de se dizer ou afirmar algo, usando advérbios de possibilidades em meio a meras teorias como a mencionada, ‘normalmente’, fica explícita a tendência de ser mais um meio de se eximir de qualquer controvérsia do que mesmo possuir algo de valor real e científico. Portanto, é mais fácil falar em teorias citando-se probabilidades ou generalidades baseadas em pesquisas - das quais por vezes são duvidosas - do que mesmo

afirmar algo com devida propriedade, convicção e sem a pretensão de dar margem a qualquer evasão.





* * *





PARTE 4 -



C



omo tudo na vida existem as exceções, aconteceu exatamente naquele dia em que o homem resolveu - após beber muito em companhia de vários colegas no bar do Jacinto – ir para casa. Nesse dia, alegando pequenas, mas incômoda dor em seu joelho, Gomes deixara o serviço mais cedo e aproveitou para ficar mais tempo no bar. Lá, como sempre todos faziam, houve muitas conversas fiadas, gargalhadas inconcebíveis e muito, é claro, truco. Bebeu e bebeu até a hora que achou que devia ir para casa, não dando atenção aos conselhos dados para não ir naquele horário. Já passavam das quatro da manhã e não se ouvia qualquer ruído pelas ruas, mas, assim mesmo, estava resolvido, teimoso e relutante. Assim, partiu. Do bar até sua casa a distância era aproximadamente de nove quilômetros. Sob o efeito do álcool, ele não tinha noção da distância e parecia nem querer ter.

Ele andava confiante, apesar de oscilar de um lado para o outro e a ver tudo pela sua frente uma vista nebulosa e turva. Tudo estava deserto e escuro. Somente o que via eram algumas luzes de faróis de carro que reluziam do lado oposto da pista. Caminhava cambaleante, ora na calçada ora na avenida, às vezes, chegando até a metade da mesma. A sorte do homem era que - sempre que alcançava o meio da pista não passava carro e, Letícia - possuidora de um instinto mais do que humano – nesse dia resolveu segui-lo. Assim, quando percebia o perigo que o seu companheiro corria, latia sem parar, fazendo com que ele voltasse para a calçada imediatamente. Quando não voltava, ela ia ao seu





encontro e o puxava fortemente pela barra de uma de suas calças, rosnando bravo como quisesse dizer, ‘você vai morrer se não me obedecer!’.

A cada cinco ou seis esquinas que passava, ele parava para descansar. Sentava por alguns minutos e - se não fosse novamente Letícia - caía no mesmo sono daqueles que vão dormir sem saber quando e nem onde foram obrigados a assim fazer. Quando encontrava qualquer porta aberta, entrava, imaginando ser um bar onde pudesse beber mais um pouco.

Numa determinada esquina parou. Com um ar estonteado, olhou para o outro lado da avenida e observou atentamente as luzes fortes e ofuscantes que se dirigiam para si. Vinham em sua direção certeira, assim como um imediato relâmpago atinge seu alvo. As brilhantes luzes saíam de um letreiro luminoso onde luzes de néon, azuis como as enganosas cores do mar, dançavam em diagonal harmoniosamente. Havia em frente a uma comprida porta escura, três homens de pé, lado a lado, de braços cruzados. Estavam bem vestidos e cujas roupas eram confundidas com a cor da madrugada profunda e com a porta. Conversavam entre si qualquer coisa quando perceberam a presença daquele homem indo ao seu encontro. Era uma boate e o Gomes pôde identificá-la somente quando um daqueles três homens que ali vigiava lhe disse. Até que ele tentou entrar, mas o estado em que se encontrava não o favorecia manifestar qualquer contrariedade. Além do mais, os insistentes apelos que Letícia lhe fazia através de latidos em tons graves, foram suficientes para que ele a obedecesse. Parecia que a cadela quisesse levar o homem para casa o quanto antes.

Era como se a cadela soubesse dos riscos que Gomes corria estando na rua àquele horário. Assim, continuaram sua jornada. Ora entrava em um bar que ainda estava aberto, tomava um ou dois goles de pinga e partia rumo ao seu destino. Ora entrava em uma igreja achando que fosse um bar. Porém, no instante em que descobria seu engano, permanecia



por lá o suficiente para admirar as estátuas nuas. Apesar do seu atual estado físico e psicológico, se encantava com as formas femininas despidas. Havia igrejas denominadas evangélicas espalhadas por todos os lados da cidade e bairros. Encontravam-se abertas em todos os lugares e horários, indiscriminadamente. Era espantoso! Em menos de um quilômetro andado, existiam pelo menos duas abertas naquele horário. No entanto, mais fazia isso porque sentia a necessidade do descanso e - quem sabe - até mesmo na obtenção de uma esperança de salvação de sua pecadora alma, apesar de não acreditar nelas. Quando entrava em uma delas, Letícia agora o esperava na porta da saída, pois aprendera - após sua primeira tentativa de entrada ser barrada por um dos praticantes religiosos - que ali não poderia entrar livremente sem ser impedida.

Ainda faltavam uns dois quilômetros para terminar a exaustiva jornada e as horas passavam rapidamente. À medida que elas avançavam, os bares, padarias, farmácias e o comércio, em geral, abriam suas portas. Já se viam pelas ruas pessoas apressadas a passar por si indo para o ponto de ônibus. As avenidas iam ficando mais movimentadas de carros, táxis, ônibus e vans. As luzes iam se apagando e dando lugar à claridade natural do dia. No entanto, agora ele criara mais disposição e, sem saber de onde, apressava-se a longos passos, mais disposto. Queria chegar a casa o mais cedo que pudesse apesar das várias opções dos recintos comerciais abertos que lhe eram oferecidos. Como não usava relógio e nem lembrava de perguntar as horas, ainda assim, tinha a sutil noção de horário. Além do mais, as horas não eram a sua principal preocupação. Mas, de uma coisa sabia: devia passar das sete horas e sua família estaria preocupada consigo.

Em casa, na noite anterior, sua esposa dona Mercedes recebera apenas uma ligação sua, dizendo-lhe que sairia do serviço mais cedo, mas que chegaria a casa mais tarde, pois



iria ficar jogando algumas partidas de baralho junto com os colegas no Jacinto. No entanto, já eram quase oito horas do dia seguinte e o marido ainda não aparecera. Antes de sair para o trabalho, ligou para o Instituto Médico onde ele trabalhava e lhe disseram exatamente aquilo que ela já sabia. Como a mulher já tinha o conhecimento de sua permanência no bar do Jacinto, insatisfeita com a resposta, pediu a gentileza de alguém procurar mais detalhes sobre o marido naquele recinto. Prontamente, um dos plantonistas, também colega do Gomes - desejoso em saber do paradeiro do colega - agora com mais interesse devido à preocupação da mulher, rapidamente foi até o bar. Jacinto habitualmente não se encontrava naquele período e, assim, Peleco tratou de ligar para o tio. De imediato lhe foi dada a notícia que o Gomes - na noite anterior - havia bebido muito, jogado baralho com Silvio, Fabrício e o Pereira e, que deixara o bar às quatro horas da manhã. Ao receber essas informações, a mulher, inconformada, quase não foi para o trabalho nesse dia. Foi direto para o Hospital ‘Tahíde Júnior’, a fim de saber se as pessoas de lá tinham notícias sua. Desconsolada, não teve escolha senão retornar para casa e esperar. Assim que chegou, deu de cara com o marido abrindo o cadeado do pequeno portão que dava acesso a um comprido corredor e, para sua surpresa e incompreensão, ao seu lado estava aquela cadela, sempre alerta e preocupada com seu companheiro.

O clima de indignação por parte da mulher fora imediatamente quebrado por um feliz ar de satisfação ao ver o marido entrando em casa. Apesar do visível estado de embriaguez em que se encontrava, ele ia entrando, ainda que se apoiasse nas paredes do corredor. Agora não por instinto, mas por repetição, a mulher providenciou uma caneca cheia de café totalmente amargo, enquanto o homem tomava um banho gelado. Após tomar essas providências, a mulher achou que ainda pudesse ir trabalhar, já que lecionava



Geografia nos períodos da manhã e da tarde em uma unidade escolar do Estado. Poderia entrar na segunda ou terceira aula. Já que seu marido estava em casa, ela não via por que faltar às aulas naquele dia.

Após umas três horas de profundo sono, Gomes se levantou com as pernas ainda bambas, os pés doloridos e inchados. Sua cabeça doía muito. A primeira coisa que tinha a fazer era ir até o quintal. Seu pensamento estava voltado unicamente em Letícia, pois sabia que a cadela o escoltou durante todo o percurso que fizera. Das peripécias que realizara durante toda aquela madrugada, somente lhe vinha à cabeça a lembrança do cão estar sempre ao seu lado. Mas, onde Letícia estaria? Ah, o quintal. Ela está lá no quintal. Repetia para si desconsolado. Mas, havia certa alegria, ao mesmo tempo em que temia a decepção de não encontrá-la quando chegasse lá - No quintal! Ela tem de estar lá. O quintal vai me dar a resposta. Eu sei que ela está lá. – apesar de afirmar para si mesmo que o animal devesse estar no quintal, suspeitava, em seu íntimo, que não estivesse. Verdadeiramente, o desesperado homem estava certo em suas suspeitas. Ao chegar lá não viu ninguém. E, mais uma vez consternado com aquela situação, esbravejava, gritando e pedindo uma resposta... a ninguém:

- Mas, que diabo! Onde está você, minha menina?! Junto ao desconsolo e a sua

interrogação, caía de joelhos ao solo, ao centro do pequeno quintal. Somado a isso, vinha-lhe o desejo de chorar, gritar mais. Sozinho, ali, de joelhos, ficava inerte a lamentar, já que nem sua esposa e nem seus dois filhos se encontravam em casa naquele momento. Foi um longo período de inquietação e tormento que o homem passou ali naquele chão frio e úmido. A princípio, ficara ajoelhado, momento depois se deitou e ali ficou por um longo período, fixando um olhar para o alto, petrificado, completamente imóvel.



Pela tarde, já pelas cinco horas, seu filho caçula Donizete - como sempre fazia - era o primeiro a chegar a casa, chegando logo em seguida Félix, seu filho mais velho. Sua esposa só chegava após as seis horas. Era justamente o horário que seu marido teria que retornar ao trabalho, pois teria que entrar às dezenove e trinta horas. Após dormir até as onze ou meio-dia e, logo em seguida almoçar, já pela tardinha, ia até o bar da esquina de sua casa a fim de tomar algumas bebidas e, lá passava horas, ficando a jogar conversa fora com quem estivesse por lá. Quando lhe perguntavam por que ele não deixava para beber em casa, simplesmente lhes dizia que no bar era diferente, tinha um outro gosto. Passeios, dificilmente os faziam, já que nunca sobrava qualquer dinheiro para isso. Assim, durante os últimos cinco anos levara a vida nessa mesma rotina.

















* * *









PARTE 5 -



P

odia se dizer que o Gomes era um homem realizado na vida. Pois, tinha uma esposa exemplar e muito carinhosa. Dois adoráveis filhos e, após muitos esforços, conseguira ter sua casa própria cuja participação principal tivera de dona Mercedes.

O caçula Donizete estava preste a se casar. Estava terminando de mobiliar um apartamento que acabara de receber as chaves da CDHU: Companhia de Desenvolvimento de Habitação Urbano - órgão do governo do Estado de São Paulo. Seu financiamento ficara em vinte e cinco anos com prestações mínimas de quatrocentos e cinqüenta reais. Não teve entrada e bastou atender às exigências de inscrição requeridas pelo governo estadual para consegui-la. As obras foram concluídas sete meses após o determinado em contrato e foram chamados seus inscritos no programa, logo em seguida, obedecendo a uma escala pré-fixada. Até que não demorara muito, pois se for levado em consideração outros governos que já passaram pelo Estado. Dessa forma, para a felicidade de todos seu nome e o de sua futura esposa Alzemira, constavam entre os inscritos. Foram uns dos primeiros da primeira lista de chamada.

O casal, Gomes e Mercedes, faziam os primeiros preparativos para o casamento do filho com muita agitação e entusiasmo. Todos estavam inseridos, envoltos nesse mesmo empenho, compartilhando mutuamente o mesmo clima de alegria e júbilo que pairava no ar. Apesar da sua pouca idade, vinte e três anos de idade - achavam os pais do jovem - era muito responsável e agora iria se casar, construir sua própria família, seu lar, seu



negócio, enfim, daria o tão esperado e sonhado neto a eles. Em especial, mais do que ninguém, Gomes era quem aguardava com tamanha ansiedade a sua chegada. Visivelmente, essa alegria ficava estampada em seu semblante quando lhe falavam da possibilidade de tão breve ser avô.

Donizete se formara em Farmácia e aguardava pacientemente conseguir um empréstimo do irmão Félix, que já era advogado. Pleiteava abrir uma farmácia e teria, assim, um negócio somente seu, o que o tornaria um homem totalmente independente, sem ter que trabalhar para mais ninguém. O irmão mais velho, Félix, já estava praticamente na fase final do projeto que deixaria o irmão em tranqüilidade. Pois, dera entrada na documentação na Prefeitura e eles só estavam aguardando o alvará de funcionamento. Também não iria pagar aluguel, pois o próprio Félix cedera uma parte de um terreno que havia adquirido tempos atrás.

Félix abdicara, outrora, um noivado conturbado e incerto, o que lhe colocara em situação cômoda para que pudesse viabilizar o empreendimento do irmão. Pois, Félix tinha uma noiva autoritária demais e não permitia que ele visse os amigos quando desejasse. As coisas teriam que ser somente conforme ela determinasse que assim fossem. O homem não podia ser visto conversando com qualquer mulher que lá vinha ela furiosa, agressiva para o seu lado. Fosse quem fosse não importava. Bastava ser do sexo feminino para ela ter de estar presente na conversa a fim de se ter plena certeza de que realmente não houvesse nada entre eles. Definitivamente, Elenice estava à beira da loucura. Era uma mulher paranóica e já estava fazendo todos ao seu redor ultrapassar os limites da restrita tolerância. Ela era uma pessoa bastante difícil e, mesmo tendo somente vinte e seis anos, bastante insegura e tensa.





Algum tempo atrás, ainda no começo do namoro de Félix e Elenice e, iniciando o primeiro ano de faculdade, ela ‘surtou’ de tal maneira que ambos e uma terceira pessoa foram parar em uma delegacia de polícia. Félix estava despreocupadamente conversando com uma colega que acabara de conhecer na faculdade, em uma fila de uma agência bancária, quando a mulher repentinamente surgiu do nada. Até parecia que a mesma havia recebido informações a respeito do local e hora em que os dois se encontravam, pois a mesma foi direto ao encontro de ambos e, instantaneamente, sem dirigir uma única palavra, começou a esbofetear a colega do namorado. Puxava seus cabelos e gritava aos berros e em completo delírio, ‘puta, descarada, vagabunda. Você vai me pagar, sua vadia, sua vaca’. Enquanto gritava, em fúria, a moça era arrastada em círculo pelos cabelos até se desequilibrar e a tombar no chão. Em seguida, se jogava por cima da indefesa mulher e ia lhe desferindo uma saraivada de socos e arranhões pelo rosto e braços. Quando, finalmente, fora arrastada aos trancos pelo namorado que, até então, não tivera oportunidade de defendê-la. Todo esse comportamento agressivo de Elenice acontecera rápido demais, tanto que nem ele e nem alguns seguranças do próprio banco, que ali estavam, puderam impedi-la a tempo.

Félix, já maduro, vinte e nove anos de idade, percebendo o tamanho erro que cometeria caso casasse com uma mulher daquela - cuja insanidade mental era de grandeza formidável - estaria se auto-anulando. Esperto e inteligente, o rapaz não tivera outra opção senão a de fazer com que a moça fosse encaminhada por especialistas para um rigoroso tratamento psiquiátrico. Suas contraposições aos constantes apelos do noivo e de sua própria família foram em vão. Prevalecera, por fim, o bom-senso em conjunto com a norma





que a sociedade impusera. E, para tanto, teria que passar por uma perícia médica especializada.

O noivado de Félix durou cinco anos. Começara o namoro quando a moça tinha ainda dezenove e, ele, vinte e quatro. Seu noivado, no entanto, durou muito mais do que deveria, caso fosse levado em consideração todo infortúnio e transtorno que este lhe causara. Possivelmente nem o teria iniciado. A mulher sofria de graves desvios e transtornos mutáveis de personalidade. É de conhecimento geral que todo esse mecanismo desajustado que alguém sofre pode levar ou ao suicídio, ou homicídio. Freqüentemente, as pessoas que sofrem de tal enfermidade são depressivas, inseguras e altamente perigosas quando pressentem que estão sendo ameaçadas por menor impressão que tenham. Por esses motivos, seu casamento nem chegara a ter uma data determinada, sempre ficando para segundo plano. Apesar disto, na época, comprara um terreno pensando que um dia ainda pudesse se casar com Elenice, mas sabia também que, se não desse certo consigo, por esse ou por qualquer outro motivo, pelo menos teria tentado. Assim, ficaria em paz na certeza de que nunca a enganara, em momento algum. Tais conclusões foram cruciais, mas suficientes para que lhe dessem coragem de seguir rumo ao seu objetivo. Montara um escritório de advocacia somente seu, logo que se formara, embora antes mesmo de terminar o curso já advogava em parceria com alguns colegas já formados. Tamanha eram sua honestidade e sentimento de justiça social, cobrando apenas aquilo que julgava correto e agindo de forma transparente, que conseguira fazer uma legião invejável de clientes, antes mesmo de se formar.

Félix ajudara o irmão a se firmar no cenário profissional e, logo em seguida, propiciou que Donizete se casasse. Desde cedo, eles se dedicaram aos estudos e nunca



esqueceram o que seus pais lhes falavam com freqüência. Diziam-lhes que, para conseguir ser algo ou ter alguma coisa nesse país, teria de ser apenas mediante os estudos. Somente estudando é que de uma forma ou de outra poderiam se sair bem na vida. Tal aprendizado fora assimilado pelos dois irmãos ao longo dos anos, no entanto, devido às circunstâncias adversas da vida, Félix teve de se ausentar dos estudos por uns tempos, mas nunca esquecera do aprendizado que seus pais sempre lhes transmitiram.

Os irmãos navegavam em águas limpas e transparentes assim como as águas do mar. As ondas vinham como tinham que vir. Ora altas e nervosas, ora baixas e tranqüilas. O vento batia leve, sereno, quase imperceptível era seu suave e doce toque. O negócio de ambos ia de vento em popa. Quem é que não precisaria de um advogado para ser representado no Fórum, um dia? E, quem é que não precisaria de um medicamento qualquer? Sempre haveria alguém necessitando de cuidados médicos e, conseqüentemente, de remédios. Sempre haveria alguém precisando de um advogado ou de remédios. Nada parecia deter Félix na área de Direito Civil e o irmão Donizete naquela rentosa área da Saúde. Donizete se lembrava de como surgira a idéia de como obter lucros imediatos. Lembrou-se da sugestão, em tom de brincadeira, que sua ex-cunhada Elenice, certa vez, lhe fez. Disse-lhe que, quando tivesse sua própria farmácia, devesse ser ‘amigo’ dos médicos de hospitais. Mal sabia ela que, um dia, o cunhado abraçaria sua idéia com tanto entusiasmo! Foi a partir daí que Donizete passou a colocar em prática tal idéia, sem, no entanto, deixar que o irmão-patrocinador descobrisse, pois temia sua reprovação. Começou, então, a fazer convênio com alguns laboratórios e hospitais. Os médicos receitariam os medicamentos provenientes dos laboratórios dos quais sua farmácia era abastecida e, com a





indicação médica, os pacientes procurariam a Drogaria ‘Dois Irmãos’. Vendo tamanho lucro que lhe dava a farmácia e lembrando-se daquela brincadeira feita por Elenice, achava Donizete, ‘a mulher podia até ser maluca, mas era muito inteligente. Ninguém podia negar’.

Em menos de um ano de inauguração, incrivelmente, logo os lucros começaram a se manifestar de forma assustadora. Eles já conseguiam tirar líquido, o dobro do bruto que recebiam enquanto eram empregados. Como tudo estava correndo bem, já começavam a fazer planos e previsões para o futuro. Félix ganhava também parte dos lucros e, enquanto falava em comprar uma casa na praia, outra no campo e possuir um carro zero quilômetro do último modelo, seu irmão Donizete queria viajar com a esposa e ter muitos filhos, além de, evidentemente, construir uma bela e grande casa no campo também. Na praia, por enquanto não tinha grande interesse, pois tinha alergia à água salgada. Por outro lado, tinha a consciência de que logo sua família aumentaria e teria de atender a todos os seus desejos, inclusive adquirir esse bem nessa região se assim fosse preciso. Félix era mais caseiro do que o irmão, além de ser mais materialista. Ganhava seus proventos de maneira honesta, diferente de muitos colegas advogados que conhecia. Só falava em ganhos, ao passo que Donizete era mais aventureiro e um pouco ‘gastão’, porém, sabia poupar quando percebia que assim fosse necessário.



* * *







PARTE 6 -



À

noite, antes de chegar ao serviço, de longe, Gomes já avistava um vulto à espreita, imóvel e silencioso. Sabia logo de princípio que se tratava de Letícia. A euforia de ambos era indescritível. Ela latia e pulava sem parar para cima do homem que a considerava até mesmo mais do que uma companheira. De tão adorada que era a cadela, que até podia dizer que ele igualmente assim passara a ser também para ela. A recíproca parecia existir numa fusão tamanha que se misturava entre ser humano e fidelidade canina numa idêntica parceria. Às vezes não se dava para distinguir ao certo quem era quem, numa perfeita simbiose. De fato, existia uma química que somente entre ambos era percebida e ninguém podia imaginar o grau de tamanha amizade que havia entre o animal e o homem.

No bar, a rotina era sempre a mesma. Não mudava nunca! Nem mesmo diante de tamanha felicidade que era sentida e exalada por aquelas duas criaturas podia fazer com que o hábito costumeiro daquele frio e insensível bar pudesse se desviar de seu percurso, ainda que fosse por alguns poucos instantes. Não! Tudo o que imperava nele eram a o estampado e visível lucro do avarento proprietário, a distração dos clientes que ali se agrupavam e as imprudentes conversas que eram ouvidas por seus atendentes, ora a distância, ora em participação ativa com os próprios fregueses. Sempre estavam alerta e vigilantes em todo movimento, aquele proprietário e seu sobrinho.

As pessoas dificilmente percebem ou desejam perceber aquilo que não lhes traz qualquer tipo de vantagem de imediato. A tendência é sempre buscar aquilo que realmente lhes favoreçam, seja no lado material, seja no sentimental. Estão sempre isoladas em seus



próprios problemas existenciais, cercadas e ilhadas nos múltiplos e diferentes embaraços e decepções que a vida, a todo instante, oferece para o Ser. E, a saída para tal infelicidade existencial - que é imposta de forma arbitrária a todos os seres humanos vivos, quase sempre será a inevitável e involuntária tentativa de fuga. Dessa forma, começam a pensar e a olhar somente para si de forma egoísta. E, como conseqüência, o desinteresse para com aquilo que é exclusivamente de outrem passa a ser encarado - quando é percebido - de maneira normal, substituindo, inconscientemente, o lado filantrópico que todo ser possui e que sempre deveria ser manifestado. No entanto, sabe-se que a vida não fora ou não devesse ser composta em sua origem por disputas entre os mortais humanos, ainda mais por minúsculas questões relacionadas à individualidade. Mas, por um conjunto de ações beneficentes, voltadas para o bem comum da coletividade, independente de qualquer preconceito.

Em uma das rodadas de cerveja junto aos amigos, Gomes, num momento de leve distração, percebendo um olhar meigo e indiscreto vindo daquela cadela - aparentemente faminto que se dirigia para si e para os companheiros - começou a recordar como fora dado o nome a ela. A roda quase sempre era formada pelo quarteto Gomes, Sílvio, Fabrício e Pereira. Quando não eram os mesmos, tinham como parceiros China e Linhão. Num dado momento, Gomes se dirigiu para o Linhão e perguntou se ele se lembrava daquele dia em que uma linda jovem dera entrada no Instituto, toda cortada pelas costas. Evidentemente que Linhão se lembrava, mesmo porque só fazia alguns poucos anos atrás. E, além do mais, não poderia esquecer daquele episódio! Ele, mais do que ninguém, se lembraria. Com aquele seu aspecto insano, cujas grossas sobrancelhas saltavam para fora das armações daqueles óculos fundo de garrafa; com aquela sua barba cerrada e mal-feita dando a



impressão de que estão sempre sujas. Todos esses traços marcantes e mais àquele seu jeito inquieto e estabanado de ser, não deixavam ninguém esquecer aquele dia. Sempre que olhavam para si, viam que ali, atrás daquela pessoa enigmática se escondia alguma coisa.

Logo que entrara no Instituto aquela mulher jovem, bonita e totalmente despida, com profundos cortes diagonais produzidos em suas costas por machadinha, ele foi o único que invadira o fúnebre recinto. Desesperadamente, pulou para cima da defunta, já pálida, sem uma gota de sangue e iniciou seu ato macabro. Ficou por cima de sua parte frontal até que completasse todo o seu incontrolável e ignominioso desejo carnal. Não, ele não poderia esquecer daquilo que fizera. Foi demais desprezível e irracional!

- Coincidentemente, o Gomes estava procurando um nome para dar àquela

cadela que ele havia encontrado no bar do Jacinto poucos instantes atrás, antes daquela mulher da machadinha ter dado entrada no Instituto. - Lembrou Sílvio, dizendo baixinho para Pereira e direcionando a atenção para o forte candidato a maníaco sexual, perguntando-lhe, ironicamente:

- Lembra Linhão, do nome daquela mulher que você... – mas, não conseguia completar a frase, preferindo deixar que outro qualquer a completasse. Não conseguia descrever aquela horrível cena. Mas, ninguém ousou completá-la. Era algo detestável, demais hediondo, mesmo aos olhos daqueles que estão habituados a fazer o tipo de trabalho que faziam. Como ninguém se manifestou, ele mesmo foi logo gritando como quem não gostara muito da lembrança, sem qualquer pudor e com aquela sua peculiar linguagem, dando forte ênfase a algumas palavras:

- Ora, era a bela Letícia, não se lembram camaradas? E, falo mais. Quem foi

pegar a moça, foi o Fabrício e o Pereira - Pronunciando tais palavras, cruzou seus olhos



severamente, em sinal ameaçador para Gomes e Sílvio, os quais o haviam feito se lembrar daquele horrível e lamentável episódio.

Triste lembrança a do Gomes! Por um lado, muito triste e convulsivo é saber que o nome dado a sua companheira do bar fora feito daquela forma, naquelas circunstâncias desagraveis e totalmente fora do comum. Por outro, sentia certo sabor de satisfação, pois seu nome soava forte, cheio de vida. Contrastava com tal episódio. A pureza e a beleza pareciam se fundir em um único ser. Pois, já começava a achar que o animal era humano. E, ninguém podia discordar de seus comentários em relação a Letícia porque ele a defendia fervorosamente, assim como fazia com suas idéias persuasivas quando explanava seus discurso ideológicos nos casuais momentos de delírio.

Naquele dia, Gomes não iria embora muito tarde como fizera da outra vez. Estava decidido que jamais repetiria tal imprudência. Contudo, ainda tinha certo tempo para passar junto com os colegas. Como das outras vezes, neste dia bebeu, sorriu muito e até dançou a ‘boquinha da garrafa’ em total descontração e desinibição. Alguns até ficaram surpresos com sua atitude, pois ele não tinha o hábito de se exibir, ainda que estivesse alcoolizado. E, nesse dia, no entanto, tivera a coragem de se expor sob tal efeito. Assim, todos riam e riam de suas ações, que, ao mesmo tempo em que eram cômicas, de certa forma eram ridículas. Porém, como todos dali estavam à mercê daquele vício, dificilmente algum deles saberia dizer ao certo que tudo o que faziam - desde as piadas de mau gosto entre si, até as brincadeiras mais ridículas que se prestavam a fazer - fossem voluntárias ou simplesmente forçadas, as quais pareciam possuir uma força que ultrapassava a fronteira de suas próprias vontades.





Realmente, o vício faz com que as pessoas inconscientemente percam suas identidades, causando sérios riscos para si e para os outros que lhes cercam. Enquanto se brinca para a satisfação de seus momentos ébrios - ainda que de leve - a tendência é a queda para uma fatal e trágica ação descontrolada, insana e violenta para si ou para terceiros. Por outro lado, quando assim não acontece, um sentimento não tão diferente pode ser despertado como, a total falta de confiança em si, provocando o forte desequilíbrio emocional e, conseqüentemente, conduzindo-o a um esmagador estágio de crise emocional, o que pode causar o próprio suicídio. De uma verdade se pode concluir: cedo ou tarde, todo vício leva qualquer pessoa a um patamar desastroso e fatal em sua vida.

Lentamente, para esse infeliz caminho se dirigiam os desafortunados homens daquele bar. De forma traiçoeira e eficiente, o vício parecia ser o mais poderoso vínculo que fazia com que eles se unissem a ele cada vez mais, sempre ao redor daquelas mesas e do balcão onde lhes era servido cortesmente um inocente aperitivo alcoólico. Tal costume somente servia para fazer deles escravos, submissos e, no final, levá-los à inevitável estrada da ilusão e da degradação humana. O vício do álcool ia aprisionando-os cada vez mais para dentro de suas próprias inseguranças gradativamente. Ia, transformando-os em seres debilitados, dependentes de um vício que os agarrava com a mesma eficácia de uma potente prisão de grilhões de ferro, fazendo com que sua fuga se tornasse aparentemente impossível de ser praticada. Dessa maneira, em muitos casos, quando ele não inutiliza ou degenera por completo a pessoa, deixa-a com graves cicatrizes, difíceis de serem tratadas.

Gomes, ao sair do bar - conforme havia planejado horas antes - partiu em direção para o ponto de ônibus. Os minutos e as horas iam se passando e ele se impacientava, pois





achava que estava demorando muito aquele seu ônibus. Passavam dois, três, quatro diferentes ônibus, mas o seu não passava. Enquanto um parava, as pessoas entravam. Outras esperavam a sua vez assim como ele ia fazendo e, não deixava de perceber, diferentes pessoas chegando e partindo. Somente ele não saía do mesmo lugar. A cadela Letícia não se movia. Às vezes, rosnava, como se estivesse sentindo a presença de alguém próximo, mas que não estava visível a ninguém. Rosnando baixinho, permanecia imóvel, próxima ao pequeno muro que separava a calçada de um matagal escuro, deserto. Aquele local onde estavam chegava a provocar certo medo. Não fossem as lâmpadas acesas das avenidas que se cruzavam, os faróis dos automóveis e dos ônibus que brilhavam, passando em grande velocidade, seria mais atemorizante aquele lugar. Ainda assim, ninguém parecia se intimidar. E, as pessoas, talvez pelo motivo de elas estarem habituadas a trafegar ali naquele horário, se revezavam mutuamente naquela parada de ônibus. O ônibus de Gomes dificilmente demorava de passar e, no entanto, aquela vez estava demorando muito. Apesar de seu estado de embriaguez estar um tanto acentuado, ele até sabia que chegara dentro do horário que passava um e, portanto, não conseguia acreditar que estivesse demorando tanto. Entretanto, o fato era que já estava ali há quase uma hora e nada de passar ônibus algum. Aos poucos, ele começava a se irritar, ficando impaciente e agoniado com tal demora. A cadela, percebendo o desespero de seu fiel companheiro, parecia solidarizar-se com a sua angústia e estridulava em seu canto habitual, mas sem dar um só movimento físico. Com as pernas traseiras sustentando seu corpo, parecia estar sentada, alerta e curiosamente observava cada movimento que ele dava. Num momento de indignação, Gomes resolvera, então, voltar ao bar, pois era só retornar duas esquinas e, pronto, já estaria lá. Antes mesmo de o homem chegar à primeira esquina, aconteceu o inesperado. Dois homens, armados



com armas de fogo, calibres trinta e oito, saltaram a sua frente. Não houve tempo para qualquer reação, nem por parte dele nem da sua companheira. Pois, eles estavam escondidos atrás daquele muro, próximo à parada de ônibus em que estavam e, através de uma pequena fresta, vinham observando cada passo que o homem e a cadela davam, pegando-os, portanto, desprevenidos. Estavam decididos no que queriam. Tudo o que um deles dissera foi que Gomes era o homem e que devia morrer. Latidos e vários tiros se misturavam aos sons dos barulhos de motores dos carros que passavam velozmente próximo a eles. Ainda deu tempo de a cadela bravamente saltar para cima de um dos homens, o qual não se intimidou e continuou atirando sem parar um só instante. Durante os tiros, um deles gritava furioso para Gomes, “cagüeta’ tem que morrer, meu chapa!” E, iam descarregando, impiedosamente, seus revólveres em direção àqueles dois indefesos seres. Gomes fora atingido no abdômen por cinco vezes, seguidamente. Letícia levou o primeiro tiro no peito ainda em pleno vôo. Em seguida, mais um na barriga e outro na cabeça. Caída, instintivamente e preocupada, olhou para o seu companheiro que estava caído ao seu lado e, fechou os olhos. Novamente, matreira, com grande dificuldade, abriu-os, novamente, permanecendo abertos por algumas frações de segundo e os fechou bem lentamente, querendo dizer, ‘estou bem’. Foi um total de doze tiros, dos quais oito foram certeiros e quatro se perderam no espaço. Vendo-os caído e suas armas sem mais balas, os dois homens correram daquele lugar em disparada. Durante e após os tiros, Gomes podia ouvir os berros nervosos daqueles homens que iam fugindo, dizendo que ele tinha que morrer. Em seguida fechou os olhos, desfalecendo. De imediato, ao ouvir o barulho todo, alguns de seus colegas, Sílvio, Pereira e China, além de Jacinto, saíram em disparada para





aquele local, mas tudo já estava terminado. Em seguida, apareceu Linhão. Mansamente, se aproximou de Gomes que estava caído de bruços e perguntou, em tom baixo, para um de seus companheiros se o homem ainda estava vivo, verificando seus pulsos e tentando abrir um de seus olhos. Toda a ação deles acontecera rápido demais. Vendo o colega no chão, derramando muito sangue, trataram de parar um veículo e o levar para o Pronto-Socorro mais próximo. Quanto a Letícia, constataram que nada podiam fazer, exceto levá-la para mais próximo do bar, cobri-la com jornal e aguardar o dia amanhecer para a partir daí dar continuidade à vida, aos procedimentos de praxe.

A caminho do socorro imediato, já consciente, Gomes não parava de perguntar em tom fraco e delirante de sua companheira Letícia. Estava mais preocupado com ela do que consigo mesmo. Não se importava se o que estava passando era grave ou não, mas sua preocupação exclusiva estava centrada no animal. Queria saber dos amigos com quem a cadela ficara e qual era o seu real estado. Se ela ficaria bem e por que também não a trouxeram consigo. Eram questões que nem precisavam ser respondidas, pelo menos naqueles instantes, já que dizendo tais coisas o pobre homem ia, sem força, desfalecendo novamente. Já no Pronto-Socorro, percebendo a gravidade de seu estado, trataram de transferi-lo para o hospital ‘Thaíde Júnior’, pois lá tinha mais recursos humano e físico.

Sedado e sob os cuidados médicos, divagava em pensamentos adormecidos e repletos de recordações que não o deixavam fugir. Passaram-se os anos e o tempo fora implacável para consigo. Pensava que o mesmo tivera sido mais cruel para si próprio do que para com os amigos, pois um homem com apenas quarenta e nove anos de idade, como ele, mais parecia ter sessenta. Por um lado, sabia que muito havia contribuído para que assim fosse. Tivera uma vida desregrada, sem limites, totalmente voltada para o puro e



falso bem-estar momentâneo. Passara altas horas no bar do Jacinto e, senão bastasse, também naqueles bares onde ficavam pertos de sua casa. Nos tempos de faculdade, quase sempre cabulava as aulas também em nome de companhias de bares que ficavam nos arredores. Aos sábados, então, nem se falava! Somente entrava nas aulas se tivessem sido marcadas provas para aquele dia. Talvez tudo isso tivesse contribuído para que, logo no primeiro ano do curso de Direito, carregasse três dependências de matéria, o limite máximo para não ter de parcelar o curso. Contudo, isso foi o suficiente para o jovem trancar a matrícula.

O homem divagava em quase tudo o que fizera. Das coisas boas que passara - o que foram poucas - quase não passavam nítidas em seus delírios. De praticamente todos os fatos tristes e dolorosos por que passara as imagens lhe chegavam com certa nitidez. Elas lhe eram arrebatadas em suas recordações com inquietude e intensidade. Em um desses seus arrebatamentos, via-se perdido nas ‘lembranças de um passado’ distante ainda moleque de seus dezesseis anos quando brincava nos brinquedos infantis da escola, já tarde da noite. Infringia as normas com alguns de seus colegas mais próximos como, Mateus, Gil e, não podia deixar esquecer, Clóvis. Ele acreditava que aquele dia ficaria presente em suas vidas como uma ferida que não conseguia cicatrizar, assim como uma fatalidade é acometida em família e nunca mais a esquece. Assim, ele ia divagando no tempo: *Ao perceberem a presença sorrateira daquela viatura se aproximando, cada um deles pularam aquele muro alto da escola para o lado de fora na tentativa de fugir, já que sabiam estar fazendo algo errado. Estavam dentro de um local, embora público, fechado naquele horário e que não permitia invasões. Apesar de divertida a cena, era muito perigosa, pois ao pularem o muro, deram de cara com uma viatura e, o guarda gorducho corria atrás dele e de seus colegas



com uma arma em uma das mãos, enquanto que com a outra, segurava as suas calças para não caírem. Em disparada, atrás deles, gritava sem parar para que parassem. Foi divertido, mas muito perigoso. E se ele resolvesse atirar num momento súbito de descontrole emocional? Fatalmente um ou mais deles não sobrevivessem.

Quando crianças cometem-se ações que dificilmente são imaginados o tamanho dos riscos de suas conseqüências. Simplesmente acontece sem possuir o leve toque de arrependimento, quer de sentimento de medo quer de dúvida. Estão dispostas a praticar qualquer tipo de travessura em qualquer tempo ou lugar.

E aquela festa organizada e idealizada por Clóvis? Não poderia deixar de passar por suas imagens, uma vez que também muito marcara aquele dia, aquele tempo: era um sábado e fariam uma grande festa. A festa que nunca fizeram em todas as suas vidas... Como seus pais haviam viajado a fim de visitar um de seus tios, aproveitara aquele dia para chamar os colegas para fazer muito barulho e se divertir pra valer.

Haveria muito ‘Rock’; guitarra improvisada de cabo de vassoura; muitos discos de vinil levados por cada um; caldinho de feijão; pães franceses fatiados; dois garrafões de vinho tinto e um seco; três garrafões de pinga de alambique: dois de amarelinha e uma pura; bolinhos de pinga e, evidentemente, muitas garotas. A festa começou nove da noite e foi terminar somente às seis da manhã do domingo. Todos se divertiram muito! Mateus não parava de tocar guitarra de mentira e com um cabo de vassoura nas mãos, simulava tirar solos de guitarra. Comia muito pão fatiado molhado no caldo de feijão, além de beber muita pinga e vinho. Gil não parava de gritar, ‘Rock na veia, moçada!’ E bebia e comia os bolinhos de pinga. Além de, também, sempre ser visto com um daqueles copos grandes de





chopes, ora cheio de vinho ora pinga pura. Quando não, suas mãos estavam segurando um violão velho e faltando as cordas lá e ré. Ainda assim pensava estar tocando, tentando convencer a todos que estava fazendo um desempenho jamais feita. Na ‘pick-up’, tocava aquela música pesada do Black Sabbath, ‘War Pigs’ e tentava reproduzi-la naquele violão velho, faltando cordas e sem afinação. Clóvis parecia ser o mais esperto dos quatro: comia e bebia pouco, divertindo-se não menos que os três. Dançava, sacudia a grande cabeleira para os lados e apontava para o alto - gritando rock sem parar - os símbolos identificadores do rock, os dedos indicador e mínimo em forma de chifre. E, pulava, pulava e gritava, viva o rock! O engraçado era a capacidade que ele tinha de expor suas opiniões, suas próprias teorias. Pois, sempre quando lhe perguntavam por que nunca completava a frase com o ‘Roll’, lhes dizia que gostava somente de Rock, sem o Roll. Porque ‘Rock and Roll’, achava ele, o som desse estilo era muito fraco. Definitivamente, tinha que ser somente Rock, sem o tal do Roll. Não somente pulava e gritava, mas sempre era visto pelos cantos da casa com uma garota diferente, a cada intervalo de hora. Aproveitava da boa presença que tinha, com seus cabelos longos e louros, olhos da cor do céu de verão, além de ser alto e possuidor de um físico invejável a qualquer um dos três. A natureza realmente fora demais generosa para consigo! Sabia disso, portanto aproveitava das vantagens que tinha como ninguém. Como era um filógeno nato, ia curtindo muito aquilo que fazia. Evidentemente que todos ficaram com uma ou outra garota naquela madrugada, mas não com a mesma freqüência e variação com que ele fazia.

O dia seguinte ficara marcado com muita bagunça por toda a casa de Clóvis. Pelos quartos e cantos ainda podiam ser visto os resíduos da festa. O violão velho e quebrado agora estava mais quebrado ainda. Agora faltavam quase todas as cordas. Aos poucos elas



foram sendo quebradas devido aos fortes acordes das batidas de rock que Gil lhe aplicava. O cabo de vassoura do Mateus também fora partido ao meio, em imitação às desvairadas performances dos grandes astros do rock. Por cima da pia havia panelas e vasilhames sujos e garrafões de pinga e vinho vazios. Apenas um ficara pela metade. Copos de vidro espalhados pelos cantos dos quartos e da sala, além de copos de papéis amassados e jogados por todos os lugares. As duas camas dos dois quartos ficaram reviradas e os lençóis desarrumados; alguns ficaram amontoados pelos cantos, sujos de farelos de bolinho. Os travesseiros ficaram sujos de vinho e cheirando forte a álcool. Suas fronhas se espalharam pelas camas e chão. Bolinhos esfarelados, vinho derramado por cima da pia, copos de vidro quebrados e espalhados pelo chão, alguns discos de vinil quebrados perto do aparelho de som, enfim, muitos objetos fora de lugar como, sofá, mesa e cadeiras.

Os pais de Clóvis iriam chegar pela tarde daquele mesmo dia e nem imaginavam o que pudesse ter acontecido durante sua ausência. O fato é que jamais iriam saber. Pois, os garotos - apesar da indisposição causada pelos efeitos da ressaca - arregaçaram as mangas e partiram para a grande batalha do ‘day after’. Com a ajuda de todos, tudo ficou limpo e em seu devido lugar em instantes. Começaram a esfregar o chão da frente da casa com muita água e sabão e só foram terminar no quintal do fundo.

Aquela festa ficaria para a história de vida de todos eles, pois além da extraordinária diversão que ela proporcionou a todos, foi exatamente ali onde os dois colegas, Mateus e Gil, conheceram suas futuras esposas, bem como o próprio Gomes. Contudo, somente Gomes e Mateus ficaram com as mesmas até os dias atuais. Apesar de ter a oportunidade de ficar com várias garotas na festa, Clóvis ficava com uma e outra por mera diversão. Não quisera se envolver mais seriamente com nenhuma delas. Achava que era muito novo e que



devia aproveitar mais a vida. Tanto aproveitara dessa forma, que acabou permanecendo na casa dos próprios pais até hoje.

Mateus passou a gostar de Milena, uma colega de ginásio. Durante o período de escola, nunca lhe ocorreu que um dia aquela garota pudesse despertar em si um sentimento diferente da simples amizade. Nunca teve um envolvimento maior consigo a não ser a relação de amizade que dizia respeito somente às tarefas de trabalho escolar. Seus limites não ultrapassavam dessa barreira. No entanto, ainda estão casados atualmente e até dois netos possuem. Milena nunca escondera sua vontade de ter muitos filhos desde os tempos de namoro. Era dócil e possuía invejável fidelidade a qualquer pessoa que fosse capaz de conquistá-la. Sua fidelidade se assemelhava à da cadela Letícia. Para ela, uma amizade verdadeira não tinha preço e era considerada de muito mais valor do que qualquer jóia. Não era de se maquiar como as outras meninas de sua idade e sempre estava em seu estado natural. O máximo aonde chegava era passar um batom leve e discreto. Ela era uma pessoa formidável, além de muito bonita. Sem dúvida, Mateus dera muita sorte em ter encontrado uma pessoa como Milena. Formosa por nascença Indubitavelmente, suas qualidades psicológicas superavam qualquer problema físico que pudesse mencionar de si. Tinha uma leve deficiência na perna esquerda que a fazia puxar para esse lado, sutilmente. O estrabismo do olho direito não era evidenciado à primeira vista, somente após o convívio consigo era percebido. Porém, ainda assim, o mesmo lhe dava o ar de uma pessoa diferente, especial. Mateus não tivera dúvida! Desde os primeiros anos de namoro consigo, ele esteve convicto de que ela seria a mulher ideal para ser a mãe de seus futuros filhos.







A festa dera ao Gil, enfim, coragem de declarar seu amor a Lia. Uma garota extrovertida, muito falante. Era do tipo de menina que qualquer um gostaria de namorar. Morena, da cor brasileira, de cabelos longos e negros escorridos até a cintura. Seus cabelos eram tão negros e lisos que até reluziam quando ficavam à luz do sol, formando uma cor azulada e cintilante. Sua imagem era a cópia perfeita de Mortiçia do seriado de televisão ‘Família Adams’. Colocasse as duas lado a lado diria que eram mãe e filha. O Gil não tinha lá grandes traços de beleza, mas sua inteligência fazia superar essa deficiência. Tinha uma memória privilegiada, além de possuir aptidões diversificadas. De tudo sabia um pouco. Se houvesse uma bicicleta para arrumar, prontamente mexia aqui, ali e, pronto, já estava consertada. O mesmo se dava para serviços de instalação elétrica, hidráulica, mecânica de veículos ou, até mesmo, dirigir um time de futebol. Não foi à toa que se aposentara dirigindo o ‘Clube Atlético Santista’. Seu casamento até que durou bem. Ele e Lia ficaram casados durante quase dez anos. O suficiente para lhes dar um casal de filhos. Com a separação de ambos, o pai não deixou de vê-los na própria casa da ex-esposa. Fora uma separação difícil para todos, mas necessária. Os dois não estavam se dando muito bem maritalmente e acharam que devessem por um fim naquela relação que aos poucos ia se tornando insustentável. Assim, imaginavam que o divórcio fosse a saída final. Mas, a amizade de ambos prevaleceu.

Gomes estava feliz em seu casamento. Tinha um emprego razoável e estável. Sua mulher era por excelência, companheira de todos os momentos e seus filhos já tinham sua própria independência. Estavam todos bem encaminhados para seguir suas vidas. Agradecia aquela festa patrocinada pelo Clóvis há vinte e nove anos e ressentia o fato de o colega não ter encontrado sua definitiva companheira. No entanto, sabia ter sido uma escolha somente



sua e que ninguém podia ter interferido.

Ainda em suas súbitas e traiçoeiras imagens refletidas, Gomes recordava aquele dia, não tão distante, em que o Linhão quase sofreu as penalidades aplicadas pelo Instituto onde trabalhava. Pois, como somente havia indícios - não tendo provas suficientes para incriminá-lo no caso Letícia - fora transferido de seu setor. Para ele, aquilo foi demais ultrajante, não deixara de ser uma punição, de certa maneira. Jamais podia imaginar que tal coisa lhe fosse acontecer. A partir dali, passou a agir de modo estranho para com todos que lhe cercavam, principalmente, para com Gomes e Fabrício.













* * *

















PARTE 7 -



A

pós exatamente dez meses de intensivo e absoluto cuidados médicos, Gomes finalmente pôde se safar da gravidade que estava passando. As únicas seqüelas herdadas foram a exuberante barriga que lhe incomodava quando sentava ou se deitava além de as constantes queixa de dores que sentia não somente em uma de suas pernas, mas, agora, também nas costelas, que lhe doíam sempre que fazia o menor esforço.

Durante toda a sua estada naquele hospital sempre recebeu visitas de seus familiares e amigos. Sua esposa sempre que possível esteve presente ao seu lado; Félix, Donizete e sua esposa Alzemira o visitavam toda semana. Ela nunca o deixava ir vê-lo sozinho. Seus colegas também faziam o mesmo, revezavando-se. Quando iam Fabrício e Pereira, não iam Sílvio, China e, vice-versa. Linhão era o único que não aparecia, pois dizia que sentia certo mal-estar quando via pessoas doentes, prostradas em uma cama. Contrariava, assim, de certa forma, aquilo que costumeiramente fazia, pegando defuntos, o que era pior. Porém, logo se defendia dizendo que aquilo que fazia era mais fácil, pois enquanto estão mortos, simplesmente estão mortos. Dizia que era diferente daqueles que se encontram em estado piedoso ou moribundo em hospitais. Enfim, todos aqueles que lhe eram próximos nunca o abandonaram, nem mesmo o Jacinto e o Peleco. Gomes era muito querido por todos e, agora, mais do que nunca ficava ainda mais nítida tal constatação.

Faltando pouco tempo para sair do hospital, ele percebeu a ausência de sua nora Alzemira, bem como certa inquietude de seu filho. Ele não vinha mais acompanhado por sua esposa há quase um mês e quando lhe era perguntado sobre ela, dizia que ficara em



casa cuidando dos pequenos Carlos e Afonso, desviando a conversa rapidamente. A partir de então, Gomes passara a ficar pensativo e sem entender a razão daquele mistério. Pois, conhecia o filho e sabia que havia algo escondido por trás de suas furtivas respostas. Sabia, ainda, que aquele não era o momento ideal para questionamentos mais acirrados e que logo descobriria ao certo o que estava acontecendo.

Ao receber alta, ele pôde, já em casa, descobrir todo o segredo que rodeava e desassossegava seu filho. Já não se podia esconder mais de si aquele mistério todo. Assim, Félix fora forçado a passar toda a desagradável notícia ao pai. Achando não ter mais motivos para esconder aquele fato, mesmo porque o pai já estava bem de saúde, foi logo lhe falando da doença que a cunhada subitamente sofreu e que médico algum conseguiu descobrir sua origem. Alzemira começou a sentir tremores e calafrios pelo corpo e fortes dores na altura do rim. O frio que sentia era tanto que a mulher até rangia os dentes sem parar, apesar de estar fazendo um tempo bom e fresco. A temperatura de seu corpo subira assustadoramente. Havia dias que chegava a trinta e nove e meio de febre. Seu corpo suava muito, chegando a molhar toda a roupa do corpo como se tivesse pegado uma forte chuva. Ao levá-la para o mesmo hospital do pai, imediatamente trataram de interná-la. Ela ficou no andar que cuidava de doenças relativas ao rim, no décimo andar, apenas um andar abaixo de onde o pai havia sido internado. Colocaram-na em dois tipos de soros: um de hidratação e, outro, um composto de antibióticos. Paralelamente, fizeram todos os exames específicos e não conseguiram encontrar a origem do problema. Não conseguiam compreender! Ela não tinha infecção na urina e, no entanto, estava com aquela grave doença no rim. Segundo os médicos, para se ter esse tipo de infecção seria necessário que houvesse, antes, uma





infecção na bexiga até que se chegasse a essa região. Mas, esse não foi o caso dela. Simplesmente a tal doença apareceu ali sem qualquer explicação. A partir de então, ela se alastrou para outros órgãos de seu corpo como, fígado, intestinos e pulmão. Sucedeu-se, então, falência múltipla de órgãos. Daí, o pai pôde concluir por si, o que houve, levando uma das mãos à cabeça num sentimento de profundo desalento.

Gomes se olhava no espelho e via refletidas as duras marcas em seu rosto deixadas pela implacável ação do tempo. Um rosto inchado, deformado em sua frente, fazia dele uma criatura desprezível e incapaz. Sempre quando se levantava pela manhã, sem as próteses superior e inferior, via os dentes que faltavam. E seus poucos fios de cabelo espalhados pela testa lhe davam um ar mais senil ainda. Somados a esse ingrato visual, ainda tinha aquela sua saliente barriga - que não chegava a ser indecente - mas que sempre estava à mostra a todos que chegavam para visitá-lo em casa, dando-lhe o aspecto de um homem inutilizado, desleixado. Nunca foi seguidor de igreja alguma, sequer havia um Deus que pudesse depositar alguma esperança de salvação. Nem para manter a pura tradição popular, o catolicismo existia em sua vida. Os longos anos de sua existência foram suficientes para lhes ensinar - a si e a todos os membros de sua família - o caminho voluntário de seguir suas vidas como melhor conviesse a cada um. Nesse ambiente de total ceticismo todos seguiram seus destinos sem permitir que qualquer interferência religiosa pudesse ocorrer em suas decisões. Como estavam num país onde existia liberdade de poder se fazer quase de tudo, quase tudo se fazia. Haja vista, a tal de liberdade fora conquistada após longas décadas de regime militar que tanto assolara o país. Talvez por esse motivo, as pessoas não vissem Gomes e o seu pessoal de forma desrespeitosa por não acreditarem na força suprema de um Deus, uma vez que todas elas acreditavam existir. A livre vontade, a



total liberdade de expressão das pessoas estava presente nos domínios desse novo mundo. Desse mundo oriundo de um regime totalitário onde as pessoas sequer podiam expressar qualquer indignação sem ser punido. Tinham de aceitar qualquer imposição vinda dos poderosos, de forma vertical e contundente. Contudo, com esse advento de transformação social e política que veio se arrastando desde mil novecentos e oitenta e oito e - que continuou a mudança até os dias atuais - quando a posse direta de civis se firmou em oitenta e nove. Mas, que ainda se mantêm vinculados ao Sistema, ora ordenado e, seus interesses passaram em maior grau a atender mais os particulares do que realmente devesse atender, ou seja, à comunidade. Se por um lado, tal transformação social chegou para a satisfação de muita gente, por outro, serviu mais para confundir e alienar mais ainda a população. O país se transformou profusamente num caldeirão caótico e libertino, onde, Nele, toda a verdadeira essência de valores morais e éticos do cidadão foi deturpada. Todos os valores ficaram invertidos. O que era certo passou a ser errado e vice-versa. A casa tornara-se um lugar de desabrigo e desconfortável de se viver e nela não se tem mais o cuidado necessário de ser um lugar aprazível.

Havia momentos que alguns colegas da família até mesmo duvidavam de suas próprias crenças, pois Gomes sabia defender com veemência tanto suas convicções sociais e políticas quanto às religiosas. Quando tinha uma discussão sobre esse tema, seja com alguns amigos, seja com um grupo de curiosos que se aproximava para vê-lo falar, em um desses seus momentos de delírio, ouviam-no falar em Deus como sendo o mesmo, o próprio Tempo. Dizia que o Tempo, sim, era Deus. Pois, Ele é o que provê e o que subtrai; recompensa e pune. Somente ele dita a as regras e incondicionalmente faz valer ou não a





vida. Ele é invisível quando se pensa nele, mas real quando se pára para observar as marcas que ele deixa, sem piedade. Suas marcas são dolorosas quando se cometem os desvios daquilo que se tem como regra que precisa ser obedecida. Suas marcas são boas quando se tem o deleite nos momentos em que a vida simplesmente não cobra nada de ninguém. Ele passa vagarosamente por todos e todos passam rapidamente por Si, sem, no entanto, nunca envelhecer ou morrer. Ele é o único ser que não envelhece ou morre. Varre felicidades falsas e momentâneas, curando, cicatrizando feridas e, em conflito com sua própria existência, jorra fúria de dores e sofrimentos humanos. Portanto, para Gomes, Deus é esse onipotente, formidável e imortal ser, que sempre existiu, existe e existirá para todo o sempre. O Tempo, esse ser que nunca conheceu e nunca precisou de um pai, somente existe porque os humanos mortais existem. Aliás, algo só existe porque alguma outra coisa existe para provar sua existência real. Em qualquer parte que se vá, lá está ele, de prontidão, veloz como o raio ou o trovão. Nunca, em momento algum, se intimida ou deixa de fazer aquilo que lhe é intrínseco. Sempre está alerta, vivo, poderoso. Por mais que se tente driblá-lo, jamais conseguirá fazê-lo. Cedo ou tarde, ele majestosamente mostrará sua estupenda e colossal força de destruição e dor através da sua pura passagem.

A aposentadoria do Gomes estava preste a sair, só faltava ser publicada em Diário Oficial, já que seu filho Félix vinha acompanhando a mesma e estava sempre alerta nos prazos. O que os deixava mais eufóricos era o fato de saber que ela se daria no mesmo mês em que o pai completaria cinqüenta anos.

Imediatamente, Félix decidiu fazer uma grande comemoração nesse seu dia. Uma festa que entraria para a história, assim como aquela de vinte e nove anos atrás. Sabia que não faria igual, pois possuíam outros valores ideológicos e, conseqüentemente, eram outros



tempos. Pois, com o passar dos anos, houve uma pequena, mas significativa ruptura de gostos, amizades e ideologias. Não que o pai houvesse desistido de seus ideais ou de seus ‘Roks’, mas seria uma festa patrocinada pelo filho e pretendia fazê-la da melhor forma eclética possível. Dessa forma, Félix e o irmão alugaram um enorme salão destinado para esses tipos de eventos.

A grande festa de homenagem ao pai estava se aproximando. Faltavam apenas quarenta e cinco dias e eles teriam de correr contra o tempo para começar a providenciar os primeiros preparativos. Com todos inseridos num mesmo objetivo, puderam, rapidamente, organizar e contratar diversas empresas especializadas no ramo. Queriam imortalizar aquela data que imaginavam ser tão importante para o Gomes e a todos os participantes. Talvez pelo fato de sempre ouvir dizer de seus pais que, ambos se conheceram na festa idealizada por Clóvis e que ainda permanecem juntos, até então. Aproveitariam, agora, aquele momento que seria de grande euforia e regozijo para também perpetuar e serem igualmente lembrados algum dia.

Enquanto todos estavam preocupados com a organização da festa, num dado momento, não se deram conta da ausência dos garotos, Carlos e Afonso. Somente foram sentir a falta de ambos, pela tardinha. Passaram, a partir de então, a procurar pelos garotos na casa de seus colegas, sem, no entanto, conseguir obter qualquer resposta a respeito deles. Para surpresa de todos e até deixando-os um tanto confortados, eles não estavam sozinhos. Dois de seus colegas também haviam desaparecido juntamente com eles. Em desespero, Donizete, os pais dos outros dois meninos e mais um grupo de pessoas que se solidarizaram com o fato, começaram a busca. A princípio, nem sabiam por onde devessem começar, mas, por instinto, todos se dividiram em pequenos grupos e cada qual partiu para um lado.



Nas praças, nos parques infantis, no pequeno bosque que havia ali perto e até na igreja, foram perguntando às pessoas e ao padre se haviam visto suas crianças. Exaustos de tanto procurar, repentinamente, ocorreu outra idéia. Poderiam ter ido até o lago, o qual ficava a menos de uma légua de suas casas. Assim, não hesitaram. Como as horas avançavam, o tempo ia fazendo tudo escurecer e, para completar, ainda ameaçava um temporal, assim, saíram em disparada em busca dos mesmos. Chegando lá, tudo o que viram foram materiais escolares e roupas jogadas pelo chão. Imaginavam ter acontecido alguma tragédia com os mesmos, visto que sabiam que era um lugar muito perigoso e que algumas crianças haviam morrido ali. Achavam tê-los encontrado, porém uma grande angústia invadia seus corações. O tempo estava fechado e começava a cair fortes pingos d´água. Diante da amargura, gritavam sem parar pelos seus nomes.

Seus pais mal podiam imaginar que na saída da escola, Carlos, Afonso, João e Ricardo combinaram, aproveitando aquele calorão que fazia, nadar naquele lago chamado, ‘Lago da Pedra’. Lá, toda criança gostava de ir, pois seu formato angular, além de toda a sua extensão ser circundada por uma enorme pedra, atraía qualquer criança. Suas águas pareciam ser limpas. A única preocupação que deveriam ter, era onde ele fazia a curva do ‘u’. Pois, freqüentemente, ali, exatamente naquele lugar, morria alguma criança. Em volta do lago, as crianças contavam histórias que diziam ter ouvido dos mais velhos. Uns diziam que a pedra do lago era oca e que dentro existia uma caverna cheia de esqueletos. Outros, falavam que não. Que dentro dela havia um fabuloso tesouro, daqueles parecidos com os dos piratas. Assim, com informações tão diferentes, achavam que deviam chegar a um consenso e, para isso, teriam de verificar o que realmente havia lá dentro daquele local tão misterioso. Deixaram o material escolar e suas roupas jogadas pela margem e partiram



rumo ao desconhecido. Chegando lá, constaram que a pedra era realmente oca. As águas nivelavam a pedra por uma parte que fazia com que desse a impressão de ser a cabeça de um monstro. Havia dois buracos por cima e duas grandes cavidades laterais que não se sabia para aonde iam. Ao entrar em uma delas, os garotos ficaram surpresos com o lugar que viam e - apesar de não possuir saída - não haver tesouro ou esqueleto algum, ainda assim ficaram maravilhados. Passaram, então, a brincar em sua volta, esquecendo-se por completo das horas e sem dar conta do mau tempo que já fazia.

Ouvindo os gritos daquela gente toda à margem, pouco distante, as crianças logo passaram a acenar e a gritar, dizendo que estava tudo bem e que já iriam até o seu encontro. Foram momentos de muita aflição a todos, porém o que importava era que todo o mistério estava solucionado e as crianças em segurança.

Passado o susto, voltaram suas preocupações para a festa. Não poderiam esquecer absolutamente ninguém. Todos os convidados foram minuciosamente anotados. Até Elenice fora lembrada, embora ainda sofresse seus transtornos de súbitos ataques. Fazia alguns anos que sua mãe a tirara do hospital, pois sabia que não obtinha melhora alguma, exceto somente quando permanecia sob efeitos de drogas. Assim, seu abalo emocional, agora parecia acontecer com menos freqüência do que antes, porém, quando acontecia, seu estado emocional se desnudava tanto que o físico refletia um ar de total penúria e amargura. Visivelmente seu corpo se transmudava e lhe imprimia uma imagem sépia e opaca, sem vida, desfigurada. Nesses momentos, a mulher parecia ter vinte anos a mais do que realmente possuía.

A mulher devia estar sedada o tempo todo. Pois, sempre quando tinha algum distúrbio, como o prenúncio de um possível ataque agressivo, vinha-lhe um



comportamento diferente daquele que seria habitual ou considerado normal. Parava por alguns instantes e - como uma força que parecia não vir de seu próprio interior - se autocontrolava. No entanto, sua figura em si fazia qualquer um se assustar mais do que mesmo a própria ação desgovernada e abalada que pudesse ter sido desencadeada. Quando tal comportamento começava a querer se manifestar, assim parecia a mulher, antes, durante e pouco depois: velha, desintegrada, de aparência assustadora, destituída do seu próprio corpo. Nesses momentos de desequilíbrio e, passados alguns segundos, às vezes até podendo levar alguns minutos, voltava-se a todos com satisfação e alegria procurando saber onde ela havia parado. Sua recordação até mesmo de um passado recente, ficara comprometida. Havia muita dificuldade de se lembrar o que havia acontecido, segundos antes. Félix sabia desse seu novo problema, pois - apesar de ter sido um dos provocadores de seu isolamento - nunca se negara em receber notícias sua. Pelo contrário, constantemente pedia informações a sua mãe ou a suas tias a fim de saber de seu estado, quando passava muito tempo sem ir vê-la. Quando não conseguia informações diretamente delas, ligava para o internato e prontamente lhe diziam o que queria saber. E, quando a visitava, logo que o avistava, de longe, ela corria ao seu encontro gritando, ‘meu amor, meu amor’. ‘Você voltou! Sabia que você ia voltar! Por que demorou? Por que demorou tanto, meu querido!’ Dizendo essas frases, em frenético entusiasmo, pulava em cima dele, grudava em seu pescoço fortemente e o beijava sem parar.



* * *





PARTE 8 -



P



ortanto, até mesmo Elenice com sua mãe e duas tias - ambas divorciadas já há algum tempo - foram convidadas para participar da festa. Suas tias sempre as acompanhavam onde quer que fossem. Sua mãe era uma senhora viúva que perdera o marido quando Elenice tinha somente três anos de idade. Era uma mulher já idosa e precisava, assim como a filha, da companhia de alguém, principalmente, quando precisasse sair.

Todos os colegas do Gomes foram convidados, inclusive os de infância, Mateus, Gil e Clóvis, pois fizera questão que seus filhos os chamassem. Foi um pouco difícil encontrar o endereço de todos, já que nenhum deles se encontrava no mesmo endereço. Mas, com a informação de uma empresa onde trabalharam aqui e outra ali, aos poucos, foram sendo encontrados. O que mais deu trabalho foi o endereço do Clóvis, uma vez que se mudara com sua mãe para um Estado do Nordeste sem deixar muita pista. Após a morte de seu pai, há mais de dez anos, decidira, ele e a velha, viverem afastados dos grandes centros urbanos das capitais. Somente conseguiram localizá-lo, graças a brilhante idéia dos irmãos em procurar junto a imobiliárias e à prefeitura do bairro onde moravam.

Quase todos os colegas do Instituto onde Gomes trabalhava receberam o convite com arrebatamento e grande euforia. Fabrício, Sílvio, Pereira e China. Jacinto fecharia seu bar naquele dia em nome da sólida amizade que tinha pelo amigo e levaria, também, seu



sobrinho Peleco. O único colega que hesitara ir, mas logo fora convencido por alguns colegas, foi o Linhão. Pois, apesar de sua relutância e não permitindo que seus colegas soubessem do verdadeiro motivo, talvez por essa questão, acabou indo. Por outro lado, quem preferiu não participar daquele evento e continuou teimoso em não aceitar o convite, não indo à festa, foi mesmo o Peleco. Alegara ao seu tio que sairia com alguns colegas para uma outra ‘balada’, que não podia perder de forma alguma e que estava programada para aquele mesmo dia.

A festa de Félix prometia uma grande homenagem ao pai e todos prontamente se engajavam com muito ardor e dedicação. Cada dia que passava, ela ia aproximando mais as pessoas num clima de envolvente calor e fraternidade jamais visto. Todos pareciam estar envoltos ainda no mesmo clima de alegria de Natal, que já havia passado há dois meses e que sempre propicia tal frenesi entre as pessoas. Até mesmo naqueles que não se importavam com tal data, como era o caso da família Gomes. Agora, no entanto, não era natal, mas tinham a pretensão de fazer com que aquela data fosse tão importante quanto.

Estava chegando o grande dia. Era vinte e dois de fevereiro de dois mil e seis, às quatro horas da tarde. O Tempo fazia chover muito e todas as ruas da redondeza iam ficando alagadas, assustadoramente. Guarda-chuvas e capas não seguravam mais o aguaceiro e subitamente não mais se via quase ninguém na aflição da tormenta das águas. O céu, fechado por um negro medonho querendo dizer que aquele seria o dia do senhor, simplesmente provocava angústia e calafrios. Os carros iam ficando todos ilhados nas ruas, avenidas e vielas. A chuva ia se transformando em um terrível e medonho temporal. Ela estava implacável e batia nos telhados estrondosamente, misturando-se com os temidos raios e os fortes trovões com a mesma força e intensidade de ambos. Deus, o





tempo, como dizia Gomes, parecia existir mais forte e convincente agora mais do que antes. Parecia mostrar sua fúria, seu imenso poder de destruição e pavor a todos, aos novos e aos decrépitos mortais. Nada podia deter sua majestosa natureza celestial. Sua natureza inanimada fazia ser vista por toda a cidade. Era uma natureza viva, lúcida, sabedora do que fazia. Parecia querer exibir-se, demonstrar que Ela, somente ela seria capaz de causar tamanha ruína. Ela assustava e fazia com que Gomes e a todos arrepiassem de pavor. Os raios dos relâmpagos pareciam seres animados e caíam cortando, em fúria, toda a eletricidade. As árvores que eram atingidas, logo se desintegravam e viravam cinzas molhadas e diluídas instantaneamente pelas torrentes de água. Junto aos raios, ouviam-se os estampidos dos trovões anunciando ainda mais destruição e calamidade. Em toda a história da Humanidade ninguém se lembrava ter ouvido falar em coisa parecida. As pessoas começavam a murmurar e gritar entre si, apavoradas, que havia chegado o ‘Armagedom - o dia do grande juízo final’, embora de forma repetitiva, pois muitos acreditavam já ter havido em tempos antigos um dilúvio de dimensões semelhantes e, agora, estaria sendo repetido o mesmo. Lembrava-se das profecias bíblicas e era falado que Deus, no final dos tempos, iria pôr termo em todas as coisas e que não ficaria pedra sobre pedra abaixo de Si.

Em toda parte, o ódio e a devastação em massa parecia existir e não mais terminar. Sem poder sair de onde estavam devido à poderosa destruição que se fazia fora de seus abrigos, as pessoas ajoelhavam-se e rezavam freneticamente, pedindo piedade, salvação as suas pecadoras e vis almas. Não viam o seu Deus, mas sentiam sua presença naquelas violentas águas que se derramavam num terrível e descomunal vendaval. Em suas casas, igrejas, escritórios, enfim, onde estivessem, teriam de aguardar para saber o que mais pudesse vir. Quem estivesse ausente de seus lares, não tinha escolha alguma, exceto ficar



no local onde estava; caso estivesse nas ruas, teria que rapidamente procurar abrigo. Jamais se vira tamanha correria desenfreada à procura de algum lugar para se esconder, em todos os cantos, em todas as cidades e estados. Algumas pessoas começavam a lembrar-se de alguns capítulos do evangelho. ‘Era a Ira de Deus que chegava!’. Dizia Izaías em seu livro, no capítulo 30:27 e 28: “Eis que o nome de Jeová está vindo de longe, ardendo com a sua ira e com pesadas nuvens (...) sua língua é como um fogo devorador. E seu espírito é como uma torrente inundante que chega até o pescoço” (...). Outras pessoas mais devotas, porém com um grande pavor assustador em suas feições, recordavam às outras: em 2 de Pedro 3:6 e 7 diz, “e, por esses (meios), o mundo daquele tempo sofreu destruição, ao ser inundado pela água. Mas pela mesma palavra, os céus e a terra que agora existem estão sendo reservados para o dia do julgamento e da destruição dos homens ímpios”.

Enquanto alguns diziam e gritavam pavorosamente a confirmação da fúria de Deus, outros, em silêncio, faziam suas súplicas, ora reproduzindo exatamente o que estava escrito nas escrituras que consideravam sagradas, ora lembravam e proferiam alguns versículos dos Salmos 51: “(...) Segundo a abundância das tuas misericórdias, extingue as minhas transgressões. Lava cabalmente de mim o meu erro (...). (...) Ó Jeová, que tu me abras estes lábios, para que a minha própria boca conte o teu louvor”. Seguindo a orientação daquilo que era pregado aos fiéis, àqueles que acreditavam cegamente naqueles ensinamentos religiosos, primeiramente, a destruição traria muita água antes do grande final. Somente depois, viria a destruição cabal em fogo, como suas próprias escrituras diziam em 2 de Pedro 3:10,11 e 12: “Contudo, o dia de Jeová virá como ladrão” (...) “os elementos, estando intensamente quentes, serão dissolvidos, e a terra e as obras nela serão descobertas. Visto que todas essas coisas hão de ser assim dissolvidas, que sorte de pessoa



deveis ser em atos santos de conduta e em ações de devoção piedosa, aguardando e tendo bem em mente a presença do dia de Jeová, pelo qual (os) céus, estando incendiados, serão dissolvidos, e (os) elementos, estando intensamente quentes, se derreterão!”.

De fato, o dia do grande e todo poderoso Deus, segundo àqueles seguidores de Cristo, havia chegado. Todavia, assim como chegara, terminara. Veio como um ladrão, sim, surpreendendo a todos naquele dia. Mas, como o fogo que se apaga quando posto à água, instantaneamente ele se foi. Deixara muita gente em grande desolação. Muitas árvores caíram por cima das casas com o forte vendaval que passara, destruindo-as, impiedosamente. Muitos carros ficaram destroçados, de rodas para o alto e completamente arruinados. Algumas ruas, avenidas e becos ficaram completamente invisíveis. Pareciam rios agitados, buscando freneticamente um lugar onde pudessem despejar suas águas. Não houve mortes, apenas choros e muita tristeza em ver seus bens sendo destruídos.

Aos poucos, bem devagarzinho as pessoas começavam receosas, a aparecer pelas janelas de suas casas. Timidamente, se abriam uma, duas, três, quatro janelas de um mesmo sobrado até que, por fim, podiam-se ver todas as casas com suas janelas e portas abertas. Todos eram levados para fora pela curiosidade, a fim de verificar o que podia ser feito doravante. Alguns arriscavam dar seu palpite a respeito de tudo o que houve. Diziam que tudo aquilo fora apenas um pequeno aviso e que viria muito mais pela frente. Coisa ruim! Muito ruim mesmo! Pois, sua fúria estava apenas começando; que Ele, o senhor, é paciente e que queria apenas dar às pessoas uma oportunidade de se arrepender, pois ainda era tempo. Mas, que logo viria o fogo destruidor, como diziam as escrituras sagradas.







Aquele dia de comemoração de aniversário e homenagem ao Gomes, ficara remarcado para o dia que tão logo se reorganizassem as atividades. Talvez ficasse decidido para uma ou duas semanas. Iria depender de como as coisas se ajustassem.

As previsões foram perfeitas e tudo correu bem. Após duas semanas, parecia nada ter ocorrido. Tudo estava tranqüilo! As pessoas pareciam mais calorosas, mais fraternas. Dizem que o calor intenso faz com que as pessoas fiquem desanimadas e tediosas, irando-se com facilidade, mas não foi o caso daquelas pessoas. Pelo contrário, o sol abrasador que fazia não diminuía o ânimo de bondade que demonstravam um para com o outro. O arrependimento, sem visivelmente fazer alguma coisa errada, estampava-se em todos. Parecia que todos tinham pecados e, imediatamente, se arrependiam tê-los cometido para com cada vizinho. Entretanto, os únicos que se mantinham numa postura indiferente, era a família Gomes. Seu temperamento e atitude nada mudaram. Ainda permanecia sua fé de que tudo aquilo fora obra de um tempo ruim. Fora obra de um destino que o tempo assim havia determinado que fosse. Portanto, sendo assim, achavam que não devessem temê-lo, já que ninguém sabe quando alguma enfermidade poderá surgir, bem como desaparecer.

Dez de março, duas semanas após a grande desgraça, às seis horas da tarde. Assim como aquela tragédia, embora sem vítima, ocorrera e ficaria marcado para sempre, aquele dia também prometia ficar marcado. A vida continuava para os vivos mortais e a festa iria começar breve. Os convidados saíam de suas casas, tímidos, desconfiados. Tinham dentro de si a sensação de que poderia surgir mais uma vez aquele inesperado arrebatamento. Entretanto, ainda assim, eles partiam em direção a casa do Gomes e começavam a chegar aos poucos. O primeiro a chegar, com muita animação, foi o Mateus com a esposa Milena. Logo em seguida, o Clóvis. Minutos depois, Pereira, Sílvio e Fabrício. Jacinto chegou em



seguida. Gil chegou meia hora depois dos outros, acompanhado por sua esposa Lia e, bem atrás de si, também davam sinal de presença, Elenice, sua mãe dona Cleide e as tias, Márcia e Helena. Eram poucos os convidados. Uma festa bem familiar. Somente os colegas mais próximos é que foram chamados. Dos empregados e amigos de Donizete, somente o Pedrão e o Isaías fizeram presença. Pois, eram os que mais tinham afinidade consigo. Dos sete colegas de faculdade convidados por Félix, somente apareceram três: o Tonhão e o inseparável casal, Bruno e Teodora. Vinte e três pessoas aproximadamente foram convidadas, marcando presença, dezoito.

Quase todos haviam chegado. Estavam divididos em pequenos grupos e a festa prometia muita diversão a todos. A princípio, Gomes ficara a conversar por um longo tempo com os amigos de infância Clóvis, Mateus e Gil. Relembravam suas peraltices de adolescência. Clóvis sempre falava do dia em que fizera aquela festa que ficou sendo mais conhecida como a festa do, ‘bolinho de pinga’. Aproveitando aquela conversa, Gil foi logo fazendo todos recordar de como surgiu aquela idéia e, começava a tagarelar sem esquecer um só detalhe. Mais parecia querer mostrar a todos o quanto sua prodigiosa memória ainda funcionava:

- A gente Estava naquela casa onde abrigava os jovens que faziam parte do MPA

‘Movimento de Arte Popular’. O mais assíduo freqüentador era o grupo musical composto pelo pessoal do ‘Matéria Prima’. Aí, ele virava para Gomes e perguntava se ele se lembrava pelo menos do nome do líder do grupo. Evidentemente que se lembrava, pois ele era o único que ainda possuía um disco deles. Assim, todos ficavam surpresos com aquela







fidelidade do Gomes e, o colega tagarela continuava, sem parar: - Pois é! Era um grupo musical que até esse disco gravado já tinha. Parecia que eram eles os idealizadores desse projeto, porque eram eles quem organizavam e distribuíam as atividades artísticas para cada participante. E, além de fazerem seus ensaios musicais todos os finais de semana ali naquele espaço cedido pela prefeitura, faziam dele, também, o lugar para concursos literários e troca de informações sobre Artes. Em um daqueles seus ensaios musicais e palestras culturais, houve uma pequena festa. Uma das atrações dela e, a mais procurada de todas, foi, sem dúvida, a criatividade do ‘bolinho de pinga’, além do pão fatiado mergulhado no caldinho de feijão. - Cada um dos colegas ia lembrando um episódio. Mateus falava do guarda gorducho:

- E aquele dia em que todos corremos do guarda gorducho com sua arma de fogo em uma das mãos e, com a outra, segurando suas calças para que não caíssem, gritando igual a um doido para que a gente parasse ? - Gomes faziam lembrar-se de como era muito bom todos eles ainda serem jovens. Divertiram-se muito e fizeram também muita guerra de estilingue contra os moleques da ‘Vila Buraco Quente’, um bairro vizinho. Pois, os meninos daquele bairro, sempre que tinham oportunidade, os chamavam de faveleiros, somente para provocá-los. Diziam que moravam em uma ‘favela branca’, pois alegavam que eles moravam em uma comunidade aglomerada e que era própria de quem não tinha muitos recursos financeiros. De um lado, havia provocações; do outro, os revides a elas. Com essa insignificante causa, o ‘pau quebrava’ literalmente. Eram brigas feias de paus e pedras! Às vezes, acontecia de o confronto se dar cara a cara, individual e em grupo. Cada um contava a sua recordação. Fosse ela boa ou ruim, não importava. Queriam mesmo era ter muito que conversar.



Félix estava satisfeito! Fizera o que queria há algum tempo e já se sentia realizado. Ora conversava com o irmão viúvo, mas que já estava namorando uma mulher também da sua mesma faixa de idade e, por sinal, muito amiga e simpática. Dinorah soava ser um nome estrangeiro, mas era mesmo piauiense. Ele a conhecera há pouco tempo em uma viagem que fizera ao Piauí a fim de comprar algumas terras por aquela região, logo após sua mulher ter morrido. Era loira e alta; olhos esverdeados; possuidora de belos seios redondos, avantajados. Não se casara, ainda, porque estivera mais preocupada com o lado profissional do que matrimonial. A mulher agora já era uma pessoa estabilizada na vida e parecia saber muito bem o que queria.

Os dois sempre estavam de mãos dadas, quer conversando com o irmão, quer com os amigos. Todos podiam ver de forma nítida que estavam muito feliz um com o outro. A alegria e o contentamento de ambos eram tanto que - pareciam dizer a todos - tão breve aquele invejado namoro teria o início de uma vida a dois, algo mais sério como, um vínculo nupcial.

Félix ainda estava sozinho. Tivera um outro noivado, mas que durara poucos meses, nada muito sério. Namorara várias garotas e nenhuma fez com que ele se sentisse atraído a ponto de ficar comprometido a elas. Ainda não estava muito velho e achava que algum dia ainda pudesse dar aos pais alguns netos. Seus negócios relacionados à área de Direito andavam como ele sempre desejou. Na verdade, foi muito além daquilo que imaginava chegar. No primeiro concurso que prestara para Promotor de Justiça, fora aprovado com uma excelente nota. Só estava aguardando ser chamado para a entrega dos documentos. Agora, todos se dirigiam para si não mais dizendo somente doutor Félix, mas doutor-promotor Félix. Para ele, aquilo tudo era muito maravilhoso. E, seus pais estavam muito



orgulhosos em saber que tinham na família um filho promotor de justiça. Era algo que Gomes sempre quis ser e, no entanto, seu filho fez realizar, como forma de retribuição, esse seu desejo. Era como se ele próprio, o Gomes, tivesse realizado aquilo.

Elenice ficava acompanhada ora com a mãe e as tias, ora com alguns velhos amigos. Nunca a deixavam sozinha. Os amigos se aproximavam de si para lhe desejar saúde e felicidade, enquanto o próprio Félix também assim fazia, querendo saber da colega ex-noiva como estava se sentindo. Estava constantemente preocupado consigo e sabia que ela não estava muito bem ainda. Quem sabe um dia pudesse reconciliar-se e tê-la ao seu lado como casados? Às vezes lhe ocorria tal pensamento, mas assim que se dava conta do que estava fazendo, procurava logo se livrar dele procurando alguma bebida e os amigos. Ela havia sido muito medicada no internato onde ficara. Talvez isso tenha trazido a ela tanta dependência das drogas. A mulher não podia viver sem aquelas medicações pesadas. Usava uma espécie de combinação de ‘Optalidon’, ‘Gardenal’, ‘Rigotril’ e outros remédios igualmente poderosos. Realmente, era muito perigoso aquilo que a pobre mulher tinha que usar pelo resto de sua vida.

Donizete agora possuía duas farmácias. A matriz lhe dava todo o lucro de que precisava e aquela recém-inaugurada no Piauí prometia obter muito sucesso. Estava localizada bem no centro da capital e seus agentes representantes foram contratados através da indicação feita por Dinorah. Assim sendo, eram de total confiança. Ela o apoiava e era vista a sua presença em toda ação comercial que fazia, já que era uma mulher também experiente de negócio, pois era gerente-administradora de uma importante imobiliária em seu Estado de origem.





Gomes revezava suas conversas com os amigos de infância, com o Jacinto e com os colegas de seu bar. Sempre dava atenção a todos, sempre se lembrando de alguém. Dona Mercedes, quando não estava junto ao marido, preferia a companhia dos filhos. Estava bem apresentada para quem tinha uma idade que já era considerada avançada. Pois, muitas outras mulheres que tinham a mesma idade que a sua, ou mesmo que estivesse se aproximando a dela, já apresentavam os característicos sinais de senilidade. Seja na aparência física, seja no aspecto comportamental. Ela não tinha qualquer identificação que pudesse revelar sua idade. Herdara os traços europeus de seus avós que eram de origem portuguesa, o que lhe dava certa satisfação. Ao contrário dos traços físicos de seu marido que eram bastante fortes, profundos e secamente destacados, daqueles que se adquirem antes de se atingir a idade para que isso aconteça. Possuía fortes tendências de ficar velho, pois havia em si a herança de seus avós que eram constituídos de uma pele áspera, grossa e sem vida, igual aos caboclos, cafuzos e mamelucos do velho e árido sertão do nordeste. Tinha sangue de quase todas as raças misturadas, mas a que predominou - devido ao insistente acasalamento entre negros e índios numa contínua roda sexual, bugre e negra - não poderia ser outra senão a conseqüência dessa mistura final: a formação do cafuzo. O caboclo e o mameluco também vieram paralelamente a fazer parte dessa grande família étnica. Félix não tinha traços europeus algum, enquanto Donizete era mais forte, possuidor de um físico invejável. Seus olhos tinham tons esverdeados iguais aos da mãe. Possuía personalidade forte e era detentor de um querer determinado. Félix era mais extrovertido e aventureiro. Procurava compensar àquilo que achava estar faltando em si, usando a magnífica e extraordinária inteligência que possuía.





Todos diziam na época de namoro que Elenice era uma ‘mulherão’ para ele. Até que concordava, porém, vaidoso, também sabia que sua inteligência era muito maior do que qualquer coisa. Tanto achava isso verdade que decidira não levar seu namoro até as conseqüências finais, pois, pensara, na época, estar tomando a atitude mais sensata que um homem como ele devia fazer.

O clima da festa estava estimulante a todos. Comiam, bebiam e conversavam entre si sem parar um instante. Das rodas dos colegas do bar do Jacinto, o único que parecia estar ausente, distante de todos, preocupado com alguma coisa, visivelmente retratado em seu comportamento amuado e com os olhares ressabiados, dando margem a questionamentos por parte de seus companheiros, era o Linhão. Quando lhe perguntavam se ele se sentia bem ou o que estava acontecendo consigo, nervosamente lhes dizia que era somente uma dor chata, incômoda, que sentia na cabeça.

Nervoso, olhava para o grande portão de entrada e para o muro alto que cercava toda a extensão do salão. Minuto em minuto olhava para o relógio e desassossegava-se. Parecia estar esperando por alguém e que estivesse atrasado, mas a espera e o seu atraso o deixavam impaciente, porque não aparecia absolutamente ninguém. Linhão ia ficando cada vez mais angustiado. Não sabia mais o que fazer. Se fosse embora, teria de arranjar uma boa desculpa e não saberia se quem esperava apareceria ou não; se não fosse, teria que se conformar com a demora e tentar se tranqüilizar. Por outro lado, pensava: ‘como se tranqüilizar se a situação estava demais propícia para o receio e o desespero, já que passava do horário combinado em mais de trinta minutos’?! Em meio a esses pensamentos, de súbito e sorrateiramente, sem se sentir intimidado pelos dois homens que estavam de vigia, um homem pulou o muro alto, agarrando-se a uma corda presa a uma das



estacas que sustentava o telhado que cobria toda a laje. Acreditando ninguém ter visto sua ação, ligeiramente se escondeu por trás de uma das árvores que ornamentava aquele ambiente. Um outro homem imediatamente repetiu a mesma façanha do primeiro, sem fazer qualquer barulho que o denunciasse. Tudo acontecera muito rápido e ambos já estavam prontos para agir, escondidos atrás de uma grande árvore.

A festa estava muito barulhenta! Naquele momento, o ambiente fervia ao som ‘pirado’ do Pink Floyd. Pouco antes, ouviam o puro Rock dos Rolling Stones, o pesado do Black Sabbath, Deep Purple e Led Zeppelin. Para dar uma quebra, certa calmaria, ouviam Bob Dylan, Crosby, Stills, Nash & Young e Patty Smith Group. As músicas brasileiras vieram a seguir como, Sá & Guarabira, Secos & Molhados, 14 Bis, Beto Guedes, Made in Brazil, Mutantes e outros desse mesmo naipe e estilo. O repertório satisfazia, assim, aos gostos do pai e dos amigos de infância. E, quase todos os convidados gostavam até mesmo quando vinham os ‘pesados’ grupos metaleiros.

Justamente no som alucinante do Pink Floyd, naquele exato momento em que a música tomava incríveis dimensões sensoriais, fazendo com que as pessoas ultrapassassem as fronteiras de sua imaginação, ‘Astronomy Domini’, em volume máximo dos amplificadores, magnificamente atingindo seu ápice, o órgão de Wright se misturando com o baixo de Waters e a guitarra de Syd Barret fazendo uma perfeita sincronia. Enquanto o esplêndido coral de vozes alucinantes, guitarras, piano, baixo e bateria, misturavam-se em harmoniosa afinação, aqueles vultos negros, da cor da escuridão, mexiam-se como a cobra chega próximo de sua presa. Saindo abruptamente do esconderijo, fizeram um disparo de revólver para o alto. Em seguida, avançaram-se para o grupo onde estava Gomes e, um deles, apontou para sua cabeça sem dizer absolutamente uma palavra. Enquanto isso, o



outro ameaçava os demais componentes com sua arma de cano longo, fazendo-os permanecer juntos, todos em um canto e sem fazer qualquer movimento. O grupo estava perplexo com aquela cena! A única coisa que sabiam que teriam de fazer, era obedecê-los. Contudo, os irmãos não se conformando com o que viam, se entreolhavam, um para o outro, querendo dizer que iriam reagir. Foi, quando, percebendo a distração do bandido, por instinto, rápido e violentamente, Félix caiu no chão e rolando como uma bola de futebol alcançou o inimigo com um certeiro pontapé em seu genital. A arma do homem caiu com o movimento brusco e violento, enquanto ia se curvando de dor, pondo ambas as mãos naquela região automaticamente, como se quisesse atenuá-la. Enquanto o homem ainda estava curvado, Félix, por reflexo, ainda de cócoras, girou seu corpo cento e oitenta graus e - com a mesma agilidade do ataque de uma cobra - desferiu com a parte traseira de seu calcanhar direito um golpe circular e potente em sua tíbia, fraturando instantaneamente aquela região. O homem caía definitivamente no solo agonizando de forte dor que aquele golpe provocara. No chão, rapidamente, Donizete e outros homens do grupo trataram de imobilizá-lo por completo, segurando-o firmemente. Durante esses acontecimentos, ao mesmo tempo, o outro homem atirava várias vezes em direção ao Gomes. Os tiros acertaram sua cabeça, tórax e na região dos rins. Os tiros foram a curta distância e provocaram em si grande traumatismo, fazendo-o cair e a jorrar muito sangue. O homem tentou correr, atirando continuamente em direção às pessoas que estavam ali, mas fora impedido pela ação rápida dos convidados. Mateus, Gil, Sílvio, Pereira, Fabrício e Jacinto, imobilizaram o bandido com grande violência. Bateram tanto no homem que, caso não fosse à ação dos dois vigilantes que, ao perceber todo o tumulto, haviam corrido para o local - o teriam matado.



* * *



PARTE 9 –





A

o iniciar toda a confusão, os vigilantes não tiveram dúvidas e passaram a comunicar o fato à polícia local via rádio. Enquanto ela não aparecia, ainda de posse dos bandidos, os irmãos Félix e Donizete, os colegas do bar do Jacinto, mais os colegas de infância do Gomes e outros convidados, queriam saber deles por qual motivo fizeram tamanha crueldade. Durante o interrogatório, os outros convidados ficaram parados, indignados, apenas assistindo àquele drama. Cada vez que perguntavam e a resposta não era obtida, os irmãos lhes batiam com ira e brutalidade, impiedosamente. Todos queriam saber do motivo de tanto ódio, pois acreditavam que devesse haver alguma razão para que aquilo fosse justificado. Enquanto isso, o pai ia sendo socorrido por sua mulher, Fabrício e uma das tias de Lenira que, imediatamente, trataram de colocá-lo em seu veículo e, às pressas, o conduziram para o hospital.

Durante todo esse trágico espetáculo, num canto, como se estivesse acuado, sem saída e sem dizer uma palavra sequer, um homem abalado, apreensivo - com uns óculos desproporcionais de lentes de ‘fundo de garrafa’ e uma espessa barba - permanecia paralisado diante de toda aquela abrupta e violenta reação dos filhos do Gomes e de seus convidados. Quase sem poder proferir qualquer palavra, com muita dificuldade, sangrando pelas narinas e boca, o atirador balbuciou fraco e silabicamente um nome,... Li - nhão. E,





com a mesma dificuldade tentava apontar para aquele canto onde se encontrava aquele sinistro homem. Pois, sabia que o homem denunciado se encontrava por ali. Percebendo do eminente perigo que estava por vir, agindo em desespero, Linhão saiu em disparada para a porta de saída, mas logo foi contido pela multidão em fúria. Nesse momento, apareceu a polícia com a sirene gritando alto e velozmente invadindo o recinto do crime.

Na delegacia, nem foi necessário muito esforço por parte dos policiais. Os marginais, temendo novas represálias, acharam melhor dizer toda a verdade. Assim, prontamente foram contando a confissão ao delegado Paulo Krieger. Diziam-lhe que Linhão havia os contratado para dar fim ao Gomes, pois ele suspeitava que o colega o havia denunciado ao Instituto onde trabalhava. Gomes era um delator e precisava ser morto. Foi ele quem disse ao Instituto quem havia profanado Letícia e, que se não fosse sua astúcia, teria ficado preso e condenado. Pois, no último momento do ato sexual, sabia que devia ejacular fora, caso contrário, teriam provas suficientes para condená-lo através de um exame de espermograma. Essas foram algumas das justificativas de Linhão, segundo os bandidos.

O delegado ouvia o seu relato pasmo, petrificado, embora ele fosse um delegado experiente em seu cargo e estivesse habituado a ouvir relatos semelhantes, pois já estava naquela função há mais de quinze anos. Apesar de toda sua indignação quanto aos fatos narrados, sem perceber em seus interlocutores qualquer sinal de arrependimento, logo perguntou a eles como foi feita a ‘contratação’ para o ‘serviço’, como diziam na linguagem policial. Sem hesitar um só segundo, eles trataram de dizer de forma rápida, como se quisessem terminar logo com aquilo. Poderiam ser rápidos, conquanto que relatassem com detalhes. Era uma ordem direta expedida pela autoridade que ali estava a sua frente e que precisava ser obedecida, ainda que tropeçassem em quase todas as flexões gramaticais da língua. Continuando suas confissões, diziam que Linhão apenas imaginava ter sido o Gomes. Ainda sentia um resquício de dúvida. Pois o Peleco do Jacinto - que não era muito confiável - havia contado a ele que ouvira essa conversa do grupo de seus colegas, no bar. Mas, que ainda assim, sem procurar saber se era ou não verdade tal história, os contratou por um valor irrisório de seiscentos reais, dos quais teriam que ser divididos entre si.

O mistério dos atentados sofridos por Gomes parecia ter chegado ao fim. Os bandidos permaneceram trancafiados na prisão e, com mandado de prisão em mãos, logo os policiais conseguiram prender o terceiro criminoso sem muitos problemas, o mentor das atrocidades Tonhão. Fora muito fácil prendê-lo, pois a astúcia policial levou-os diretamente ao caminho certo. O criminoso havia se refugiado em uma casa abandonada que o tio - até então desconhecendo o repentino pedido feito pelo sobrinho, segundo ele próprio - possuía em Campos. Cidade esta, localizada próximo ao sul de Minas Gerais. De São Paulo a ela, sua distância é de aproximadamente trezentos quilômetros de distância. Pegaram-no confortavelmente balançando-se em uma rede presa a duas árvores, em um amplo terreno, ao redor de uma aconchegante e vistosa casa. Naquele mesmo instante quando apareceram os policiais, o homem tinha acabado de tomar um fresco e saboroso suco de tomate que ele mesmo havia preparado e colhido o fruto. Ao perceber a presença dos policiais, não demonstrara qualquer resistência e - assim que fora identificado - algemaram-no e o jogaram ao ‘camburão’ da viatura.

O pessoal todo do Gomes - mulher, filhos e amigos - não conseguiam acreditar naqueles dolorosos e indescritíveis episódios por que passou aquele homem, aquele pai, aquele amigo. Custavam a crer que tais acontecimentos dolorosos houvesse, de fato,



atravessado suas vidas daquela maneira tão cruel. Idealizados com a armadilha de uma pessoa insensível que, de tão próximo, fizera também parte da vida do pai um dia. A angústia e o pesar, aos poucos, iam tomando forma até preencher por completo seus apertados e dilacerados corações. Ninguém mais tinha qualquer esperança, pois o mundo havia rompido com todos que lhes cercavam e apagado a chama do desejo de ainda ter o prazer de viver. Uma boa parte de seus seres ficara restrita em viver nos mais tortuosos caminhos da ilusão da vida. Pois, ainda que ela possa oferecer alguma vantagem - em sua longa ou curta trilha - sempre haverá algum tropeço qualquer. Todos os seres humanos mortais, enquanto vivos, fatalmente estarão condenados ao eterno sofrimento de viver, pois as recaídas das aflições e dos dissabores sempre vão estão presentes nos moldes existenciais.

A destruição e toda sorte de sofrimento são destinadas com exclusividade a toda raça humana, independente de determinado lugar haver ou não justiça referente à moral e à ética. Lá de cima, no azul longe, bem distante, uma camada de luz espessa, de grande brilho, começa a adquirir o formato de um rosto humano e, como se estivesse em desvario, parecendo sorrir de tamanha satisfação, vê o país, repentinamente, transformando-se em um profuso caos social. Cansadas de receber promessas nunca cumpridas de seus líderes políticos e religiosos, as pessoas começavam a se rebelar contra as mazelas que pacientemente vinham sofrendo. Parecia que os contundentes discursos políticos, sociais e religiosos do Gomes - os quais fizeram em seus raros momentos de entusiasmo fora, enfim, ouvidos e assimilados. Pareciam terem sido transmitidos de boca em boca até que por fim chegara à grande massa popular. Agora, o povo tomava consciência e um grande Levante estava anunciado. Bombas caseiras eram arremessadas contra os palácios de governos,



fazendo subir para o céu uma enorme labareda de fogo ardente, destruindo-os. As ruas ficaram interditadas com o formidável fluxo humano que era formado pela população em grande alvoroço e fúria. Pneus começavam a ser incinerados e uma enorme e escura fumaça levantava-se, cobrindo todo o céu de uma preta e assustadora nuvem, tomando o posto da claridade do sol. O terrível fogo começava a tomar grandes dimensões por toda parte, causando terror e medo. O pânico se instaurara e o conflito tomava grande forma. Tudo ia ficando escaldante, até as águas dos rios borbulhavam em calor. Não havia para onde correr. Todos os lugares estavam tomados e não havia como deter aquela grande turba de gente em fúria alucinante.

Lá em cima, na mais alta elevação celestial, mas que ainda se podia ver a olho nu, era vista uma luz resplandecente que refletia um brilho de enorme grandeza, com grande intensidade. Em sua imaginação, aquela luz recriava todo aquele desejo alucinante outrora manifestado. Achava-se no direito de ainda poder sonhar antes de partir de vez. Assim, observava todo o conflito das pessoas e se alegrava. Ficava sonhando com aquilo tudo, imaginando o que via como se fosse real. E, conforme se ascendia, cada vez mais, ia diminuindo seu extraordinário rutilo junto com sua fantástica imaginação. Em seu longo e fino corpo fluído, incandescente, - antes de desaparecer por completo - ainda dava para distinguir o formato de um rosto. Olhava para baixo e observava atentamente, imaginando aquelas pessoas se degradando, lutando por uma causa justa, de puro direito que lhes fora negado. Parecia sorrir de contentamento. E, sorrindo em estado imponente de alegria, muito feliz, o Tempo ia fazendo com que ele começasse a se desintegrar até desaparecer por completo através da imensidão do céu infinito.

02/04/2006


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