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Contos-->ESPELHO -- 22/02/2002 - 20:15 (Carlos Higgie) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

ESPELHO


Espelho: Do latim speculum, lâmina de cristal azougue, para refletir objetos.

O objeto sou eu. Trinta e poucos anos, um ricto quase imperceptível nos lábios, um cansaço que já não é meu. No fundo, perdida na íris castanha, uma pequena luz insiste em não apagar.
Falou-me Guacira que estou ficando careca. Tem razão. Debaixo do meu cabelo, outrora abundante e forte, cresce uns clarões e as entradas estão maiores. Estou me resignando a ser calvo. Em realidade já me resignei a tudo. Como se minha vida fosse um grande dominó, preparado para uma reação em cadeia: cai a primeira peça, derrubando, em um movimento contínuo e em câmara lenta, as outras. Cada sonho que passa, cada esperança que se despenca, derruba a seguinte. E assim, sucessivamente. Este foi um ano pródigo em quedas.
Se vasculhasse no remoto e polido pretérito, no começo do efeito dominó, dificilmente conseguiria identificá-lo. Em alguns momentos penso em Marcela como o começo do fim. Que nosso proibido, e por isso furtivo romance, desencadeou uma avalanche que só terminará quando eu morrer.
Não tenho estômago para agüentar a Guacira. Agora somos quase inimigos; a vida nos jogou num ringue, no qual nos enfrentamos todo dia. Passamos da paixão à rotina sem percebermos. Odiamos por obrigação, mordemos, ferimos sem piedade. Ela não tem culpa, ainda que às vezes faltou compreensão e paciência.
A terra, vista do infinito, não existe. E da lua, que está a um passo dos menores, é somente uma bola azul-prateada e nada mais. Por isso não consigo imaginar a microscópica dimensão dos meus problemas. Sei que, afundado neles, me parece um oceano hostil e tenebroso, prestes a inundar minha consciência.
Marcela emerge seguidamente do passado. Insiste em quebrar minha já frágil estrutura. Ela é a lembrança mais louca e bonita da minha vida. Com ela cometi todas as loucuras da juventude. Na madrugada de um verão memorável, na velha bicicleta, fugimos por trilhas de areia e pedra, rumo ao mar. Dias depois a polícia nos pegou, principalmente porque paramos nos arroios, montes e plantações, para o regalo de nossos corpos, descobrindo na imensidão do campo e da noite, a pequenez e o milagre do nosso prazer. Marcela saia de si, transformando-se em mulher, apesar de uma adolescência.
Depois da surra que seu pai me deu, ela sumiu. Descobri que casou, teve filhos e fez todas as coisas que juramos não fazer.
Guacira sabe pouco destas coisas que povoaram minha juventude, não entende que por dentro vão muitos eus em permanentes choques.
Não tenho dúvidas: o efeito dominó começou com os murros do pai de Marcela. Passei meses, anos, afogado pela mágoa e pela lembrança clara e forte daquela garota, desfalecendo em meus braços, bêbada de paixão e prazer, gemendo feito bicho, cada vez que tocava o céu. Minha mãe se desesperava, tentava me buscar para a vida. O pai me insultava, maldizia. Perdi quilos e ilusões, esvaziando como um balão.
Um dia qualquer voltei à normalidade, andando pelos caminhos marcados e preestabelecidos. Um dia, Guacira. Outro, o casamento. O apartamento, os móveis, a rotina, o medo crescendo como um cogumelo, subindo feito trepadeira, invadindo meu sangue.
Agora, seis horas da manhã, as coisas parecem desconhecidas, emergentes de uma realidade paralela, subjacente: a casa toda está coberta por um silêncio adormecido. Fugitiva de um sonho qualquer, permanece sob a pele, uma sensação inequívoca de que tudo está fora de lugar. As coisas e eu.
As moscas, amorais e sujas, amam-se sobre a mesa da cozinha, como qualquer parte do mundo. Uma torneira pinga na minha alma.
A luz do amanhecer iluminou meus traços tristes, refletidos no espelho. Dali até a sacada foi um instante. Da sacada ao parapeito, outro.
Vejo lá embaixo, diminuídas e distantes, as árvores, a rua, os madrugadores. Choro. Sinto dor nas pernas. Quero saltar. Flutuar, navegar, fazer-me merda no teto de um ônibus, asfalto ou cabeça dos passantes.
Tudo parece um tango. Dirão tantas coisas amanhã, hoje pela tarde! Que tinha amante, endividado horrores, homossexual, HIV positivo. Inventarão histórias. Não sei porque saltar, estourar na rua as poucas ilusões que restam. Talvez porque ontem num bar fedorento, vi minha vida num instante, nos olhos borrachos de Marcela; talvez por vê-la tão decadente, gorda, enrugada. Tão velha como o mundo; vulgar como todos. Os olhares se reconheceram. Julgaram nossos dias. Ela inclinou-se e vomitou.
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