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Contos-->A penteadeira -- 22/02/2002 - 17:46 (Rinaldo Brandão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
E aconteceu que o marido voltou mais cedo do trabalho...
—Depressa! —gritou a adúltera esposa para o jovem amante. —Pra trás daquela penteadeira, já!
—Mas ali não tem espelho, droga! —respondeu o trêmulo amante. —Ele me verá!
—Ele nunca se olha no espelho, seu tolo.
—Mas se hoje ele resolver olhar?
—Que diferença isso fará? Ele é quase cego! E no mais, se ele olhar, o que é pouco provável, basta que te portes como um reflexo, ora. Agora, anda, entre, que ele já vem.
Com efeito. No momento em que o jovem se postara atrás da velha penteadeira, o homem adentrara o quarto. Não era velho, o pobre corno, homem de seus cinquenta anos, que se arrastou cambaleante pela porta, trancou-a e pôs a chave no bolso do paletó. Não fosse a sua quase completa cegueira que o debilitava decrepitando seus trejeitos, modos, passos, seria um homem até elegante; soubesse de si, seria mais viril, mais jovem, até menos cego, talvez... Pois bem. O marido entrou no quarto, trancou a porta, como relatei, beijou a esposa, sentou-se à penteadeira, como sempre fazia, e pôs-se a se despir para o banho. Contudo, naquele dia, não sei dizer se um soluço ou coisa parecida chamou-lhe a atenção e o fez, para desespero geral da nação, olhar em direção à penteadeira. E feito. E foi.
O jovem quando se viu nos olhos do velho, pensou em fugir dali, mas se conteve ante um aceno de mão da amada que lhe proibia a loucura. Também, fugir pra onde? Fosse pela janela, ia bem. Abominasse o suicídio, fuga alguma havia ali. Reflexo seria, o desgraçado. Manteve-se, então, tal e qual. O velho acomodou-se, a custo, na cadeira, deu um longo suspiro e apertou os olhos como se visualizasse alguma coisa... Sua esposa gelou, o amante fechou os olhos, mas o velho, apenas balbuciou:
—Até que enfim, hein, Odete!
—Até que enfim, o quê, querido?—disse a esposa ainda temerosa mas com os olhos já despertos.
—Até que enfim arrumaste o espelho desta penteadeira. Já não era sem tempo.
—Gostaste?
—Do espelho?
—Han, han...
O homem novamente apertou os olhos, assim como o fazem os míopes deste nosso vasto mundo, numa vontade enorme de se divisar, de se encontrar, mas o máximo que conseguiu foi ver nublar-se à sua frente um desconhecido vulto.
—É —respondeu sem muita convicção—, é estranho, mas é bom.
A esposa precipitou-se afoita. Era preciso tirá-lo dali.
—Não vais te banhar, meu bem? A noite já teima em cair. Demoras, e é justo que o frio venha. Aí tu sabes, não te banhas mais.
Mas o velho não ouvia mais nada. Passara a gozar aquele novo prazer que se lhe anunciava tão mais moço! Há não sabia quantos anos se via assim tão nitidamente. Assim tão perto. Podia até sentir seu cheiro. Grande invento era o espelho. Não se poderia mais imaginar sem aquele seu vivo retrato. Sim, parecia vivo aquele seu reflexo. E ele lhe parecia tão jovem!
—Esse sou eu? —perguntou apontando para o jovem atrás da penteadeira
—Claro, querido! —respondeu a esposa já com a toalha de banho em mãos. —Agora vá te banhar que não gosto de suores de rua, bem sabes.
—O que achas?
—Do quê, meu amor?—a esta altura a esposa se postava entre seus dois homens.
—De mim, claro.
—Acho-te um amor, estás satisfeito? Agora deixa de adolescências que hora já se faz de banhar-te.
—Mas, querida, olha-me!
A esposa se virou. Não era possível que o marido se visse ali. O amante era nada menos que trinta anos mais jovem. Não era possível que seu marido fosse cego a tal ponto.
—Não me sabia assim tão esbelto —continuou o corno—, cabelos negros... Nem uma ruga, Odete! Ruga nenhuma!
—Pois, pois, querido. E é bom que te mantenhas assim, portanto, banho!
Seria, amigo leitor, cruel e inútil narrar aqui os momentos que o pobre jovem amante passara ali detrás daquela penteadeira sem espelho. Pouco seria todos os suores dos braçais e estivadores desses portos do mundo; pouco seria a angústia e temor das nações famintas e sem abrigo dessas bélicas terras... Pouco seria todas as pungentes melhores frases de todos os acadêmicos! Pouco seria tudo, amigo leitor, pois não houve, registrado em celulose, quiçá, em conversa de botequim, suplício igual ou maior a que foi submetido nosso trêmulo amante.
Mas é fato que o velho se foi. Não desta para outra, mas da cadeira para o banho, e o pobre jovem pôde, enfim, se ver livre do martírio de viver qual um reflexo. Da penteadeira passou, rastejante para debaixo da cama. O velho dormiria e então, a amante, de posse da chave, abriria de vez o caminho para sua liberdade de ser.
Porém...
—Odete!?
O marido de volta à penteadeira, apertando novamente os olhos, tentando, buscando, exigindo seu reflexo, chamando pela esposa.
—Que foi, meu bem?
—Que houve comigo?
—Ora, pois. Já não deitas? Vem que amanhã é nova a lida e já se faz tarde. Deita, pois.
—Mas... e eu?
—Que tens tu, ó homem de Deus? Dá-me a chave do quarto busques descanso.
—Não sem antes me rever a mim. Agora que me redescubro, escondes-me? Onde estou eu? Onde estão aqueles meus traços, jovens verdes olhos, bocas... eu tinha bocas! Cabelos negros, vida. Eu era vivo há pouco, Odete! Dê-me a mim!
O jovem, debaixo da cama, sentindo que a situação merecia contento, arrastou-se, dono de seu ato e foi se dar novamente atrás da penteadeira, para que enfim o velho se desse por satisfeito. E foi. E feito.
A adúltera notou a investida do amante e consentiu em tudo. Quando este se ajeitava já à penteadeira, ela deu o grito:
—Cego! Não te vês?! Estás aí à tua frente! Tola fui em mandar que dessem jeito nessa penteadeira! Já não brigávamos há quanto? Agora por uma reles circunstância de se ver ou não, brigaríamos? Tola fui eu!
E desabou num pranto incompreensível. O marido a olhou, sem enxergá-la, claro e se conformou. Era ele ou ela:
—Que seja! Não briguemos, pois, por tolices!
E, do bolso do paletó, tirou o revólver, firmou a visão e atirou certeiro, duas vezes, nos olhos do seu reflexo, que nem de gemer teve tempo.
—Verdade seja, não havia mesmo gostado muito de mim!
Dito, deitou-se e dormiu.



















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