Escritor, Especialista em Relações Internacionais, Autor de Guerra nos Andes
Lucio Gutiérrez Borbúa resistiu 27 meses na cadeira presidencial do Palácio de Carondelet em Quito, um pouco mais do que a maioria de seus antecessores. Nos últimos nove anos o Equador teve sete presidentes: média de 15 meses para cada um. Para quem não sabe como se frita um presidente na América Latina, o caso Gutiérrez é exemplar.
Veja os fatos: 1) dizendo não ser um político, vence as eleições tomando posse em março de 2003 à frente de um novo partido que conquistara só 7 das 100 cadeiras do Congresso que lá é unitário; 2) o vice-presidente, um médico que nunca pertenceu a qualquer partido e também diz não ser político, quase de imediato entra em conflito com o presidente; 3) seis meses depois da posse, demite todos os ministros do movimento indígena Pachacutik que ajudara a elegê-lo, jogando-o na oposição; 4) faz um governo de mais baixos que altos, sem consistência até que as pesquisas de opinião lhe dão apenas 6% de apoio popular (similar ao de Toledo, no Peru), obrigando-o a negociar constantemente acordos no Parlamento; 5) aproveitando-se da fraqueza do governo, uma oposição de ocasião formada por conservadores, indígenas e esquerdistas apoiada pelos juízes da Corte Suprema de Justiça (CSJ) tenta o seu impeachment com base em acusações genéricas, mas Gutiérrez se junta aos ultraconservadores e resiste; 6) para se vingar comete um erro fatal ao destituir 27 dos 31 juízes da CSJ nomeando outros tantos a seu favor, os quais anulam pesadas acusações sobre dois ex-presidentes (Bucaram e Noboa) e um ex-vice permitindo seus retornos ao país; 7) quatro meses depois o povo está nas ruas da capital dizendo que não aguenta mais aquele presidente e nem os anteriores, sofrendo repressão policial que resulta em três mortos; 8) o governo movimenta suas bases e traz grupos de indígenas de religião protestante para enfrentar os manifestantes em Quito; 9) o Alto Mando das Forças Armadas diz que apóia o presidente mas em seguida se arrepende e lhe pede que renuncie para evitar derramamento de sangue, enquanto 60% dos deputados decretam o afastamento de Gutiérrez por abandono do cargo embora ele estivesse despachando normalmente em sua mesa de trabalho; 10) militantes do Partido Comunista, Marxista e Leninista do Equador invadem o palácio em Cuenca, a 3a. cidade do país, e correm com o governador assumindo seu posto enquanto estudantes na capital invadem a sede do Congresso e agridem deputados pedindo que todos renunciem; 11) o presidente foge de helicóptero do palácio sob a proteção cerrada de sua guarda, os Granaderos de Tarquí e, sem ter onde se esconder, pede asilo na embaixada brasileira; 12) o chefe de polícia, orgulhoso por não ter usado gás mostarda quando dissolveu algumas manifestações, pede demissão e seu substituto se compromete a não mais lançar bombas de gás contra o povo; 13) o vice, um médico que reafirma não ser político, assume com bom humor disposto a fazer uma ressuscitação cardiorrespiratória no paciente (o Equador) para tirá-lo do estado de coma a que chegara; 14) o povo nas ruas, animado pelos tambores e flautas da banda da Federação dos Povos Kichwa do Norte (de Ibarra, trazidos para enfrentar os protestantes), dança alegre, comemorando a queda de Gutiérrez e a segunda fuga de Bucaram para o Panamá.
Com base na experiência, só se pode esperar que Alfredo Palacio (nos tempos de vice seguiu dedicado à sua prestigiada clínica de cardiologia enquanto fazia oposição ao presidente) também dure pouco no poder. Um dos principais jornais, o El Comercio, colocou em manchete: “Palacio inicia seu governo vigiado pelos cidadãos”. Para variar, anunciou a possibilidade de convocar uma Assembléia Constituinte (em cerca de 200 anos de vida independente a América Latina já teve mais de 200 Constituições) e em seu primeiro pronunciamento negou-se a fechar o Congresso, mas se mostrou partidário de que este se submeta “a uma autodepuração” sem explicar como ocorreria. A classe política, a mais detestada no Equador, ao forçar a queda de mais um presidente conseguiu livrar-se momentaneamente das acusações de ser a verdadeira responsável por esta nova crise e quer antecipar as eleições de 2006, mesmo sem oferecer qualquer garantia ao novo primeiro mandatário da nação de que poderá, afinal, governar.