As forças brasileiras com o uniforme da ONU, por mais que evitem intrometer-se nos problemas reais e profundos do Haiti, cada vez mais são parte da paisagem de terror que constitui o dia-a-dia desse que é o povo mais pobre das Américas. Um ano após a remoção compulsória do presidente Jean-Bertrand Aristide, que hoje vive exilado na República Centro-Africana, a situação continua a mesma e o país se debate sem esperanças numa crise interminável só compensada pela natureza que lhe deu algumas das mais belas praias e paisagens do Caribe. Na outra metade da ilha, o dólar é a moeda oficial da República Dominicana e os hotéis cinco estrelas se multiplicam. O diagnóstico do que é hoje o Haiti, quando feito por agências independentes, é implacável.
O mais recente leva a assinatura da Faculdade de Direito de Harward e da ONG Centro Justiça Global, revelando que após oito meses de presença da Missão da ONU para Estabilização no Haiti (Minustah), o país é tão inseguro quanto sempre foi, sequer houve avanços significativos no desarmamento das gangues e grupos de ex-militares controlam vastas extensões no interior e na periferia das principais cidades. Os capacetes azuis não conseguem impedir os abusos e constantes violações dos direitos humanos da Polícia Nacional Haitiana (PNH). O comandante do Minustah, general Heleno Pereira, diz que a Polícia tem a melhor das intenções e a Missão tem procurado ao máximo trabalhar com ela; a tarefa de monitora-la não seria da força de 6.000 homens sob seu comando, e sim dos outros 1.600 que integram a Polícia Civil Internacional (também da ONU) no país.
Há um mês atrás o diário londrino The Independent criticou o que chama de mão negra da política externa norte-americana numa reportagem intitulada “A morte da democracia” onde diz que as cadeias estão superlotadas por 700 prisioneiros políticos contrários ao governo provisório instalado por Estados Unidos, França e Canadá. Gangues de assassinos circulam livremente, a prática do estupro é sistemática e os mais pobres alimentam-se com biscoitos feitos de lama (uma mistura de barro, água, uma pitada de margarina e outra de sal, às vezes umedecida num caldo de carne e posta ao sol para secar e vender no Mercado Salamoun e nas favelas. Mulheres grávidas acham que os biscoitos conhecidos como Terre contém nutrientes benéficos para a saúde do bebê). A polícia é dada a execuções sumárias, por vezes abandonando suas vítimas nas sarjetas para serem roídos por cães e porcos até que alguém lhes dê algum destino. Em 1º de dezembro houve uma revolta na principal prisão de Porto Príncipe numa luta interna que resultou em sete mortos. A polícia entrou atirando e liquidou outros sessenta. .
O relatório de Harward faz recomendações concretas à Minustah: desarmar as gangues e paramilitares, não dar apoio à PNH em operações que claramente violam direitos humanos, investigar Titanyen ao norte da capital onde a polícia joga ou enterra os corpos de quem executa, colocar efetivos nas prisões e hospitais para impedir a liquidação sumária de presos e doentes ou feridos internados, reduzir o distanciamento com o povo treinando os capacetes azuis em francês e creole que são os idiomas nacionais ou colocando tradutores. Eleições livres, teoricamente marcadas para dezembro deste ano, constituem um sonho ainda longínquo no Haiti. O Brasil mandou tropas e assumiu o comando da Missão da ONU de olho numa das vagas permanentes a serem criadaa (agora por proposta de Kofi Annan) no Conselho de Segurança da ONU. Na prática, cada vez tem mais dificuldades em dissociar sua imagem da também permanente violência e do caos haitiano. Vale a pena?