Ontem eu morri, as 21:43, sei exatamente a hora, pois a última coisa que fiz foi olhar no relógio de parede, antes que tudo se tornasse escuro diante de mim. Cai no piso duro da cozinha, frio, como frio estava meu corpo, ainda consegui unir meus joelhos à testa, a posição intuitivamente mais segura que encontrei.
Essa notícia não saiu em nenhum jornal, ninguém daria importância a ela, talvez alguns até achassem que mereci. Mais uma morte anônima, numa noite da capital, quantas não acontecem todos os dias? Quantos não vêem seus corpos inertes diante da fatalidade da vida, diante das coisas que aparentemente não poderiam ser de outra maneira?
Tento recompor aos poucos os fatos, é difícil lembrar da ordem cronológica, talvez até porque estivesse tudo acontecendo desde sempre e eu não tivesse me dado conta, estava tão cega diante de tudo, parecia que eu era eterna, que tudo era eterno ... mas que bobagem ... o eterno é o que não tem começo nem fim e se um dia eu nasci, teria que um dia morrer. Bem, talvez esteja ai o início do novelo, talvez consiga recompor a história nesse momento, quando me senti nascer.
Era uma tarde de sexta, enquanto eu caminhava pela rua, com a cabeça nas nuvens, preparando na mente a aula que teria que dar dali a quinze minutos e que não tivera tempo de organizar na noite anterior, me choquei com um homem que vinha em minha direção, eu não o havia visto e aparentemente nem ele a mim. Meus livros foram parar no chão, assim como os tantos papéis que ele levava, parecia cena de novela, nos abaixamos e um pedindo desculpas ao outro tentávamos recolher nossas coisas quando nossos olhos se cruzaram e ficamos ambos paralisados. Nos olhamos durante alguns infinitos segundos, ali abaixados no meio do calçadão, anônimos, um ao outro e a todos que por ali passavam e se desviavam de nós. Senti meu rosto enrubescer, levantei desajeitada, ele me olhou no fundo dos olhos, parecia espiar dentro de mim e como um bandido penetrar dentro de todos os pensamentos confusos que vagavam em minha cabeça.
Ele me disse algo que não consegui ouvir, balbuciei palavras que nem mesmo eu compreendi, ele me sorriu, neste momento me senti em pêlo diante dele, como se tivesse pela primeira vez observado de verdade alguém diante de mim, meu nascimento se deu ai. Nos despedimos de uma forma infantil, envergonhada, como se quiséssemos ficar. Andei alguns metros, acho que cambaleava, pelo menos sentia minhas pernas bambas, ouvi alguém chamando por alguém atrás de mim, não havia nenhum nome no chamado, apenas um “hei!”, mas eu sabia que era para mim, parei, me virei, ele trazia um pedaço pequeno de papel na mão e me disse que achava que aquilo era meu. Não olhei o que era, fiquei marmorizada olhando para aqueles olhos, ele me pediu desculpas mais uma vez e saiu, um sorriso de menino no rosto, tive a impressão que também ele havia nascido naquele momento.
A tarde me foi estranha, dei aulas praticamente como uma máquina. Perguntaram-me diversas vezes se estava tudo bem comigo, eu respondia que sim, com um sorriso congelado no rosto, o olhar perdido no calçadão, meus pensamentos e meu corpo não se encontravam naquela tarde, por mais que eu tentasse.
Cheguei em casa cansada, atirei as coisas em cima do sofá da sala como sempre, tomei banho, esquentei o almoço do dia anterior no microondas, parecia tudo tão igual a todos os dias, mas não, agora eu sentia uma presença ao meu lado, não, não havia mais solidão no meu apartamento, em mim, eu nascera. Peguei a roupa que havia usado durante o dia e vasculhei os bolsos antes de colocar na cesta de roupa suja, no bolso de trás da calça jeans surrada um cartão, aquilo aqueceu minha mão, me despertou um sorriso mágico, era o papel que ele havia me entregado, não havia caído das minhas coisas, era o cartão com seu nome e telefone. Fiquei sem saber o que fazer, joguei as roupas na cesta e fui para sala admirando aquele pequeno pedaço de papel como se fosse uma obra de arte. Acabei adormecendo no sofá, o cartão debruçado sobre meu peito, dormiu comigo.
Acordei com meu corpo formigando, aquele sofá nunca foi o melhor lugar da casa para se descansar, olhei o cartão sobre meu peito, não quis pensar, não quis dar qualquer chance para me avisar de nada, peguei rapidamente o telefone e em segundos ouvi os toques de chamada, tremia, ansiava. Uma voz masculina atendeu, perguntei quem era, mas meu coração já havia reconhecido, ele se identificou e eu a mim, rimos de nosso nervosismo, marcamos de nos encontrar no almoço.
Minha infância, adolescência, juventude e velhice se passaram em 10 meses, desde aquele almoço, de tantos outros, de tantos jantares, de encontros marcados e desmarcados, de noites esperando e dormindo sozinha, de telefonemas que não pude dar, de promessas de amor que ouvi, de perfumes que não pude usar para não deixar rastros, de rosas que enchiam meu apartamento do vermelho lindo que éramos nós dois juntos. Vivia uma vida clandestina, como de todo aquele que nasce bastardo, mas como era feliz! Mesmo quando as lágrimas rolavam de saudades, de ciúmes, de saber que aquele corpo adorado estava ao lado de outro em outra cama, em outra casa, que não era a minha, mas que era a dele com alguém que nasceu antes de mim. Sempre havia a hora da chegada, o cheiro que ficava nos meus lençóis para me reconfortar, mesmo que eu soubesse que estava tudo tão errado, meus olhos cegos enxergavam uma única certeza: amanhã ele estará aqui e só haveremos nós.
Então chegou o dia de ontem, quando a campainha tocou, quando abri a porta e aquele rosto tão amado tinha um ar sombrio, a cabeça baixa, sem beijo de boa noite, sem abraço de saudade, invadiu minha casa e sentou na cadeira da cozinha, cotovelos apoiados na mesa, cabeça apoiada nas mãos trêmulas. Sentei-me diante dele, meu coração disparando, com uma certeza que eu expulsava senilmente da minha cabeça, com lágrimas que já queriam rolar antes mesmo que ele abrisse a boca e que segurei o quanto pude para não me antecipar aos fatos e não acreditar no que estava acontecendo. Sua boca se abriu, dali correu sangue, o meu sangue, minha vida foi aos poucos se esvaindo por aqueles lábios que eu tanto adorava beijar. Foi tudo se acabando, quando ele me disse que nós já não éramos mais um segredo nosso, que outros já sabiam da nossa existência, que o nós tinha que acabar. Ele se levantou, o segui com os olhos e quando ele sumiu da cozinha meus olhos ficaram parados no relógio de parede, cai, não tinha forças para gritar, sequer um soluço saiu de mim, só lágrimas, perplexidade, morte em mim.
Adormeci cansada pelas lágrimas, o rosto gelado quase que colado ao piso frio da cozinha, levantei me apoiando na cadeira, fui até a janela, sem alma, sem cor, sem esperança, sem nada. Passei toda a madrugada olhando em direção a algum lugar, uma rua, um beco sem saídas. Quebrei copos, louças, garrafas, tudo que encontrava pela frente, até que cheguei diante do espelho do quarto, olhei para mim e não me vi, só um espectro, uma sombra, mas que não podia mais existir, porque o corpo que a formava se fora e dissera que não voltaria mais, sorri amargurada, olhei-me novamente, lembrei de alguém que eu vira naquele espelho tantas vezes, alguém que tinha os mesmos traços que eu, que existia para o mundo, que tinha um nome, cor, cheiro .... vi meu vidro de perfume predileto, a 10 meses fechado, sobre a penteadeira, me encharquei do meu cheiro do passado, dei gargalhadas nervosas, loucas, mas livres, agora podia me encharcar de perfume, ir a qualquer lugar, programar meu fim de semana. Tudo isso passava freneticamente em minha cabeça, a dor e o alívio se misturavam, não sabia o que me dominava, não sabia direito o que pensava, não sabia do que ria, do que chorava.
Neste momento tento recompor os fatos, penso em tudo isso, organizo os dias em mim, em minha busca. Cacos de vidro no chão, perfume espalhado, cheiro de mim por toda parte. Aos poucos me acalmo, me jogo na cama, sei que a gravidez de mim vai agora começar, que nesse instante estou me gerando novamente e que terei que esperar nove meses, ou talvez consiga ser prematura. Mas algo dentro de mim, uma força que surge de algum lugar estranho e até então desconhecido, me diz que dali a algum tempo, depois de completa a gestação eu poderei gritar para o mundo: hoje eu nasci ... para mim.