(com pequeno fragmento do poema "Habitação", de Soares Feitosa)
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Final da tarde de ontem. Sugiro ao meu filho passearmos com o Nietszche pela Quinta da Boa Vista, o espaço carioca que abriga a segunda residência da Família Real portuguesa no Brasil. O cão precipita-se para fora do carro assim que a porta é aberta, alegre e impaciente.
Apesar da proximidade do fechamento dos portões, ainda pudemos apreciar o verde que se espalhava pela grande extensão do parque. Árvores, lago e pequenos animaizinhos irradiavam calma e relaxamento, o que levou-nos a escolher banquinhos existentes para ali colocarmos a conversa em dia. Ao prenúncio do anoitecer, as pessoas remanescentes passaram a retirar-se do local e resolvemos seguir para o estacionamento.
Já próximos ao carro, o susto: – "Cadê o celular?". Marcos passou a procurá-lo nos bolsos do "short", embora intimamente já contássemos com a certeza de que o objeto não estava mais ali. Resolveu adentrar pelo parque, este visivelmente mais sombreado pelo despedir da tarde, deixando-me próximo ao veículo dos seguranças que já se preparavam para encerrar a jornada de trabalho. Retornou visivelmente desanimado e logo percebi que a busca havia sido infrutífera...
Voltávamos para casa, quando pedi ao Marcos que parasse o carro próximo a uma padaria. Disse-lhe que fosse indo e persegui um orelhão. Liguei a cobrar para o número do celular perdido. Do outro lado, o telefone tocou até esgotar a chamada. Lembrei-me de que os guardas haviam dito que o aparelho "já era", visto que geralmente ninguém os devolve por ali, um local repleto de "desocupados". Insisti novamente...
– Alô!
– Alôôôôô!!!! - "grita" um homem.
– Por favor, eu perdi esse celular....Que bom que você encontrou!... Gostaria de dar-lhe uma gratificação. Onde poderíamos nos encontrar?... – arrisquei.
– É!... Eu encontrei perto do museu! Tava andando por ali e vi aquilo brilhando...
– Vamos marcar num lugar? Pode ser na Praça "tal"?
– Ah, não! Ali tem guarita da polícia. Sabe... é que sou de rua, entendeu? Eu não roubei nada, só encontrei, viu?...
– É claro! Pode ficar tranqüilo!...
Combinamos, enfim, de nos depararmos na mesma praça sugerida inicialmente, porém no lado oposto da cabine policial. Liguei para casa, afirmei (à turma aflita...) que tudo estava resolvido e desliguei correndo, furtando-me de maiores explicações. O rapaz iria se demorar um pouco no trajeto e dirigi-me ao supermercado, objetivando retirar o dinheiro e comprar algo que ele pudesse comer, indiciada a dificuldade pela qual atravessava.
Fui então ao seu encontro... Sentia-me um tanto ridícula, o prato de comida na mão, a circular inutilmente pela pracinha repleta. Atenta, percebi meio a um determinado grupo (também de moradores de rua), um elemento que portava mochila verde, uma das características fornecidas pelo rapaz procurado.
– Você é o Aldo? – perguntei.
– Não! – responderam todos quase simultaneamente – mas a gente pode ser..."Tamu" morrendo de fome!
Foi quando percebi a atração exercida pelo prato que trazia nas mãos.
– Aí!...Dá pra gente aqui, vai! O Aldo tá internado, moça! – insistiam...
Expliquei que o objeto de desejo já tinha dono, mas que se não o encontrasse eu os procuraria... E fui para o orelhão telefonar novamente para o tal do Aldo.
– Tô aqui!... Em frente ao bar...perto do pipoqueiro... - diz empolgado.
Passo uma vez mais em frente ao banco faminto e recebo outra saraivada de pedidos... Fazem-me prometer que lhes trarei algo mais tarde e prossigo na investida. Já na esquina, distingo uma mãozinha abanando insistentemente. É ele! ( penso...) o herói da selva urbana. O homem que desafia a evidência das estatísticas sobre a precária sobrevivência no Rio de Janeiro.
Apresso-me e estendo a mão para cumprimentá-lo. Aldo me entrega prontamente o celular. Insisto, no entanto, no aperto de mão e ele se surpreende. Sento-me ao seu lado e quero saber mais...Ele discorre sobre o local onde encontrou o aparelho, manifesta a sua dificuldade ao atender o telefonema e critica o conhecido que lhe propôs a ida ao centro da cidade na segunda-feira para vendê-lo por cem "mirréis". Na conversa, revigora a idéia de ser um "cabra" justo e afirma preferir sempre devolver o achado ao dono. É claro que, "se ninguém tivesse ligado..."
Conversamos sobre a sua terra, Alagoas, desconhecidas para ele as suas belezas naturais. Divirto-me ao perguntar se ele jogou bola com o Collor quando pequeno. Ele gargalha e responde: "Deus me livre! Cabra safado é o que ele é...". Do seu Estado, restou apenas a lembrança das dificuldades que culminaram com a debandada para o sul com a família. Faço uma pausa silenciosa, constrangida em perguntar onde ela foi parar, ele sem casa e paradeiro. Reporto-me ao poema "Habitação", do Soares Feitosa:
"Nem saberia dizer onde moro exatamente.
Desconfio que habito dentro de meus dentes"
Seus dentes... Ele os oculta com a mão quando sorri. Certamente deve haver muitas falhas...Muitas delas já foram preenchidas pelos cantos exíguos nos quais se abrigou pela noite afora, pela estranheza com relação à mão que se estende, pelo medo da polícia (ainda que em estado de inocência...), pelos míseros quatro reais (os únicos que possuía no bolso para ir não sabe aonde). No entanto, preserva-se nele o maneirismo engraçado e os nossos risos entrelaçam-se meio à descontração dos passantes. Dos que haviam reivindicado a sua comida, ele afirma, balançando o indicador negativamente: " – Nessa eu nunca entrei!...Aqueles ali são drogados..."
Despeço-me do Aldo e, já em casa, persisto no inusitado encontro, os contrastes existenciais ainda me mobilizando. Alegro-me, no entanto, por haver alcançado algum progresso, seja lá de que ordem for, derivado da certeza de que, repentinamente, nossos papéis podem ser alterados. A vida é algo tão descontrolado(r), que a ela não se sobrepõem as vaidades burguesas, os "modus vivendi Caras" e até mesmo os estados de mendicância. Tudo no mundo traduz surpresa inesperada...e provoca-nos sempre uma perplexidade muitas vezes maior do que a explicitada pelo pessoal aqui de casa quando, porta imediatamente aberta, constatou o "bendito" celular nas minhas mãos.