Numa fria tarde de domingo, eu e alguns amigos tomamos Vargem Grande por opção. Já conhecíamos o mosteiro budista ali situado e estávamos desejosos de travar um contato mais profundo com a sua doutrina de base. A experiência anterior havia sido marcante, tal a pureza e transparência do olhar do Lama visitante, oriundo de Brasília. A comunidade participante o homenageava com um almoço festivo e o religioso retribuía a todos com fitinhas e chocolates que lhe haviam sido presenteados. A sua generosidade era explicitada à moda do povo tibetano e a alegria de todos era notória. A partir daí, o Lama tornou-se, ao menos para mim, uma referência positiva no que toca à vivência religiosa. Os seus ganhos espirituais transcendiam e uma sensação de paz e leveza contagiava os que dele se aproximavam.
Essa experiência gratificante, já a vivenciei algumas vezes. No colégio de freiras em que estudei, o Assunção, pude conviver com algumas mulheres especialíssimas que haviam se dedicado à vida religiosa em concomitância com a prática educacional. Delas nunca recebi incremento para o fanatismo, a culpa ou o preconceito, procedimentos identificados com muita freqüência nas ordens religiosas. Até hoje sinto saudades do cheiro de incenso que se diluía pela capela ...os nossos cantos lapidados até a perfeição para a missa das quartas-feiras.
Por outro lado, já me narraram fatos desagradáveis referentes ao assunto. Um conhecido meu, a mãe imigrante o havia internado num seminário para que fosse padre secular. Na Itália, devido à emigração dos homens para a América, os párocos das aldeias eram investidos de grande poder político, decorrência do fato de serem substitutos dos chefes de família ausentes. Esse prestígio, as "mamas" o desejavam ardentemente para os seus filhos, principalmente os primogênitos. Pois bem...a experiência desse ex-seminarista havia sido bastante negativa, raríssimas exceções a minorarem-lhe a impressão desagradável. O livro "Informação ao Crucificado", do Carlos Heitor Cony, trata de sua passagem como aluno da mesma instituição. O término da obra coincide com a sua evasão do Seminário São José, seguido da declaração de que Deus havia morrido, tal a sua decepção com a comunidade religiosa da qual havia feito parte até então.
Mas retornando à Vargem Grande... Naquela segunda visita, os freqüentadores eram outros e havia didatismo na recepção. Duas moças nos conduziram ao templo e, compenetradas, falaram-nos sobre os budas, o karma e a iluminação. Isso encerrado, dirigimo-nos para fora e passamos a brincar com os cães e gatinhos que habitavam no local. Foi quando percebemos a presença de um senhor, de aparência bem humilde. Chamou-nos atenção a preferência que os animais lhe dispensavam. Um gato aninhava-se em seu colo, outro esfregava-se na sua perna a pedir-lhe carinho... Supusemos então que freqüentava o mosteiro com alguma assiduidade e passamos a conversar com ele. Aos poucos fomos nos calando, um a um, a nossa verbosidade abafada por uma das melhores explanações sobre espiritualidade da qual já havíamos participado. O seu jeito simples, pulôver roto e calça de poliéster a cobrir-lhe displicentemente o corpo, dimensionou-se a ponto de causar uma profunda modificação na nossa percepção interna. Pena que uma das moças aproximou-se e o repreendeu, dizendo que só os lamas e as pessoas por ele indicadas poderiam falar sobre budismo no templo.
Evoluindo ainda mais o tema, recordo-me do Seu Basílio, grande amigo do meu pai e o ateu mais espiritualizado que conheci. Na verdade, rotulou-se agnóstico quando eu, adolescente curiosa, o encostei contra a parede. Quantos o conheceram, admiraram a sua conduta condescendente e amiga, o riso alegre e ruidoso a ocultar-lhe a tristeza do olhar, privilégio de quem admite a impossibilidade de se atingir a felicidade num mundo repleto de dor e sofrimento. Por ocasião das visitas aos amigos, presenteava-os com frutas e pequenas lembranças. Distinguia-se claramente a intenção de levar felicidade aos demais, através do seu carinhoso alto-astral. Na missa de sétimo dia do papai, entretanto, parceiros de muitos anos que haviam sido, as pernas arrastavam-se e uma expressão envelhecida e dolorosamente triste havia se estabelecido em seu rosto.
O Seu Basílio tinha a nobreza dos grandes seres humanos. Em vida, compactuou com os que travam batalha interna para não agravar o sofrimento alheio, este por si só inevitável. Na verdade, a impressão que pessoas como ele, o Lama e outros me causam é de que não contam com Deus para resolver a problemática humana, apesar das suas crenças religiosas ou agnosticismo. Não existe para elas o "Deus lhe pague!", pois cuidam de se responsabilizar pelo mundo em que vivem. Pacíficos guerreiros, arregaçam as mangas e fazem o que podem (e não podem...) para disseminar alegria e solidariedade humana.