O REI DO HIMALAIA
Vitor Gomes Pinto
Escritor, especialista em relações internacionais
Vitor.gp@persocom.com.br
No vale de Katmandu, junto às alturas sem fim do Himalaia, o rei, os políticos e os revolucionários não se entendem e o caos impera. No lance mais recente de uma tradição que em pouco mais de quatorze anos de democracia parlamentarista já deu quatorze governos ao Nepal, o rei Gyanendra demitiu de novo o primeiro-ministro Sher Bahadur Deuba (o mesmo ocorreu na vez anterior que ocupara o posto), mandou prender quatro ministros e declarou estado de emergência pelos próximos três anos, o que tira do calendário as eleições que estavam previstas para abril. Deuba foi acusado de fracassar na missão de acabar com a guerrilha maoísta que desde 1996 tenta, nas palavras de seu líder, o camarada Prachanda, transformar o país num ramo brilhante da revolução proletária e colocar a foice e o martelo no topo do Everest a 8850 metros de altitude, baseado na teoria do ano zero de Pol Pot que no Camboja queria purificar a sociedade de qualquer influência ocidental implantando um estado maoísta agrário e autosuficiente. A guerrilha, com cerca de 8 mil homens em armas e 30 mil militantes ativos, tem apoio popular e forte influência na zona montanhosa que cobre 80% do território nacional. Embora antes se negasse a conversar com Deuba aceitando somente o rei como interlocutor, agora programa uma greve geral e ataca na capital enfrentando o bem armado exército imperial de 68 mil soldados (mais 57 mil policiais, com apoio norte-americano).
Gyanendra chegou ao trono logo após o fatídico 1º de junho de 2001, quando seu tio, o rei Birendra, foi assassinado junto com a esposa, rainha Aishwarya, dois filhos e mais cinco parentes, por Dipendra, então o príncipe herdeiro. Era uma festa exclusiva para membros da família real que chegaram pontualmente às 19h30 ao palácio Narianhity em Katmandu. Como de praxe o rei apresentou-se vinte minutos depois, dedicando-se a conversas superficiais com os parentes. Dipendra, fortemente alcoolizado e drogado, tivera de ser levado para casa, mas voltou antes do jantar com dois rifles de assalto, encarou o pai e puxou o gatilho começando a matança para, em seguida, suicidar-se. Nas últimas, o rei ainda perguntou, inutilmente, em nepalês: “Kay gardeko? (o que estás fazendo)”.
O Nepal, independente desde 1768, em 1990 tornou-se uma monarquia constitucional e o único estado hinduista do mundo (a Índia formalmente é um estado laico). O “país dos mil deuses”, do mesmo tamanho que o Ceará ou o Amapá, é uma sociedade baseada em castas onde vivem pelo menos 4,5 milhões de “intocáveis” ou dalits (17% da população), pessoas sem casta e absolutamente discriminados principalmente pelos brâmanes e chetris que detém o poder político. A vaca, símbolo da fertilidade, é adorada e matar uma delas, mesmo por acidente, é crime grave punido pela lei e pela religião. Gyanendra se considera a encarnação de Vishnu, o símbolo da preservação e um dos três deuses maiores do hinduísmo (os outros são Brahma, a criação, e Shiva, a destruição), mas numa recente entrevista à imprensa inglesa declarou, modestamente: “eu nunca disse que sou Deus”.
Há mínimas e complexas alternativas para o Nepal, uma das mais belas e pobres nações da terra. A vitória da guerrilha comunista-maoísta é uma possibilidade real. Os três principais partidos – do Congresso, Comunista Nepalês e Nacional Democrático respectivamente com 37%, 32% e 10% dos votos nas últimas eleições parlamentares – não têm influência nem força. As vizinhas Índia e China se mantém em posições opostas, com a primeira tentando dar sustentação ao governo. A comunidade internacional (na prática a União Européia) pressiona por uma utópica democracia. O sucessor de Gyanendra, príncipe Paras, é visto como um torturador dos mais violentos, sendo odiado pela população. A instabilidade nepalesa coloca em risco até mesmo a 13a. Reunião de Cúpula da Associação Sul-Asiática para Cooperação Regional, prevista para este mês em Dacca, Bangladesh, país também convulsionado. O rei disse que vai a Dacca. Afinal, um quinto da população mundial vive no sul da Ásia e uma decisão firme pró-democracia poderia repercutir positivamente, mesmo nos confins do Himalaia.
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